Voz para cantar não tinha. Com catorze anos, se fosse para
ser cantora, já teria despontado como novo prodígio da Zona Norte, porque a cantoria
no chuveiro, acompanhando o rádio, não faltava. Nada. Mas queria ser artista e
pediu para ser matriculada no conservatório, para aprender piano. Pensa numa
criatura obcecada por tirar nota alta. Hoje, chamam de nerd. Naquele tempo, CDF. Tornou-se rapidamente a CDF do
conservatório, a ponto de cumprir dois anos em um, repetindo a prática no ano
seguinte, tamanha dedicação.
A tarefa, diga-se, era mais fácil que derrubar presidente eleito
na América Latina: as músicas ainda não eram nenhum Chopin, os solfejos, mera
questão de estudo e, carta valiosa na manga, o conservatório pertencia a uma amiga da família. Mas a ex-aspirante a cantora e nova pianista começou a
desconfiar que algo estava bem errado quando percebeu que tinha mais prazer em
acompanhar as aulas de teoria musical que as de prática.
Teve certeza de que aquele não era seu lugar quando passou a
conviver mais com outros alunos, e notar que a maioria deles se sentava ao
piano diante de uma partitura desconhecida e tocava a música assim, de uma
enfiada só, enquanto ela malhava dias e dias em cima de dois ou três compassos.
Chega. Não vou
continuar com isso.
“Mas, olha, veja bem: no mínimo, é um diploma a mais, você
pode dar aula de piano depois que se formar”, disse uma das professoras, tão
vocacionada para tocar piano que tinha o desplante de mostrar ao aluno como era
tal música dedilhando o teclado com uma caneta entre os dedos e, acredite!,
conversando e olhando para o interlocutor, como se estivesse trocando a marcha
de um automóvel e papeando com o passageiro ao mesmo tempo.
A obsessão por notas altas também tinha outra variação: nunca deixar tarefas inacabadas e, ao longo dos anos, percebeu que só podia
mesmo ser dona de uma mente altamente masoquista. Poderia ter se interessado
por um curso de flauta. Não, piano: nove anos de estudo. Depois, meteu-se a
esportista. Tênis? Natação? Vôlei. Ah, melhor ser maratonista, porque não deve
ser impossível terminar uma corrida de 42 km. E assim foi, a fórceps, terminar
o curso de piano.
À medida que o programa avançava, tinha a sensação de que
arrancar um dente ou acompanhar o relato de uma cirurgia de hemorroida causaria
menos sofrimento e incômodo que se entender com uma partitura de Tchaikovsky. A
cada semestre, um exame prático colocava a criatura à prova de três mestres no
conservatório. Executava duas ou três peças, era dispensada e sentia um alívio
que só voltou a experimentar anos depois, quando, na solidão do banheiro, leu
pela primeira vez a palavra “negativo”. Nesses momentos, tirava o mundo dos
ombros e uma vez, tão nas nuvens estava, saiu do exame correndo pela rua,
esquecendo os livros sobre a mesa dos examinadores.
Noah Taylor, em "Shine", na cena do colapso ao som de Rachmaninoff |
Um acidente que se apaga da memória. O rosto proferindo as
palavras que precedem o pé na bunda. Aquelas experiências que você sabe que
viveu, mas um mecanismo de defesa as bloqueia definitivamente. Só sabia que tinha
sido um desastre. A família foi assistir e se comportou, dali para todo o
sempre, como se estivesse diante das perguntas sobre aquela tia solteirona que passou
uns meses no interior, para tratar de uma doença, e o que ela teve mesmo, vocês
lembram? Tabu. Nunca foi buscar a fita de VHS com o filme do “espetáculo”.
Anos depois, assistindo ao filme “Shine” (Oscar de Melhor
Ator para Geoffrey Rush), descobriu que “Rapsódia sobre um tema de Paganini”,
de Sergei Rachmaninoff, a peça que estraçalhou em cima daquele palco naquele
dia, foi a mesma que levou o pianista David Helfgott a um colapso nervoso. Saiu
bem no lucro essa CDF de conservatório...
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Cesar Camargo Mariano, no espetáculo "Joined" - fotos Paula Marina Rocha |
Na última sexta-feira, minha desastrosa carreira de
concertista veio à memória depois que assisti ao magnífico espetáculo “Joined”,
de Cesar Camargo Mariano, no SESC Pinheiros, em São Paulo. Nos tempos em que
achava possível me tornar pianista, escutava quase todos os dias o álbum “Todas
as Teclas”, com Cesar e Wagner Tiso. As do piano não me pertencem. Por sorte,
as da teclas da escrita não me rejeitaram.
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