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Na repercussão sobre o GP da Turquia, aqui no blog, destacaram-se referências sobre meus comentários, durante a transmissão da BandNews FM, a respeito das ultrapassagens na Fórmula 1. Ou a falta delas, mais precisamente. Em sua coluna de hoje, na Folha de S.Paulo, o amigo Fábio Seixas, comentarista titular da BandNews, retomou o tema.
Este pecado da Fórmula 1 atual - falta de ultrapassagens - parece ser o grande responsável pelo tédio das corridas. Em quase todas elas, posições só se alteram em função das paradas nos boxes, não de manobras arrojadas na pista. Não temos mais corridas, mas procissões.
A FIA está atenta ao problema e até criou uma comissão multidisciplinar de notáveis, ou coisa que o valha, para fomentar a volta das disputas roda a roda, freada a freada.
Torço para que dê certo. Mas, quando ouvi a notícia, outra situação me veio à mente. É impressionante como o ser humano é capaz de fazer bobagens e depois sair, meio desesperado, tentando corrigir.
Uma comissão oficial para trazer de volta as ultrapassagens me fez lembrar daquelas notícias sobre grupos de cientistas que colocam um macho e uma fêmea de alguma espécie em extinção no cativeiro, para ver se procriam. Isso é como se a humanidade estivesse dizendo: "Sim, detonamos o meio ambiente, por conta própria os bichinhos não se reproduzem mais, então vamos dar uma mãozinha."
Mais ou menos a mesma coisa. A FIA mexeu tanto no regulamento da Fórmula 1 nos últimos anos e agora tenta remendar. Menos mal que estão fazendo alguma coisa.
Afinal, às vezes até saem uns bichinhos bonitinhos do cativeiro.
Eis a coluna do Fábio Seixas de hoje:
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Ultrapassai-vos uns ao outros
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São 17 GPs, estamos no 12º. Foram 3.537 km em disputa. Sabe quantas ultrapassagens pela liderança? Uminha
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O CAMPEONATO é o melhor dos últimos anos, quatro pilotos podem chegar a Interlagos na luta pelo título, o trono do alemão ainda está vago e deve permanecer assim por um bom tempo, o menino prodígio começa a ratear, Alonso não embala, a Ferrari cresce a olhos vistos, as duas próximas pistas favorecem a equipe italiana, as três últimas, ninguém sabe.
Mas as corridas... Ah, as corridas... Fernando Carmona Simões, de Ribeirão Preto, resumiu assim a situação: "Campeonato disputado, mas as corridas são um saco". No ponto.
O Mundial começou em março, estamos no último dia de agosto. São 17 GPs na temporada, estamos no 12º. Até agora, já foram 3.537 quilômetros em disputa. Sabe quantas ultrapassagens pela liderança? Uma. Apenas uma. Uminha. De Alonso sobre Massa, na caótica corrida de Nurburgring.
Se levarmos em consideração as largadas, o espanhol também superou o brasileiro na Malásia. Mais do que um alívio, porém, esse é outro agravante. Em 12 GPs, só uma vez o líder perdeu a posição nos primeiros metros da corrida? Afe.
"Detalhe": na largada, pelo menos na F-1, todo mundo começa parado. Não há aquela turbulência usada como justificativa para a falta de ultrapassagens. O que acontece, então?
Acontece, imagino, que os pilotos esqueceram como ultrapassar. Esqueceram o prazer esportivo, lúdico, sádico, de deixar o outro pra trás.
Sentados num regulamento que premia 36% do grid, como lembrou Alessandra Alves na última transmissão da BandNews FM, deixam para trás a idéia de ousar, de partir pra cima, de arriscar na freada no fim da reta para conquistar um, dois pontos a mais no Mundial.
Por que arriscar chegar em terceiro quando o prêmio em relação ao quarto lugar é de só um ponto? Por que partir para cima do líder, quando já se tem oito pontos no bolso?
É o anti-esporte, a antidisputa, a anticompetição. Um regulamento feito para segurar o ímpeto de Schumacher, mas que perdeu o sentido com o fora de série aposentado.
Pior: nas categorias de base, o que não falta é ultrapassagem. Basta ver uma corrida da GP2 ou da F-3 inglesa. Mas os Hamiltons da vida, quando chegam à F-1, são forçados a pensar, repensar e tripensar antes de tentar passar alguém.
Pilotos de hoje... Lembrai-vos dos tempos de kart, quando era tão bacana sair do meio do pelotão e superar todo mundo, um a um. Recordai-vos do doce prazer de enxergar pelo retrovisor alguém que há instantes só lhe oferecia o aerofólio traseiro.
Revedes e revedes o duelo Piquet x Senna na Hungria. Respirais fundo antes de mergulhar naquela curva cega. E carregais na carga do pé direito -a área de escape é gigantesca, seu carro não vai atolar. Ultrapassai-vos uns aos outros, enfim. É muito bacana, o povo gosta, vos garanto. E não é pecado.
*
Agora, é com vocês.
Friday, August 31, 2007
Thursday, August 30, 2007
O sabor da fé
“Vamos em paz e o senhor nos acompanhe”. Eu passava mais de uma hora esperando para ouvir esta frase.
Começava com o canto de abertura, a bênção inicial, depois vinham umas orações, mais cânticos, três leituras da Bíblia, a homilia, mais conhecida como sermão, e um monte de coisas que, na minha análise infantil, só serviam para me separar do meu real objetivo: doces! Ao ouvir o “vamos em paz”, era como se o padre tivesse dado a senha – corra, minha filha, antes que o balcão fiquei cheio de crianças maiores que você.
Esta era minha profissão de fé, com meus seis, sete anos. Ia à missa dominical com minha tia e meus primos. À missa uma ova. Ia comprar doces no boteco ao lado da igreja. O padre falava, eu salivava, pensando naqueles pirulitos dulcíssimos, produzidos com a mesma proporção de açúcar e corantes, acomodados em potes transparentes que ressaltavam ainda mais o visual arco-íris das guloseimas. Havia também um tradicional pirulito todo vermelho, em formato de chupeta, um néctar divino.
Era bem engraçada a cena. Ao final da missa, a turba infantil saía desmandada em direção ao barzinho. Naquele tempo, eu era a mais nova dos netos mais velhos, o que durante anos me deu a condição de “café-com-leite”. Eu odiava aquele status fantasma: o café-com-leite é como um deputado, com sua imunidade parlamentar. No pega-pega, não pode ser pego. No esconde-esconde, não vale ser achado. Nas brincadeiras, ser café-com-leite fazia mal apenas ao meu ego, mas na corrida pelas guloseimas, ao fim da missa, o tamanho diminuto representava uma ameaça física. Não cheguei a ser pisoteada, mas cotoveladas e empurrões foram aos montes. Fora que eu sempre ficava à meia altura do balcão, pulando para ser vista pelo tio do boteco.
Alguns anos depois, chegou o tempo de fazer catequese. Um certo estresse se instalou, pois algumas igrejas exigiam dois anos de preparação, mais um envolvimento considerável dos pais ao longo do curso. As famílias eram grandes entusiastas de que fizéssemos a primeira eucaristia, mas se pudesse ser em um esquema supletivo, tanto melhor. Assim, eu e um grupo de colegas da escola fomos parar em uma igreja que fazia toda a preparação em menos de um ano.
As aulas aconteciam sempre às quintas-feiras, pela manhã. Éramos cinco ou seis meninas, todas da mesma classe, no colégio. Alguma das mães teve uma idéia brilhante: em vez de levar e buscar as filhas na igreja, as mães apenas levavam e uma delas se encarregava de apanhar todas. Levava-as para casa, servia o almoço e despachava todas juntas para a escola, no período da tarde. Cada semana, uma delas ficava responsável pelo farnel. Era uma farra maravilhosa. Passei a esperar as quintas-feiras pela reunião ampliada com as amigas e também pelo cardápio. Nunca soube se a combinação macarrão-bife à milanesa-salada de batata era parte obrigatória do pacote, ou mera coincidência. Só sei que acordava quase sentindo o cheiro do molho de tomate. Não sei por que razão, sempre me lembro dessas quintas macarrônicas quando o tempo está como hoje, aqui em São Paulo, cinzento e um pouco frio.
A cerimônia da primeira comunhão aconteceu em dezembro daquele ano, 1980, em um domingo quente à beça. Estávamos todas de branco, como recomendaram o padre e dona Neusa, a professora da catequese. Minha mãe mandou fazer um conjunto de laise para mim. A família inteira compareceu à igreja. Na hora da eucaristia, coloquei a hóstia na boca, meus olhos se encheram de lágrimas. Católicos, por favor, não tomem por heresia. Não foi emoção, mas uma mistura de ânsia com engasgo.
Eu nunca tinha colocado uma hóstia na boca e, inadvertidamente, deixei que ela grudasse no céu da minha. Comecei a empurrar a massa insípida com a língua, tentando desesperada que ela soltasse de onde estava. Daí, a infeliz (olha o pecado!) escorregou direto pela minha garganta e quase me obstruiu a traquéia. Consegui engolir o pequeno, mas perigoso, disco de biscoito sem sal nem açúcar e só quando ele passou inteiro pelo tubo esofágico lembrei de rezar. Fiquei algum tempo com remorso. Depois, entendi que não era pecado, era só o efeito sempre inesperado do desconhecido.
Começava com o canto de abertura, a bênção inicial, depois vinham umas orações, mais cânticos, três leituras da Bíblia, a homilia, mais conhecida como sermão, e um monte de coisas que, na minha análise infantil, só serviam para me separar do meu real objetivo: doces! Ao ouvir o “vamos em paz”, era como se o padre tivesse dado a senha – corra, minha filha, antes que o balcão fiquei cheio de crianças maiores que você.
Esta era minha profissão de fé, com meus seis, sete anos. Ia à missa dominical com minha tia e meus primos. À missa uma ova. Ia comprar doces no boteco ao lado da igreja. O padre falava, eu salivava, pensando naqueles pirulitos dulcíssimos, produzidos com a mesma proporção de açúcar e corantes, acomodados em potes transparentes que ressaltavam ainda mais o visual arco-íris das guloseimas. Havia também um tradicional pirulito todo vermelho, em formato de chupeta, um néctar divino.
Era bem engraçada a cena. Ao final da missa, a turba infantil saía desmandada em direção ao barzinho. Naquele tempo, eu era a mais nova dos netos mais velhos, o que durante anos me deu a condição de “café-com-leite”. Eu odiava aquele status fantasma: o café-com-leite é como um deputado, com sua imunidade parlamentar. No pega-pega, não pode ser pego. No esconde-esconde, não vale ser achado. Nas brincadeiras, ser café-com-leite fazia mal apenas ao meu ego, mas na corrida pelas guloseimas, ao fim da missa, o tamanho diminuto representava uma ameaça física. Não cheguei a ser pisoteada, mas cotoveladas e empurrões foram aos montes. Fora que eu sempre ficava à meia altura do balcão, pulando para ser vista pelo tio do boteco.
Alguns anos depois, chegou o tempo de fazer catequese. Um certo estresse se instalou, pois algumas igrejas exigiam dois anos de preparação, mais um envolvimento considerável dos pais ao longo do curso. As famílias eram grandes entusiastas de que fizéssemos a primeira eucaristia, mas se pudesse ser em um esquema supletivo, tanto melhor. Assim, eu e um grupo de colegas da escola fomos parar em uma igreja que fazia toda a preparação em menos de um ano.
As aulas aconteciam sempre às quintas-feiras, pela manhã. Éramos cinco ou seis meninas, todas da mesma classe, no colégio. Alguma das mães teve uma idéia brilhante: em vez de levar e buscar as filhas na igreja, as mães apenas levavam e uma delas se encarregava de apanhar todas. Levava-as para casa, servia o almoço e despachava todas juntas para a escola, no período da tarde. Cada semana, uma delas ficava responsável pelo farnel. Era uma farra maravilhosa. Passei a esperar as quintas-feiras pela reunião ampliada com as amigas e também pelo cardápio. Nunca soube se a combinação macarrão-bife à milanesa-salada de batata era parte obrigatória do pacote, ou mera coincidência. Só sei que acordava quase sentindo o cheiro do molho de tomate. Não sei por que razão, sempre me lembro dessas quintas macarrônicas quando o tempo está como hoje, aqui em São Paulo, cinzento e um pouco frio.
A cerimônia da primeira comunhão aconteceu em dezembro daquele ano, 1980, em um domingo quente à beça. Estávamos todas de branco, como recomendaram o padre e dona Neusa, a professora da catequese. Minha mãe mandou fazer um conjunto de laise para mim. A família inteira compareceu à igreja. Na hora da eucaristia, coloquei a hóstia na boca, meus olhos se encheram de lágrimas. Católicos, por favor, não tomem por heresia. Não foi emoção, mas uma mistura de ânsia com engasgo.
Eu nunca tinha colocado uma hóstia na boca e, inadvertidamente, deixei que ela grudasse no céu da minha. Comecei a empurrar a massa insípida com a língua, tentando desesperada que ela soltasse de onde estava. Daí, a infeliz (olha o pecado!) escorregou direto pela minha garganta e quase me obstruiu a traquéia. Consegui engolir o pequeno, mas perigoso, disco de biscoito sem sal nem açúcar e só quando ele passou inteiro pelo tubo esofágico lembrei de rezar. Fiquei algum tempo com remorso. Depois, entendi que não era pecado, era só o efeito sempre inesperado do desconhecido.
Tuesday, August 28, 2007
Feitiço do tempo
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Um assunto puxa o outro, e lá vem mais um, e assim me pus a pensar esses dias no ano de 1982. Quando falei dos vinte anos da morte de Didier Pironi, mencionei a morte de Gilles Villeneuve, em maio de 1982. Naquele ano, não morreu apenas Gilles, um dos mais adorados pilotos de Fórmula 1 de todos os tempos, mesmo sem ter sido campeão mundial.
No dia 5 de julho de 1982, morreu também o futebol arte. A desclassificação da seleção brasileira na Copa da Espanha marcou definitivamente uma era, ou o fim dela. No lugar do futebol solto, que busca o gol, nascia o futebol força, a marcação acima de tudo, a defesa como dogma. Gilles era um pouco isso, nas pistas. Muito mais coração que cabeça, muito mais ataque que defesa.
Se nos fosse dado voltar no tempo e mudar o rumo da história, tenho certeza de que nove entre dez amantes de Fórmula 1 ou de futebol voltariam a 1982 para impedir a morte de Gilles e não deixar que Paolo Rossi fizesse o terceiro gol da Itália naquelas quartas de final.
Então, fiquei pensando se fosse possível reviver alguns dias determinantes da história do esporte mundial. Como no filme “Feitiço do tempo”, com Bill Murray e Andie McDowell, no qual um repórter de televisão se vê preso no tempo, sempre no mesmo dia, com a chance de fazer diferente o que fez na véspera. E escolhi três resultados que eu gostaria, ardentemente, de mudar. Na ordem cronológica, são estes:
Campeonato Paulista de 1987 – O Corinthians fez um começo de campeonato sofrível, na zona de rebaixamento, mais ou menos o que faz no atual Brasileirão. Pouco antes da metade do campeonato, começou a reação. Tínhamos uma dupla de artilheiros, Everton e Edmar, endiabrados naqueles tempos. O time se acertou, desandou a vencer jogos e a empatar alguns, a ponto de ficar 22 partidas sem perder. A fiel torcida adotou como trilha sonora, naquele ano, uma música infantil que fazia sucesso nas paradas, o tema do He-Man. “Eu tenho a força/ Sou invencível/ Vamos, amigos/ Unidos venceremos a semente do mal”. Fomos indo, indo, até chegar à final contra o São Paulo. Não deu. Lembro que, quando acabou o jogo, me fechei no banheiro e liguei o chuveiro para não ouvir o foguetório tricolor. Há outras finais e jogos decisivos, especialmente contra o Palmeiras, entalados na garganta corintiana. Mas este, pela circunstância, pelo mérito, pela recuperação, talvez tenha sido o meu título perdido mais sofrido.
GP do Japão de 1989 – Foram três anos de guerra de nervos, disputa acirrada, duelos estratégicos, até terminar em pura baixaria. Enquanto foram companheiros de equipe, em 1988 e 1989, Ayrton Senna e Alain Prost formaram a dupla de sonho e de pesadelo na McLaren. No primeiro ano, Senna venceu o campeonato mais ou menos em paz. Em 1989, era guerra. Ao final da competição, Prost em larga vantagem. Senna precisaria vencer as três últimas provas para ser campeão – Espanha, Japão e Austrália. Venceu na Espanha. No Japão, Prost liderava, Senna tentou tomar-lhe a ponta, foi fechado pelo companheiro de equipe. Os dois carros saíram da pista, Prost deu-se por satisfeito, saltou da McLaren e foi para o box. Senna implorou ajuda aos comissários, foi empurrado da chicane para a pista, voltou para a corrida, venceu a prova e acabou desclassificado, justamente por contar com ajuda externa. Passaram-se mais minutos que os habituais entre Senna cruzar a linha de chegada em primeiro e o pódio ser formado, com Alessandro Nannini aclamado como vencedor. O campeonato estava encerrado, com Prost garantindo seu terceiro título mundial. Se pudesse, eu gostaria de mudar esse resultado, que Senna fosse capaz de voltar à pista sozinho, vencendo (como venceu) e empurrando a decisão do Mundial para a última corrida, em Adelaide. Talvez viesse outro golpe baixo do francês, talvez Senna vencesse, talvez ele fizesse uma corrida ruim, quem sabe?
Campeonato Brasileiro de 1996 – Não era meu time na final, mas a Portuguesa de Desportos, a Lusa do meu pai, o segundo time de todos. Tinha feito uma campanha sensacional no Brasileirão daquele ano, chegando à final contra o Grêmio, que levava a vantagem do empate e de decidir em casa. Nos momentos antes do primeiro jogo da final, no Canindé, uma chuva colossal se abateu sobre São Paulo. Eu estava presa no trânsito quando o jogo começou e gritei sozinha no carro assim que o Gallo fez o primeiro gol da Lusa. Fui direto para a casa dos meus pais e lá chegando encontro meu velho candidamente lavando a louça do jantar. “Como assim? Não está vendo o jogo?”, quase gritei. Aquele totem de paciência e calma também tinha seus limites de estresse. Sabia que ficaria nervoso vendo o jogo, preferiu a companhia da esponja e do detergente. Pois eu fui para a frente da TV e pulei ensandecida quando a partida terminou com dois a zero para a Lusa. Na final, zero a zero seria nosso. Poderíamos perder até por um gol de diferença. Mas Paulo Nunes abriu o placar e Ailton terminou de soterrar nosso sonho. Dois a zero para o Grêmio, placar igual ao do Canindé, Grêmio campeão. Não me lembro da reação do meu pai, mas o totem certamente se manteve impávido. Eu chorei. Quem melhor escreveu sobre esse jogo foi Flavio Gomes, na crônica chamada “Carta ao Mané”. Meu pai morreu em 2000, sem comemorar um título da Lusa que não fosse aquela lambança do Paulista de 1973, quando a Portuguesa dividiu o título com o Santos, por um erro do juiz na contagem dos pênaltis. Se eu pudesse, mandava alguém marcar o Ailton, só para aquele segundo gol não sair...
///
Agora, é com vocês. Que fato esportivo você gostaria de mudar? Não vale a Copa de 82 nem a morte de Gilles Villeneuve, que são hours concours.
Um assunto puxa o outro, e lá vem mais um, e assim me pus a pensar esses dias no ano de 1982. Quando falei dos vinte anos da morte de Didier Pironi, mencionei a morte de Gilles Villeneuve, em maio de 1982. Naquele ano, não morreu apenas Gilles, um dos mais adorados pilotos de Fórmula 1 de todos os tempos, mesmo sem ter sido campeão mundial.
No dia 5 de julho de 1982, morreu também o futebol arte. A desclassificação da seleção brasileira na Copa da Espanha marcou definitivamente uma era, ou o fim dela. No lugar do futebol solto, que busca o gol, nascia o futebol força, a marcação acima de tudo, a defesa como dogma. Gilles era um pouco isso, nas pistas. Muito mais coração que cabeça, muito mais ataque que defesa.
Se nos fosse dado voltar no tempo e mudar o rumo da história, tenho certeza de que nove entre dez amantes de Fórmula 1 ou de futebol voltariam a 1982 para impedir a morte de Gilles e não deixar que Paolo Rossi fizesse o terceiro gol da Itália naquelas quartas de final.
Então, fiquei pensando se fosse possível reviver alguns dias determinantes da história do esporte mundial. Como no filme “Feitiço do tempo”, com Bill Murray e Andie McDowell, no qual um repórter de televisão se vê preso no tempo, sempre no mesmo dia, com a chance de fazer diferente o que fez na véspera. E escolhi três resultados que eu gostaria, ardentemente, de mudar. Na ordem cronológica, são estes:
Campeonato Paulista de 1987 – O Corinthians fez um começo de campeonato sofrível, na zona de rebaixamento, mais ou menos o que faz no atual Brasileirão. Pouco antes da metade do campeonato, começou a reação. Tínhamos uma dupla de artilheiros, Everton e Edmar, endiabrados naqueles tempos. O time se acertou, desandou a vencer jogos e a empatar alguns, a ponto de ficar 22 partidas sem perder. A fiel torcida adotou como trilha sonora, naquele ano, uma música infantil que fazia sucesso nas paradas, o tema do He-Man. “Eu tenho a força/ Sou invencível/ Vamos, amigos/ Unidos venceremos a semente do mal”. Fomos indo, indo, até chegar à final contra o São Paulo. Não deu. Lembro que, quando acabou o jogo, me fechei no banheiro e liguei o chuveiro para não ouvir o foguetório tricolor. Há outras finais e jogos decisivos, especialmente contra o Palmeiras, entalados na garganta corintiana. Mas este, pela circunstância, pelo mérito, pela recuperação, talvez tenha sido o meu título perdido mais sofrido.
GP do Japão de 1989 – Foram três anos de guerra de nervos, disputa acirrada, duelos estratégicos, até terminar em pura baixaria. Enquanto foram companheiros de equipe, em 1988 e 1989, Ayrton Senna e Alain Prost formaram a dupla de sonho e de pesadelo na McLaren. No primeiro ano, Senna venceu o campeonato mais ou menos em paz. Em 1989, era guerra. Ao final da competição, Prost em larga vantagem. Senna precisaria vencer as três últimas provas para ser campeão – Espanha, Japão e Austrália. Venceu na Espanha. No Japão, Prost liderava, Senna tentou tomar-lhe a ponta, foi fechado pelo companheiro de equipe. Os dois carros saíram da pista, Prost deu-se por satisfeito, saltou da McLaren e foi para o box. Senna implorou ajuda aos comissários, foi empurrado da chicane para a pista, voltou para a corrida, venceu a prova e acabou desclassificado, justamente por contar com ajuda externa. Passaram-se mais minutos que os habituais entre Senna cruzar a linha de chegada em primeiro e o pódio ser formado, com Alessandro Nannini aclamado como vencedor. O campeonato estava encerrado, com Prost garantindo seu terceiro título mundial. Se pudesse, eu gostaria de mudar esse resultado, que Senna fosse capaz de voltar à pista sozinho, vencendo (como venceu) e empurrando a decisão do Mundial para a última corrida, em Adelaide. Talvez viesse outro golpe baixo do francês, talvez Senna vencesse, talvez ele fizesse uma corrida ruim, quem sabe?
Campeonato Brasileiro de 1996 – Não era meu time na final, mas a Portuguesa de Desportos, a Lusa do meu pai, o segundo time de todos. Tinha feito uma campanha sensacional no Brasileirão daquele ano, chegando à final contra o Grêmio, que levava a vantagem do empate e de decidir em casa. Nos momentos antes do primeiro jogo da final, no Canindé, uma chuva colossal se abateu sobre São Paulo. Eu estava presa no trânsito quando o jogo começou e gritei sozinha no carro assim que o Gallo fez o primeiro gol da Lusa. Fui direto para a casa dos meus pais e lá chegando encontro meu velho candidamente lavando a louça do jantar. “Como assim? Não está vendo o jogo?”, quase gritei. Aquele totem de paciência e calma também tinha seus limites de estresse. Sabia que ficaria nervoso vendo o jogo, preferiu a companhia da esponja e do detergente. Pois eu fui para a frente da TV e pulei ensandecida quando a partida terminou com dois a zero para a Lusa. Na final, zero a zero seria nosso. Poderíamos perder até por um gol de diferença. Mas Paulo Nunes abriu o placar e Ailton terminou de soterrar nosso sonho. Dois a zero para o Grêmio, placar igual ao do Canindé, Grêmio campeão. Não me lembro da reação do meu pai, mas o totem certamente se manteve impávido. Eu chorei. Quem melhor escreveu sobre esse jogo foi Flavio Gomes, na crônica chamada “Carta ao Mané”. Meu pai morreu em 2000, sem comemorar um título da Lusa que não fosse aquela lambança do Paulista de 1973, quando a Portuguesa dividiu o título com o Santos, por um erro do juiz na contagem dos pênaltis. Se eu pudesse, mandava alguém marcar o Ailton, só para aquele segundo gol não sair...
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Agora, é com vocês. Que fato esportivo você gostaria de mudar? Não vale a Copa de 82 nem a morte de Gilles Villeneuve, que são hours concours.
Sunday, August 26, 2007
O GP da Turquia (e eu)
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Pois então, hoje, participei pela primeira vez de uma transmissão de Fórmula 1 pelo rádio, como comentarista convidada nas rádios BandNews FM e Bandeirantes AM.
Dividi a mesa com o lucutor Odinei Edson e com os comentaristas Fábio Seixas e Jan Balder, mais o âncora Luiz Megale. O GP da Turquia foi chatinho como têm sido as corridas da Fórmula 1, com raríssimas exceções.
Felipe Massa fez uma corrida nota 10, quase barba-cabelo-bigode. Largou na pole, liderou de ponta a ponta e só não marcou a melhor volta, registrada por seu companhero Kimi Raikkonen no final da prova. Atestado inequívoco de que as Ferrari dominaram amplamente em Istambul.
A dobradinha da equipe italiana foi ótima para o Mundial, que continua embolado. Diante do desastre anunciado para a McLaren, o terceiro lugar foi o melhor que Alonso poderia ter feito. Mas o pneu estourado de Hamilton configurou-se, para o espanhol, ainda melhor. Alonso encurtou sua distância em relação ao inglês na classificação do campeonato em dois pontos (eram sete, agora são cinco).
Mas a vitória de Massa talvez tenha um outro significado além de dez pontos na tabela. A cinco provas do final da temporada, a Ferrari deve partir para a união de esforços, ou seja, a trabalhar por um dos pilotos. Massa agora tem um ponto à frente de Raikkonen. As duas próximas corridas serão disputadas em pistas que, teoricamente, favorecem a Ferrari (Itália e Bélgica).
É difícil dizer se, a esta altura, Massa já adquiriu esse domínio dentro da própria equipe, afinal Raikkonen foi contratado a peso de ouro, para substituir Michael Schumacher. Mas, se o time se unir em torno do brasileiro, ele está mais dentro da disputa do que nunca.
E vocês, o que acharam da corrida?
E para os que ouviram a transmissão da Band, digam o que acharam da comentarista convidada.
Gostei muito da experiência e mais uma vez agradeço pelo convite.
Pois então, hoje, participei pela primeira vez de uma transmissão de Fórmula 1 pelo rádio, como comentarista convidada nas rádios BandNews FM e Bandeirantes AM.
Dividi a mesa com o lucutor Odinei Edson e com os comentaristas Fábio Seixas e Jan Balder, mais o âncora Luiz Megale. O GP da Turquia foi chatinho como têm sido as corridas da Fórmula 1, com raríssimas exceções.
Felipe Massa fez uma corrida nota 10, quase barba-cabelo-bigode. Largou na pole, liderou de ponta a ponta e só não marcou a melhor volta, registrada por seu companhero Kimi Raikkonen no final da prova. Atestado inequívoco de que as Ferrari dominaram amplamente em Istambul.
A dobradinha da equipe italiana foi ótima para o Mundial, que continua embolado. Diante do desastre anunciado para a McLaren, o terceiro lugar foi o melhor que Alonso poderia ter feito. Mas o pneu estourado de Hamilton configurou-se, para o espanhol, ainda melhor. Alonso encurtou sua distância em relação ao inglês na classificação do campeonato em dois pontos (eram sete, agora são cinco).
Mas a vitória de Massa talvez tenha um outro significado além de dez pontos na tabela. A cinco provas do final da temporada, a Ferrari deve partir para a união de esforços, ou seja, a trabalhar por um dos pilotos. Massa agora tem um ponto à frente de Raikkonen. As duas próximas corridas serão disputadas em pistas que, teoricamente, favorecem a Ferrari (Itália e Bélgica).
É difícil dizer se, a esta altura, Massa já adquiriu esse domínio dentro da própria equipe, afinal Raikkonen foi contratado a peso de ouro, para substituir Michael Schumacher. Mas, se o time se unir em torno do brasileiro, ele está mais dentro da disputa do que nunca.
E vocês, o que acharam da corrida?
E para os que ouviram a transmissão da Band, digam o que acharam da comentarista convidada.
Gostei muito da experiência e mais uma vez agradeço pelo convite.
Thursday, August 23, 2007
Didier e Gilles
Hoje, faz vinte anos que morreu o piloto francês Didier Pironi. Não acompanhei sua carreira, embora siga a Fórmula 1 desde 1983. É que, nessa época, ele já não corria na categoria. Pironi sofreu um seríssimo acidente no treino qualificatório para o GP da Alemanha de 1982. Tão sério que nunca mais competiu na Fórmula 1. Morreu cinco anos depois, em um acidente marítimo, disputando uma prova de offshore.
Embora não tenha acompanhado a trajetória de Pironi, alguns capítulos trágicos de sua vida sempre me impressionaram.
Nestes tempos atuais, com tantas disputas entre pilotos de uma mesma equipe, é recorrente lembrar da rivalidade entre Pironi e o canadense Gilles Villeneuve, companheiros na Ferrari em 1982. Gilles era tido como o número 1, mas Pironi inventou de ultrapassá-lo no final do GP de San Marino, mesmo com a orientação da equipe para que mantivessem as posições, com o canadense em primeiro e o francês, em segundo. Depois da prova, Gilles jurou nunca mais falar com Pironi.
E não falou mesmo, porque morreu poucas semanas depois, no treino para o GP da Bélgica. Essas brigas de "nunca mais" sempre me sensibilizam. Penso exatamente isso: e se o outro morrer amanhã, vai morrer com raiva de mim, sem me perdoar, sem eu poder pedir desculpa, ou sem que eu o desculpe, sem um abraço, sem um "deixa disso, já passou"?
Bem, a Ferrari, que tinha começado o ano mandando prender e mandando soltar, não conseguiu vencer o título de pilotos de 1982. Pudera, começou com uma dupla e terminou com outra (após a morte de Gilles, entrou em seu lugar o francês Patrick Tambay e, depois do acidente de Pironi, o outro carro do time italiano passou a ser comandado por Mario Andretti). Ainda assim, a equipe venceu o Mundial de Construtores.
Um detalhe quase novelesco parece encerrar a briga entre Villeneuve e Pironi. Quando o francês morreu, sua esposa Catherine estava grávida. Em janeiro de 1988, deu à luz gêmeos, dois homens. Batizou-os como Didier Gille e Gilles Didier. Ela também escreveu um livro sobre o marido, chamado "Lettre a Didier" ("Carta a Didier").
Não se tem notícia de que algum dos rapazes corra, de carro ou de barco.
Meu amigo Saco de Gatos fez um post ótimo sobre Pironi hoje. Vale a visita.
Embora não tenha acompanhado a trajetória de Pironi, alguns capítulos trágicos de sua vida sempre me impressionaram.
Nestes tempos atuais, com tantas disputas entre pilotos de uma mesma equipe, é recorrente lembrar da rivalidade entre Pironi e o canadense Gilles Villeneuve, companheiros na Ferrari em 1982. Gilles era tido como o número 1, mas Pironi inventou de ultrapassá-lo no final do GP de San Marino, mesmo com a orientação da equipe para que mantivessem as posições, com o canadense em primeiro e o francês, em segundo. Depois da prova, Gilles jurou nunca mais falar com Pironi.
E não falou mesmo, porque morreu poucas semanas depois, no treino para o GP da Bélgica. Essas brigas de "nunca mais" sempre me sensibilizam. Penso exatamente isso: e se o outro morrer amanhã, vai morrer com raiva de mim, sem me perdoar, sem eu poder pedir desculpa, ou sem que eu o desculpe, sem um abraço, sem um "deixa disso, já passou"?
Bem, a Ferrari, que tinha começado o ano mandando prender e mandando soltar, não conseguiu vencer o título de pilotos de 1982. Pudera, começou com uma dupla e terminou com outra (após a morte de Gilles, entrou em seu lugar o francês Patrick Tambay e, depois do acidente de Pironi, o outro carro do time italiano passou a ser comandado por Mario Andretti). Ainda assim, a equipe venceu o Mundial de Construtores.
Um detalhe quase novelesco parece encerrar a briga entre Villeneuve e Pironi. Quando o francês morreu, sua esposa Catherine estava grávida. Em janeiro de 1988, deu à luz gêmeos, dois homens. Batizou-os como Didier Gille e Gilles Didier. Ela também escreveu um livro sobre o marido, chamado "Lettre a Didier" ("Carta a Didier").
Não se tem notícia de que algum dos rapazes corra, de carro ou de barco.
Meu amigo Saco de Gatos fez um post ótimo sobre Pironi hoje. Vale a visita.
Wednesday, August 22, 2007
Nas ondas do rádio
No próximo domingo, dia 26 de agosto, vou participar como comentarista convidada da transmissão do GP da Turquia de Fórmula 1, pelas rádios BandNews FM (96,9 MhZ em São Paulo) e Bandeirantes AM (840 kH e 90,9 MhZ FM).
Apesar de ser ouvinte de rádio desde sempre, de ter me decidido pela profissão por causa do rádio, como já contei neste post, é a primeira vez que faço um programa de rádio "tradicional", sem contar minhas participações no podcast do Grande Prêmio.
Uma das grandes vantagens de participar de uma transmissão como as da Band é o fato de que a rádio pode ser ouvida, pela internet, em qualquer lugar do mundo. Portanto, os amigos de Salvador, do Rio de Janeiro, de Belo Horizonte, de Ribeirão Preto, de Porto Alegre, de Newark, de Lisboa, de Viena ou de Tóquio também podem sintonizar.
E peço mesmo que o façam, e que comentem aqui, depois.
Desde já, agradeço aos titulares Odinei Edson e Fábio Seixas pelo convite. Até lá!
Sunday, August 19, 2007
La famiglia
.
Há alguns dias, quando escrevi sobre o Campeonato de Fórmula 1 de 1999, mencionei o irlandês Eddie Irvine e o fato de ele ter se tornado vice-campeão naquele ano pela Ferrari. Foi uma condição totalmente inesperada a que produziu esse quase título. Aquele campeonato foi o quarto de Michael Schumacher pela Ferrari, e o primeiro a oferecer condições reais de um título para o alemão, a bordo de um dos carros da escuderia italiana.
Mas Schumacher se acidentou em Silverstone, quebrou uma perna e ficou de molho por seis corridas. Em seu lugar, assumiu Mika Salo, finlandês como Mika Hakkinen, o campeão daquele ano. Na primeira corrida sem Schumacher, e com Salo, Irvine conquistou sua segunda vitória do ano, encostando em Hakkinen na classificação do campeonato (apenas dois pontos os separavam após essa prova, disputada em Zeltweg, na Áustria).
Na corrida seguinte, na Alemanha, Hakkinen largou na pole e liderou até a 24ª volta, quando abandonou por um furo no pneu traseiro esquerdo que o fez rodar e bater forte em uma proteção de pneus. Vinha em segundo o escudeiro ferrarista Mika Salo, com Irvine em terceiro. A liderança de Salo não foi maior do que uma volta. Cumprindo ordem da equipe, o finlandês cedeu o primeiro lugar a Irvine, que liderou as vinte voltas seguintes, venceu a prova e saiu de Hockenheim líder do campeonato, com oito pontos de vantagem sobre Hakkinen.
A manobra ficou na cara. Irvine saltou do carro e foi agradecer Salo ainda no parque fechado. Consta até que o irlandês teria dado o troféu de primeiro lugar ao companheiro de equipe. O finlandês correu as quatro provas seguintes, pontuando apenas na Itália, com um terceiro lugar. A fidelidade de Salo, embora não tenha sido suficiente para garantir o título para a Ferrari, naquele ano, foi amplamente premiada. O piloto ganhou vaga na Sauber, que utilizava motores Ferrari, no ano seguinte. Ainda pilotou para a Toyota na Fórmula 1 e, hoje, é um dos pilotos da Ferrari no American LeMans Serie, campeonato de carros turismo e GT nos Estados Unidos. Seu companheiro de equipe é o brasileiro Jaime Melo Junior.
Esta história serve para reforçar uma prática ancestral da Ferrari. A equipe italiana tradicionalmente escolhe um de seus pilotos e trabalha por ele. O segundo piloto é parte desta estratégia. Já era assim com Enzo Ferrari. No campeonato de 1979, diante da flagrante e espetacular ascensão do canadense Gilles Villeneuve, o comendador teria conversado com o piloto, de quem gostava “como um filho”, pelo que dizem. O teor da conversa: este ano, vamos trabalhar por Jody Scheckter. Gilles não teria gostado muito, mas acatou, certo de obter a preferência na oportunidade seguinte. Esta oportunidade teria chegado em 1982, só que a morte chegou mais cedo para ele.
Então, nada de novo em exigir tal comportamento também de Salo. Fico me perguntando se a imprensa finlandesa esboçou reação irada quando o piloto foi obrigado a ceder a vitória a Irvine. Teriam dito que Salo era “só um finlandezinho lutando contra esse mundo todo”? Detalhe: o gesto de Salo prejudicou outro finlandês, Hakkinen, que terminaria com o título, mas por aquela manobra perdeu momentaneamente a liderança do campeonato.
Pode-se até discutir a ética esportiva desse tipo de estratégia, mas fica evidente que este é o jeito da Ferrari trabalhar. O que leva a uma conclusão para os dias de hoje. Ainda neste campeonato de 2007, em algum momento, a Ferrari fará esta opção, entre Raikkonen e Massa.
Há alguns dias, quando escrevi sobre o Campeonato de Fórmula 1 de 1999, mencionei o irlandês Eddie Irvine e o fato de ele ter se tornado vice-campeão naquele ano pela Ferrari. Foi uma condição totalmente inesperada a que produziu esse quase título. Aquele campeonato foi o quarto de Michael Schumacher pela Ferrari, e o primeiro a oferecer condições reais de um título para o alemão, a bordo de um dos carros da escuderia italiana.
Mas Schumacher se acidentou em Silverstone, quebrou uma perna e ficou de molho por seis corridas. Em seu lugar, assumiu Mika Salo, finlandês como Mika Hakkinen, o campeão daquele ano. Na primeira corrida sem Schumacher, e com Salo, Irvine conquistou sua segunda vitória do ano, encostando em Hakkinen na classificação do campeonato (apenas dois pontos os separavam após essa prova, disputada em Zeltweg, na Áustria).
Na corrida seguinte, na Alemanha, Hakkinen largou na pole e liderou até a 24ª volta, quando abandonou por um furo no pneu traseiro esquerdo que o fez rodar e bater forte em uma proteção de pneus. Vinha em segundo o escudeiro ferrarista Mika Salo, com Irvine em terceiro. A liderança de Salo não foi maior do que uma volta. Cumprindo ordem da equipe, o finlandês cedeu o primeiro lugar a Irvine, que liderou as vinte voltas seguintes, venceu a prova e saiu de Hockenheim líder do campeonato, com oito pontos de vantagem sobre Hakkinen.
A manobra ficou na cara. Irvine saltou do carro e foi agradecer Salo ainda no parque fechado. Consta até que o irlandês teria dado o troféu de primeiro lugar ao companheiro de equipe. O finlandês correu as quatro provas seguintes, pontuando apenas na Itália, com um terceiro lugar. A fidelidade de Salo, embora não tenha sido suficiente para garantir o título para a Ferrari, naquele ano, foi amplamente premiada. O piloto ganhou vaga na Sauber, que utilizava motores Ferrari, no ano seguinte. Ainda pilotou para a Toyota na Fórmula 1 e, hoje, é um dos pilotos da Ferrari no American LeMans Serie, campeonato de carros turismo e GT nos Estados Unidos. Seu companheiro de equipe é o brasileiro Jaime Melo Junior.
Esta história serve para reforçar uma prática ancestral da Ferrari. A equipe italiana tradicionalmente escolhe um de seus pilotos e trabalha por ele. O segundo piloto é parte desta estratégia. Já era assim com Enzo Ferrari. No campeonato de 1979, diante da flagrante e espetacular ascensão do canadense Gilles Villeneuve, o comendador teria conversado com o piloto, de quem gostava “como um filho”, pelo que dizem. O teor da conversa: este ano, vamos trabalhar por Jody Scheckter. Gilles não teria gostado muito, mas acatou, certo de obter a preferência na oportunidade seguinte. Esta oportunidade teria chegado em 1982, só que a morte chegou mais cedo para ele.
Então, nada de novo em exigir tal comportamento também de Salo. Fico me perguntando se a imprensa finlandesa esboçou reação irada quando o piloto foi obrigado a ceder a vitória a Irvine. Teriam dito que Salo era “só um finlandezinho lutando contra esse mundo todo”? Detalhe: o gesto de Salo prejudicou outro finlandês, Hakkinen, que terminaria com o título, mas por aquela manobra perdeu momentaneamente a liderança do campeonato.
Pode-se até discutir a ética esportiva desse tipo de estratégia, mas fica evidente que este é o jeito da Ferrari trabalhar. O que leva a uma conclusão para os dias de hoje. Ainda neste campeonato de 2007, em algum momento, a Ferrari fará esta opção, entre Raikkonen e Massa.
Friday, August 17, 2007
20 anos sem Drummond
.
Há exatamente um ano, registrei os 19 anos da morte do poeta Carlos Drummond de Andrade neste post.
Vinte anos, hoje.
Minha relação com o fato está no texto de 2006. Para hoje, passo a palavra ao poeta, com dois poemas sobre o mesmo tema.
Memória
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
Ausência
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
Há exatamente um ano, registrei os 19 anos da morte do poeta Carlos Drummond de Andrade neste post.
Vinte anos, hoje.
Minha relação com o fato está no texto de 2006. Para hoje, passo a palavra ao poeta, com dois poemas sobre o mesmo tema.
Memória
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
Ausência
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
Thursday, August 16, 2007
O bode na sala
A atual temporada de Fórmula 1 tem levantado muitas comparações com o campeonato de 1986, um dos mais disputados de todos os tempos. De fato, naquele ano, como neste, quatro pilotos alternaram-se na liderança: os dois da Williams (Piquet e Mansell), um da McLaren (Prost) e um da Lotus (Senna). Este último tornou-se carta fora do baralho depois do GP de Portugal, antepenúltima corrida do ano. Na última, em Adelaide (Austrália), os três primeiros ainda mantinham suas chances.
Apesar de ser a melhor equipe e de vencer o Mundial de Construtores com folga, a Williams perdeu o título de pilotos para Prost, sendo que o inglês Nigel Mansell precisava apenas de um terceiro lugar para sagrar-se campeão na última corrida. Só que abandonou, com um pneu estourado. A disputa interna na Williams é reputada, por muitos, como uma das fortes razões para a perda do título. Isso tudo se parece muito com 2007. A McLaren também enfrenta uma luta fratricida entre Alonso e Hamilton, o que pode dividir as forças. Diferença significativa está no fato de que, do outro lado, entre os postulantes ao título, estão dois pilotos de uma mesma equipe – Raikkonen e Massa, separados na tabela de classificação por apenas um ponto.
Mas há uma referência bem mais recente de um título disputado até a antepenúltima corrida por quatro pilotos. Foi na temporada de 1999, que marcou o bicampeonato de Mika Hakkinen. Até o GP da Europa, disputado em Nurburgring, além de Mika, disputavam o título seu companheiro na McLaren, o escocês David Coulthard, o irlandês Eddie Irvine (Ferrari) e o alemão Heinz-Harald Frentzen (Jordan). Coulthard e Frentzen deixaram de ter chances após a corrida seguinte, na Malásia. Os dois remanescentes desembarcaram no Japão com chances de conquistar o campeonato, sendo Irvine o líder até então.
O que aconteceu de especial nesta referida temporada?
Michael Schumacher sofreu um forte acidente no GP da Inglaterra, bem na metade da temporada. Ficou fora de seis provas, voltando no GP da Malásia, como mero consorte de Irvine. Na primeira parte do campeonato, Schumacher havia obtido duas vitórias, um segundo e um quarto lugares. Ns duas últimas provas do ano, conseguiu dois segundos lugares. Ou seja, estaria na briga pelo título. Mas ficou fora, e o campeonato, com sua ausência, foi ultra-disputado.
Coincidência ou não, é na primeira temporada sem Schumacher que a competitividade volta com força na Fórmula 1, novamente com quatro pilotos brigando pelo título. Não vou discutir se o alemão é ou não o maior piloto de todos os tempos – cansei, tô cansadinha disso... Mas não posso deixar de reparar que a saída dele fez bem para a Fórmula 1. Schumacher era o bode na sala da Fórmula 1.
Apesar de ser a melhor equipe e de vencer o Mundial de Construtores com folga, a Williams perdeu o título de pilotos para Prost, sendo que o inglês Nigel Mansell precisava apenas de um terceiro lugar para sagrar-se campeão na última corrida. Só que abandonou, com um pneu estourado. A disputa interna na Williams é reputada, por muitos, como uma das fortes razões para a perda do título. Isso tudo se parece muito com 2007. A McLaren também enfrenta uma luta fratricida entre Alonso e Hamilton, o que pode dividir as forças. Diferença significativa está no fato de que, do outro lado, entre os postulantes ao título, estão dois pilotos de uma mesma equipe – Raikkonen e Massa, separados na tabela de classificação por apenas um ponto.
Mas há uma referência bem mais recente de um título disputado até a antepenúltima corrida por quatro pilotos. Foi na temporada de 1999, que marcou o bicampeonato de Mika Hakkinen. Até o GP da Europa, disputado em Nurburgring, além de Mika, disputavam o título seu companheiro na McLaren, o escocês David Coulthard, o irlandês Eddie Irvine (Ferrari) e o alemão Heinz-Harald Frentzen (Jordan). Coulthard e Frentzen deixaram de ter chances após a corrida seguinte, na Malásia. Os dois remanescentes desembarcaram no Japão com chances de conquistar o campeonato, sendo Irvine o líder até então.
O que aconteceu de especial nesta referida temporada?
Michael Schumacher sofreu um forte acidente no GP da Inglaterra, bem na metade da temporada. Ficou fora de seis provas, voltando no GP da Malásia, como mero consorte de Irvine. Na primeira parte do campeonato, Schumacher havia obtido duas vitórias, um segundo e um quarto lugares. Ns duas últimas provas do ano, conseguiu dois segundos lugares. Ou seja, estaria na briga pelo título. Mas ficou fora, e o campeonato, com sua ausência, foi ultra-disputado.
Coincidência ou não, é na primeira temporada sem Schumacher que a competitividade volta com força na Fórmula 1, novamente com quatro pilotos brigando pelo título. Não vou discutir se o alemão é ou não o maior piloto de todos os tempos – cansei, tô cansadinha disso... Mas não posso deixar de reparar que a saída dele fez bem para a Fórmula 1. Schumacher era o bode na sala da Fórmula 1.
Tuesday, August 14, 2007
Quem é seu chato preferido?
Há alguns cantores chatos. Podem nem abrir a boca, mas só de cruzar com eles pelo rádio ou pela TV, muda-se instintivamente de estação ou de canal. Muitos deles nem têm direito à defesa. Ganharam da mídia o rótulo de chatos, podem se esforçar de maneira hercúlea, nada fará efeito. Chato: caso encerrado.
Entre eles, talvez o mais célebre seja Oswaldo Montenegro, de quem a maioria das pessoas não ouviu sequer o segundo acorde. Mas há também Fagner, emérito pentelho de interpretação inconfundível. Há quem ache Zé Ramalho chato. Eu adoro, e aí entramos em uma seara pedregosa. Meus chatos podem ser diferentes dos seus, mas ainda assim serão chatos em um certo senso comum, que nos farão confessar o gosto por eles com certo rubor na face.
Há, naturalmente, os chatos intragáveis. Para mim, ícone maior de chatice é Sandy & Junior. Não me animo nem com a anunciada separação da dupla. Sei que eles continuarão por aí. Ela, principalmente. Podem me dizer que sua voz é afinada e cristalina. Sorry. A única coisa que me ocorre, ao ouvi-la, é aconselhar, e depressa: “Vai, entrega logo a boneca para a essa menina, para ver se ela pára de chorar!”
Uma vez, fui passar férias em Salvador e, na piscina do hotel, os monitores insistiam em tocar axé music o dia inteiro. Tudo bem, eu estava em Salvador, mas com tanta coisa boa que a Bahia nos deu, precisava ser aquela lavagem cerebral (ou traseiral)? Não dava para rolar um Dorival Caymmi, um Caetano, um Gil, até um Carlinhos Brown? Pitty! Pitty é baiana... Eu não chegaria ao requinte de pedir João Gilberto à beira da piscina, até porque João é por muitos considerado um chato de galochas.
E então voltamos aos meus, aos seus, aos nossos chatos. Há uma cantora-compositora que alguns consideram chata, mas que eu adoro. Joyce. Gosto de verdade de tudo o que ela já fez, e talvez goste muito, também, por ela ter sido uma das primeiras mulheres a compor na MPB. Joyce gravou o primeiro LP no final dos anos 1960, mas gramou bastante no quase anonimato até estourar com a canção-de-ninar “Clareana”, no Festival MPB Shell, em 1980.
“Um coração, de mel de melão, de sim e de não...”
Assim começa a música, parceria de Joyce com Mauricio Maestro, do ótimo grupo Boca Livre. Dessa mesma época, são canções como “Feminina”, “Da cor brasileira”, “Mistérios”, “Essa mulher” (que deu nome ao disco de Elis Regina, gravado em 1979), “Monsieur Binot”. Nesse período, a obra de Joyce se caracterizava por um cunho fortemente feminino/feminista. Também era notável a influência do pensamento libertário dos anos 60/70, toques hippies, natureza, aquele flower power todo.
Depois, ao longo dos anos 1980 e 1990, Joyce foi se cristalizando cada vez mais no formato banquinho e violão e, suspeito, começou a achar que tinha se transformado em João Gilberto. Não posso culpar quem a toma por chata (ai, que maldade...). Leituras e releituras de Bossa Nova afastaram a Joyce feminista e natureba da Joyce para exportação que desembarcou no século 21.
Menos conhecida que os sucessos listados acima, talvez a música mais curiosa de Joyce seja “Minha gata Rita Lee”, composta em homenagem não à cantora-compositora, mas efetivamente a uma gata de estimação. Descrita na música como “magrinha, magrinha, arrepiada, de pêlo vermelho e olhos de fome” a gata não poderia mesmo ter outro nome – Rita Lee.
///
E para você, quem é chato mesmo? E quais são os chatos de que você gosta?
///
Este texto foi livremente inspirado em um ótimo post do querido blog-amigo Henrique Bartsch, que botou a turma para falar de seus “prazeres proibidos”. Cantores chatos entram no rol.
Entre eles, talvez o mais célebre seja Oswaldo Montenegro, de quem a maioria das pessoas não ouviu sequer o segundo acorde. Mas há também Fagner, emérito pentelho de interpretação inconfundível. Há quem ache Zé Ramalho chato. Eu adoro, e aí entramos em uma seara pedregosa. Meus chatos podem ser diferentes dos seus, mas ainda assim serão chatos em um certo senso comum, que nos farão confessar o gosto por eles com certo rubor na face.
Há, naturalmente, os chatos intragáveis. Para mim, ícone maior de chatice é Sandy & Junior. Não me animo nem com a anunciada separação da dupla. Sei que eles continuarão por aí. Ela, principalmente. Podem me dizer que sua voz é afinada e cristalina. Sorry. A única coisa que me ocorre, ao ouvi-la, é aconselhar, e depressa: “Vai, entrega logo a boneca para a essa menina, para ver se ela pára de chorar!”
Uma vez, fui passar férias em Salvador e, na piscina do hotel, os monitores insistiam em tocar axé music o dia inteiro. Tudo bem, eu estava em Salvador, mas com tanta coisa boa que a Bahia nos deu, precisava ser aquela lavagem cerebral (ou traseiral)? Não dava para rolar um Dorival Caymmi, um Caetano, um Gil, até um Carlinhos Brown? Pitty! Pitty é baiana... Eu não chegaria ao requinte de pedir João Gilberto à beira da piscina, até porque João é por muitos considerado um chato de galochas.
E então voltamos aos meus, aos seus, aos nossos chatos. Há uma cantora-compositora que alguns consideram chata, mas que eu adoro. Joyce. Gosto de verdade de tudo o que ela já fez, e talvez goste muito, também, por ela ter sido uma das primeiras mulheres a compor na MPB. Joyce gravou o primeiro LP no final dos anos 1960, mas gramou bastante no quase anonimato até estourar com a canção-de-ninar “Clareana”, no Festival MPB Shell, em 1980.
“Um coração, de mel de melão, de sim e de não...”
Assim começa a música, parceria de Joyce com Mauricio Maestro, do ótimo grupo Boca Livre. Dessa mesma época, são canções como “Feminina”, “Da cor brasileira”, “Mistérios”, “Essa mulher” (que deu nome ao disco de Elis Regina, gravado em 1979), “Monsieur Binot”. Nesse período, a obra de Joyce se caracterizava por um cunho fortemente feminino/feminista. Também era notável a influência do pensamento libertário dos anos 60/70, toques hippies, natureza, aquele flower power todo.
Depois, ao longo dos anos 1980 e 1990, Joyce foi se cristalizando cada vez mais no formato banquinho e violão e, suspeito, começou a achar que tinha se transformado em João Gilberto. Não posso culpar quem a toma por chata (ai, que maldade...). Leituras e releituras de Bossa Nova afastaram a Joyce feminista e natureba da Joyce para exportação que desembarcou no século 21.
Menos conhecida que os sucessos listados acima, talvez a música mais curiosa de Joyce seja “Minha gata Rita Lee”, composta em homenagem não à cantora-compositora, mas efetivamente a uma gata de estimação. Descrita na música como “magrinha, magrinha, arrepiada, de pêlo vermelho e olhos de fome” a gata não poderia mesmo ter outro nome – Rita Lee.
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E para você, quem é chato mesmo? E quais são os chatos de que você gosta?
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Este texto foi livremente inspirado em um ótimo post do querido blog-amigo Henrique Bartsch, que botou a turma para falar de seus “prazeres proibidos”. Cantores chatos entram no rol.
Monday, August 13, 2007
007
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Que James Bond, que nada. O melhor espião de todos os tempos é Ron Dennis. Que não apenas locupletou-se de segredos da rival como fez sumir o crime dos noticiários.
Até o GP da Hungria, a McLaren trafegava precariamente entre a estranha absolvição em um tribunal da FIA e a perspectiva cruel de ser novamente julgada.
Depois do GP da Hungria, graças a uma briga criada em seu próprio quintal, desviou completamente o foco do mundo da Fórmula 1.
Ninguém mais fala em Nigel Stepney ou Mike Coughlan, só querem saber de Fernando Alonso e Lewis Hamilton.
A McLaren ainda deverá encarar o tribunal da FIA, depois da grita histérica da Ferrari, mas o clima já é bem outro.
Talvez eu seja cética demais, ou veja armações em coisas demais.
Que James Bond, que nada. O melhor espião de todos os tempos é Ron Dennis. Que não apenas locupletou-se de segredos da rival como fez sumir o crime dos noticiários.
Até o GP da Hungria, a McLaren trafegava precariamente entre a estranha absolvição em um tribunal da FIA e a perspectiva cruel de ser novamente julgada.
Depois do GP da Hungria, graças a uma briga criada em seu próprio quintal, desviou completamente o foco do mundo da Fórmula 1.
Ninguém mais fala em Nigel Stepney ou Mike Coughlan, só querem saber de Fernando Alonso e Lewis Hamilton.
A McLaren ainda deverá encarar o tribunal da FIA, depois da grita histérica da Ferrari, mas o clima já é bem outro.
Talvez eu seja cética demais, ou veja armações em coisas demais.
Friday, August 10, 2007
Adeus, Conjunto Nacional
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Moro em Santana, na Zona Norte de São Paulo, o bairro mais longe da capital. Não importa que o sujeito more no Morumbi, na Penha, em Alphaville, que nem em São Paulo fica. Quando digo que moro em Santana, sempre me perguntam por que moro “tão longe”. Há vários anos já desisti de explicar que longe é um conceito dependente de algo chamado referencial. Digo apenas que gosto de morar lá, o que é a pura verdade.
Moro a exatos dez quilômetros do meu trabalho, na região da Paulista. Pouco mais de seis quilômetros me separam do centro da cidade. Gosto de estar a esta distância da muvuca, mas paradoxalmente gosto de me sentir perto dela, como se a controlasse à distância. Santana é um bairro alto, vejo a cidade de cima. Não deixa de ser um tolo exercício de poder.
Da janela da minha cozinha, avisto o Conjunto Nacional, um importante edifício localizado na avenida Paulista. O Conjunto Nacional foi um projeto revolucionário no período de seu lançamento, na década de 1950. Agregando áreas residenciais e comerciais, virou um ponto de referência da grande avenida. Tem lojas, restaurantes, escritórios, cinemas e a sede da Livraria Cultura. Mas, para efeito de símbolo da cidade, o Conjunto Nacional pode simplesmente ser descrito como o edifício do relógio do Itaú. Ao longe, é possível saber que horas são, ou quantos graus está na cidade, apenas desviando o olhar para a Paulista.
(A cidade de São Paulo sofreu uma faxina radical recentemente. O prefeito Gilberto Kassab fez cumprir uma lei chamada Cidade Limpa que saiu arrancando letreiros e fachadas de tudo quanto foi estabelecimento comercial. O mastodôntico relógio do Itaú segue impávido em cima do Conjunto Nacional. Há alguns anos, depois que o agora governador José Serra foi eleito prefeito, o Itaú passou a responder pelos pagamentos da prefeitura. Deve movimentar um dinheirão esse dono do relógio...)
Santana é um bairro em ebulição imobiliária, como de resto vários outros da cidade. As casas vão caindo uma atrás da outra, dando lugar a prédios com nomes italianos como Areggio ou Via Qualquer Coisa. Eu mesma moro em um prédio, não posso falar muito. Mas percebi que um terreno perto de casa está todo cheio de tapumes, denunciando construção eminente. Não seria nada demais se não estivesse a vivenda em projeto bem na linha do Conjunto Nacional.
É por uma fresta que o vejo, e presto atenção nele por uns dez segundos, diariamente. Quando acordo e vou fazer meu café da manhã. E antes de deitar, hora do último copo d´água. Pela manhã, se vejo o prédio e diviso o relógio, estranhamente me sinto confortada. É como se tudo fosse dar certo naquele dia. Mas há muitos dias de neblina, e nem sempre o enxergo. Claro que não volto para a cama e desisto do dia por conta disso. Até me esqueço.
Mas era um hábito, um conforto, uma companhia familiar tê-lo ali, tão longe e tão perto. Vou sentir falta do Conjunto Nacional, mas vou me habituar à sua ausência. É sempre assim, com tudo. Cada vez que olhar o Areggio Não-sei-o-quê ou o Via Não-sei-o-que-lá vou lembrar que ele, antes, lá esteve. Ainda estará, só não mais ao alcance dos meus olhos.
Moro em Santana, na Zona Norte de São Paulo, o bairro mais longe da capital. Não importa que o sujeito more no Morumbi, na Penha, em Alphaville, que nem em São Paulo fica. Quando digo que moro em Santana, sempre me perguntam por que moro “tão longe”. Há vários anos já desisti de explicar que longe é um conceito dependente de algo chamado referencial. Digo apenas que gosto de morar lá, o que é a pura verdade.
Moro a exatos dez quilômetros do meu trabalho, na região da Paulista. Pouco mais de seis quilômetros me separam do centro da cidade. Gosto de estar a esta distância da muvuca, mas paradoxalmente gosto de me sentir perto dela, como se a controlasse à distância. Santana é um bairro alto, vejo a cidade de cima. Não deixa de ser um tolo exercício de poder.
Da janela da minha cozinha, avisto o Conjunto Nacional, um importante edifício localizado na avenida Paulista. O Conjunto Nacional foi um projeto revolucionário no período de seu lançamento, na década de 1950. Agregando áreas residenciais e comerciais, virou um ponto de referência da grande avenida. Tem lojas, restaurantes, escritórios, cinemas e a sede da Livraria Cultura. Mas, para efeito de símbolo da cidade, o Conjunto Nacional pode simplesmente ser descrito como o edifício do relógio do Itaú. Ao longe, é possível saber que horas são, ou quantos graus está na cidade, apenas desviando o olhar para a Paulista.
(A cidade de São Paulo sofreu uma faxina radical recentemente. O prefeito Gilberto Kassab fez cumprir uma lei chamada Cidade Limpa que saiu arrancando letreiros e fachadas de tudo quanto foi estabelecimento comercial. O mastodôntico relógio do Itaú segue impávido em cima do Conjunto Nacional. Há alguns anos, depois que o agora governador José Serra foi eleito prefeito, o Itaú passou a responder pelos pagamentos da prefeitura. Deve movimentar um dinheirão esse dono do relógio...)
Santana é um bairro em ebulição imobiliária, como de resto vários outros da cidade. As casas vão caindo uma atrás da outra, dando lugar a prédios com nomes italianos como Areggio ou Via Qualquer Coisa. Eu mesma moro em um prédio, não posso falar muito. Mas percebi que um terreno perto de casa está todo cheio de tapumes, denunciando construção eminente. Não seria nada demais se não estivesse a vivenda em projeto bem na linha do Conjunto Nacional.
É por uma fresta que o vejo, e presto atenção nele por uns dez segundos, diariamente. Quando acordo e vou fazer meu café da manhã. E antes de deitar, hora do último copo d´água. Pela manhã, se vejo o prédio e diviso o relógio, estranhamente me sinto confortada. É como se tudo fosse dar certo naquele dia. Mas há muitos dias de neblina, e nem sempre o enxergo. Claro que não volto para a cama e desisto do dia por conta disso. Até me esqueço.
Mas era um hábito, um conforto, uma companhia familiar tê-lo ali, tão longe e tão perto. Vou sentir falta do Conjunto Nacional, mas vou me habituar à sua ausência. É sempre assim, com tudo. Cada vez que olhar o Areggio Não-sei-o-quê ou o Via Não-sei-o-que-lá vou lembrar que ele, antes, lá esteve. Ainda estará, só não mais ao alcance dos meus olhos.
Thursday, August 09, 2007
Terra, Vento & Fogo
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Minha cabeça faz associações esdrúxulas, que chegam a me constranger. Acho que todo mundo é assim, mas eu, pelo menos, falo das minhas sandices. Nas últimas semanas, depois do acidente da TAM, falou-se muito do tal “grooving” da pista de Congonhas, um processo pelo qual são feitas ranhuras no piso, para favorecer a frenagem das aeronaves. Pois cada vez que eu ouvia falar em “grooving”, lembrava da música “Let´s groove”, um grande sucesso do grupo norte-americano Earth, Wind & Fire.
Nascido em 1969, em Chicago, ainda com o nome de Salty Peppers, EWF teve uma quantidade absurda de integrantes ao longo de sua história – cerca de 50! Habitualmente, a banda agregava em torno de dez músicos. As formações foram inúmeras, mas o coração do EWF era seu criador e, por assim dizer, “dono”, Maurice White. Era em torno dele que a banda gravitava, tendo como base constante ele e seu irmão, o baixista Verdine White, além do cantor Philip Bailey.
Quando surgiu, o EWF foi apresentado como uma banda de rythm´n´blues e foi sob esta definição que gravou os primeiros álbuns, no começo dos anos 70. Mas a curiosidade de Maurice White era tanta que ele nunca se furtou a passear por inúmeros outros gêneros. Isso explica, em parte, a multidão de músicos que passou pelo grupo. Se, em determinado momento, buscava um som mais jazzístico, acolhia músicos dos “after hours” que se esmeravam em caprichados solos de sopros. No momento seguinte, seus ouvidos se voltavam para tendências mais “étnicas”, e ele logo se juntava a músicos estrangeiros, tendo contado com a participação inclusive de músicos brasileiros, como o percussionista Paulinho da Costa.
Percussão e brasileiros, na mesma frase, são termos que valem destaques especiais. Maurice White foi uma espécie de Carlinhos Brown da dance music. Não que tivesse a inventividade do percussionista baiano para criar instrumentos musicais a partir de objetos do dia-a-dia, nem sua verborragia algo complexa, mas o músico de Chicago incorporou a percussão com toques africanos de forma definitiva à música popular norte-americana dos anos 70. Isso se tornou tão forte na história do EWF que ele acabou criando uma produtora chamada Kalimba Records (sendo kalimba o nome de um instrumento de percussão originário da África, que era praticamente a impressão digital do EWF). O som do EWF era uma combinação poderosa de metais, percussão e, claro, o vocal ultra-característico do grupo.
A ligação da banda com o Brasil foi enorme. Uma turnê em 1980 pelo país rendeu o disco Live in Rio. Os caras estavam na crista da onda por aqui. Indiscutivelmente, o EWF foi catapultado ao estrelato pela onda disco. Quem hoje torce o narizinho empoado para o que se produziu naquela época pode até chamar os cabras de comerciais, mas quero ver fazer isso sem chacoalhar de leve o quadril ou pelo menos bater o pezinho enquanto ouve “September”, “Boogie Wonderland”, “Fantasy”, “Devotion”, “After the love is gone” ou a “Let´s Groove” que me veio à mente.
Todos esses megahits foram produzidos entre 1978 e 1981, a época de maior sucesso do EWF. Para mim, no entanto, seu melhor disco foi gravado em 1983, chama-se “Powerlight” e tocou quase até furar no toca-discos lá de casa. Teve dois grandes sucessos – “Fall in love with me” e “Side by Side”, que eram minhas favoritas ao lado de “Spread your love” e “Miracles”, a última faixa do disco, um gospel de arrepiar, com um coro infantil somado aos vozeirões adultos.
Na década de 1990, Maurice White anunciou que era portador do Mal de Parkinson e se retirou das turnês do EWF. A banda ainda existe, sob a liderança de Philip Bailey, com Verdine White e Ralph Jones. Maurice manteve a Kalimba Records e ainda hoje produz alguns álbuns de outros artistas da black music.
Minha cabeça faz associações esdrúxulas, que chegam a me constranger. Acho que todo mundo é assim, mas eu, pelo menos, falo das minhas sandices. Nas últimas semanas, depois do acidente da TAM, falou-se muito do tal “grooving” da pista de Congonhas, um processo pelo qual são feitas ranhuras no piso, para favorecer a frenagem das aeronaves. Pois cada vez que eu ouvia falar em “grooving”, lembrava da música “Let´s groove”, um grande sucesso do grupo norte-americano Earth, Wind & Fire.
Nascido em 1969, em Chicago, ainda com o nome de Salty Peppers, EWF teve uma quantidade absurda de integrantes ao longo de sua história – cerca de 50! Habitualmente, a banda agregava em torno de dez músicos. As formações foram inúmeras, mas o coração do EWF era seu criador e, por assim dizer, “dono”, Maurice White. Era em torno dele que a banda gravitava, tendo como base constante ele e seu irmão, o baixista Verdine White, além do cantor Philip Bailey.
Quando surgiu, o EWF foi apresentado como uma banda de rythm´n´blues e foi sob esta definição que gravou os primeiros álbuns, no começo dos anos 70. Mas a curiosidade de Maurice White era tanta que ele nunca se furtou a passear por inúmeros outros gêneros. Isso explica, em parte, a multidão de músicos que passou pelo grupo. Se, em determinado momento, buscava um som mais jazzístico, acolhia músicos dos “after hours” que se esmeravam em caprichados solos de sopros. No momento seguinte, seus ouvidos se voltavam para tendências mais “étnicas”, e ele logo se juntava a músicos estrangeiros, tendo contado com a participação inclusive de músicos brasileiros, como o percussionista Paulinho da Costa.
Percussão e brasileiros, na mesma frase, são termos que valem destaques especiais. Maurice White foi uma espécie de Carlinhos Brown da dance music. Não que tivesse a inventividade do percussionista baiano para criar instrumentos musicais a partir de objetos do dia-a-dia, nem sua verborragia algo complexa, mas o músico de Chicago incorporou a percussão com toques africanos de forma definitiva à música popular norte-americana dos anos 70. Isso se tornou tão forte na história do EWF que ele acabou criando uma produtora chamada Kalimba Records (sendo kalimba o nome de um instrumento de percussão originário da África, que era praticamente a impressão digital do EWF). O som do EWF era uma combinação poderosa de metais, percussão e, claro, o vocal ultra-característico do grupo.
A ligação da banda com o Brasil foi enorme. Uma turnê em 1980 pelo país rendeu o disco Live in Rio. Os caras estavam na crista da onda por aqui. Indiscutivelmente, o EWF foi catapultado ao estrelato pela onda disco. Quem hoje torce o narizinho empoado para o que se produziu naquela época pode até chamar os cabras de comerciais, mas quero ver fazer isso sem chacoalhar de leve o quadril ou pelo menos bater o pezinho enquanto ouve “September”, “Boogie Wonderland”, “Fantasy”, “Devotion”, “After the love is gone” ou a “Let´s Groove” que me veio à mente.
Todos esses megahits foram produzidos entre 1978 e 1981, a época de maior sucesso do EWF. Para mim, no entanto, seu melhor disco foi gravado em 1983, chama-se “Powerlight” e tocou quase até furar no toca-discos lá de casa. Teve dois grandes sucessos – “Fall in love with me” e “Side by Side”, que eram minhas favoritas ao lado de “Spread your love” e “Miracles”, a última faixa do disco, um gospel de arrepiar, com um coro infantil somado aos vozeirões adultos.
Na década de 1990, Maurice White anunciou que era portador do Mal de Parkinson e se retirou das turnês do EWF. A banda ainda existe, sob a liderança de Philip Bailey, com Verdine White e Ralph Jones. Maurice manteve a Kalimba Records e ainda hoje produz alguns álbuns de outros artistas da black music.
Tuesday, August 07, 2007
Entrevista com o mago
Fazia tempo que não falávamos de Mutantes por aqui. Pudera, os Mutantes estavam fora, excursionando pela América do Norte e pela Europa. Nesse meio tempo, saíram coisas interessantes sobre essa turnê, como este testemunho bastante revelador publicado no Blog do Bart, que motivou uma das perguntas da entrevista abaixo. Empolgado – com justíssima causa – ainda fora do Brasil, o baterista Dinho Leme me mandou a versão on line de uma reportagem muito elogiosa do New York Times.
Terminado o périplo, consegui finalmente entrevistar Aluizer Malab, o empresário dos Mutantes. Se você perguntar a Sergio Dias o que possibilitou a volta do grupo, mais de trinta anos depois, a resposta é habitualmente a mesma. “Foi uma mágica”, diz, esotérico. Pois então, se foi mágica, os poderes sobrenaturais pertencem a Aluizer Malab, que foi quem juntou todos os ingredientes dessa poção.
Mineiro, estabelecido em Belo Horizonte, Aluizer é empresário do grupo Pato Fu, além de já ter produzido uma pá de shows nacionais e internacionais e organizado eventos como o Eletronika – Festival de Novas Tendências Musicais. Nesta entrevista, ele explica como aconteceu a aproximação dele com o que tinha restado dos Mutantes e como eles se tornaram Mutantes novamente.
Algumas perguntas ficaram maiores que algumas respostas. Releve-se. É uma paulista que fala muito entrevistando um mineiro. Talvez, a resposta mais curta de Aluizer seja a que me deixa mais feliz, quando pergunto se podemos esperar material inédito dos Mutantes.
Já disse a ele pessoalmente e vou continuar dizendo, talvez até o fim da vida, que sempre me faltarão palavras para agradecer a enorme felicidade que vivi no dia 6 de março de 2007, quando vi Mutantes ao vivo pela primeira vez. Mas agradeço mesmo assim, e agora agradeço também pela gentileza com este humilde blog.
Senhoras e senhores, com vocês, o homem que fez acontecer, o mago Aluizer Malab.
Alessandra - Os Mutantes acabam de voltar de uma turnê pelo exterior. Desde que voltaram a se reunir, esta é a terceira viagem para fora do Brasil, ou seja, os Mutantes tocaram mais no exterior do que aqui. Por quê?
Aluizer - Na verdade, não tocaram mais fora. A turnê brasileira começou em fevereiro. O primeiro show foi aberto no aniversário de São Paulo e, em fevereiro, começamos a percorrer o Brasil, pelo Rio de Janeiro. Interrompemos o trabalho para aproveitar o verão no exterior. Agora, retomaremos o Brasil.
Alessandra - Como tem sido a receptividade do público estrangeiro aos Mutantes? Boa parte dos shows lá fora tem ocorrido em festivais, junto com outras bandas. Essa comparação imediata é boa para os Mutantes?
Aluizer - A receptividade tem sido maravilhosa, de público e imprensa. Tentamos aproveitar ao máximo o período fora. Por isso, os festivais, mas são muitos shows somente dos Mutantes, também. A banda está na ativa e não vejo porque ficar fora desses festivais. Temos feito shows com vários grupos também importantes. Há uma vantagem enorme de público e mídia nos festivais.
Alessandra - E qual tem sido a repercussão junto à mídia no exterior?
Aluizer - Os Mutantes têm sempre amplo espaço. Em Nova York, por exemplo, tivemos duas grandes matérias no New York Times, sendo uma capa.
Alessandra - Os Mutantes voltaram, em 2006, com um CD e um DVD gravados ao vivo em Londres. Voltaram em uma época de evidente crise do mercado fonográfico. A repercussão da volta dos Mutantes foi grande na mídia. Mas e em termos de vendas? O CD e o DVD venderam bem ou os Mutantes são como aqueles artistas da Vanguarda Paulistana dos anos 80, como Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, que muita gente ouviu falar, mas pouca gente ouviu cantar?
Aluizer - Dentro da realidade atual do mercado, vendeu bem. O CD e o DVD saíram no início de dezembro e terminaram o ano como os mais vendidos. O lançamento aconteceu neste ano nos EUA e na Europa também. No geral, está bem e sendo trabalhado ainda.
Alessandra - Nos shows realizados no Brasil, é evidente a presença de jovens na platéia, talvez até de forma mais numerosa que o público mais velho. Isso se repete no exterior? A que você atribui essa veneração de alguns jovens pelos Mutantes?
Aluizer - Em geral, o público é mais jovem. No exterior, jovem e gringo. O público jovem teve um contato com o mito e não com a banda na ativa. Essa volta provocou grande curiosidade. Tem muito ídolo dessa garotada que idolatra Mutantes, como foi o caso do Kurt Cobain.
Alessandra - Na continuação da pergunta anterior: parece natural que as gerações jovens queiram ver Mutantes ao vivo, tocando clássicos do passado que nenhum de nós, com menos de 40, pôde ver. Mas e daqui pra frente, não é natural que esse público tenha expectativa por coisas inéditas? Podemos acalentar esse sonho também?
Aluizer - Sim. Eles estão de volta...
Alesandra - Gostaria de retomar um pouco essa "mágica" que proporcionou a volta dos Mutantes. Você poderia dizer em que medida o lançamento do CD de inéditas do Arnaldo Baptista, produzido pelo John Ulhoa, do Pato Fu, facilitou essa volta, já que você também é empresário do Pato Fu?
Aluizer - Como tinha produzido o CD do Arnaldo junto com o John e Rubinho Troll, recebi um convite para o Arnaldo fazer uma apresentação no evento da Tropicália de Londres, onde eles se apresentaram a primeira vez nessa volta. A partir deste convite veio um segundo para os irmãos Dias Baptista. Depois de entrar em contato com o Sergio, procurei os outros. Acabamos fechando com três Mutantes. Aí deu certo.
Alessandra - E ainda Pato Fu: muita gente sempre identificou traços inequívocos de Mutantes na banda mineira, inclusive no vocal da Fernanda Takai. Com a negativa da Rita Lee em participar do revival, parecia coerente tentar a Fernanda como vocalista nos Mutantes. Houve essa opção? Por que não aconteceu?
Aluizer - Não chegamos a fazer o convite. Era um nome dos mais cotados, mas Zélia fez uma visita antes e acabou ensaiando e deu muito certo.
Alessandra - Há quarenta anos, Mutantes eram três jovens músicos de São Paulo, que depois viraram cinco. Hoje, são dez. Essa "encorpada" na banda proporcionou que os Mutantes fizessem ao vivo coisas que não conseguiam antes, como Dom Quixote e Caminhante Noturno, que têm arranjos elaborados e que não se prestavam à formação enxuta de antes. Como essa banda nova foi formada? Você poderia dizer de onde vieram, e pelas mãos de quem, cada um dos jovens músicos incorporados ao grupo?
Aluizer - Basicamente sugerida pelo Sergio. Indiquei Simone Soul para a percussão.
Terminado o périplo, consegui finalmente entrevistar Aluizer Malab, o empresário dos Mutantes. Se você perguntar a Sergio Dias o que possibilitou a volta do grupo, mais de trinta anos depois, a resposta é habitualmente a mesma. “Foi uma mágica”, diz, esotérico. Pois então, se foi mágica, os poderes sobrenaturais pertencem a Aluizer Malab, que foi quem juntou todos os ingredientes dessa poção.
Mineiro, estabelecido em Belo Horizonte, Aluizer é empresário do grupo Pato Fu, além de já ter produzido uma pá de shows nacionais e internacionais e organizado eventos como o Eletronika – Festival de Novas Tendências Musicais. Nesta entrevista, ele explica como aconteceu a aproximação dele com o que tinha restado dos Mutantes e como eles se tornaram Mutantes novamente.
Algumas perguntas ficaram maiores que algumas respostas. Releve-se. É uma paulista que fala muito entrevistando um mineiro. Talvez, a resposta mais curta de Aluizer seja a que me deixa mais feliz, quando pergunto se podemos esperar material inédito dos Mutantes.
Já disse a ele pessoalmente e vou continuar dizendo, talvez até o fim da vida, que sempre me faltarão palavras para agradecer a enorme felicidade que vivi no dia 6 de março de 2007, quando vi Mutantes ao vivo pela primeira vez. Mas agradeço mesmo assim, e agora agradeço também pela gentileza com este humilde blog.
Senhoras e senhores, com vocês, o homem que fez acontecer, o mago Aluizer Malab.
Alessandra - Os Mutantes acabam de voltar de uma turnê pelo exterior. Desde que voltaram a se reunir, esta é a terceira viagem para fora do Brasil, ou seja, os Mutantes tocaram mais no exterior do que aqui. Por quê?
Aluizer - Na verdade, não tocaram mais fora. A turnê brasileira começou em fevereiro. O primeiro show foi aberto no aniversário de São Paulo e, em fevereiro, começamos a percorrer o Brasil, pelo Rio de Janeiro. Interrompemos o trabalho para aproveitar o verão no exterior. Agora, retomaremos o Brasil.
Alessandra - Como tem sido a receptividade do público estrangeiro aos Mutantes? Boa parte dos shows lá fora tem ocorrido em festivais, junto com outras bandas. Essa comparação imediata é boa para os Mutantes?
Aluizer - A receptividade tem sido maravilhosa, de público e imprensa. Tentamos aproveitar ao máximo o período fora. Por isso, os festivais, mas são muitos shows somente dos Mutantes, também. A banda está na ativa e não vejo porque ficar fora desses festivais. Temos feito shows com vários grupos também importantes. Há uma vantagem enorme de público e mídia nos festivais.
Alessandra - E qual tem sido a repercussão junto à mídia no exterior?
Aluizer - Os Mutantes têm sempre amplo espaço. Em Nova York, por exemplo, tivemos duas grandes matérias no New York Times, sendo uma capa.
Alessandra - Os Mutantes voltaram, em 2006, com um CD e um DVD gravados ao vivo em Londres. Voltaram em uma época de evidente crise do mercado fonográfico. A repercussão da volta dos Mutantes foi grande na mídia. Mas e em termos de vendas? O CD e o DVD venderam bem ou os Mutantes são como aqueles artistas da Vanguarda Paulistana dos anos 80, como Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, que muita gente ouviu falar, mas pouca gente ouviu cantar?
Aluizer - Dentro da realidade atual do mercado, vendeu bem. O CD e o DVD saíram no início de dezembro e terminaram o ano como os mais vendidos. O lançamento aconteceu neste ano nos EUA e na Europa também. No geral, está bem e sendo trabalhado ainda.
Alessandra - Nos shows realizados no Brasil, é evidente a presença de jovens na platéia, talvez até de forma mais numerosa que o público mais velho. Isso se repete no exterior? A que você atribui essa veneração de alguns jovens pelos Mutantes?
Aluizer - Em geral, o público é mais jovem. No exterior, jovem e gringo. O público jovem teve um contato com o mito e não com a banda na ativa. Essa volta provocou grande curiosidade. Tem muito ídolo dessa garotada que idolatra Mutantes, como foi o caso do Kurt Cobain.
Alessandra - Na continuação da pergunta anterior: parece natural que as gerações jovens queiram ver Mutantes ao vivo, tocando clássicos do passado que nenhum de nós, com menos de 40, pôde ver. Mas e daqui pra frente, não é natural que esse público tenha expectativa por coisas inéditas? Podemos acalentar esse sonho também?
Aluizer - Sim. Eles estão de volta...
Alesandra - Gostaria de retomar um pouco essa "mágica" que proporcionou a volta dos Mutantes. Você poderia dizer em que medida o lançamento do CD de inéditas do Arnaldo Baptista, produzido pelo John Ulhoa, do Pato Fu, facilitou essa volta, já que você também é empresário do Pato Fu?
Aluizer - Como tinha produzido o CD do Arnaldo junto com o John e Rubinho Troll, recebi um convite para o Arnaldo fazer uma apresentação no evento da Tropicália de Londres, onde eles se apresentaram a primeira vez nessa volta. A partir deste convite veio um segundo para os irmãos Dias Baptista. Depois de entrar em contato com o Sergio, procurei os outros. Acabamos fechando com três Mutantes. Aí deu certo.
Alessandra - E ainda Pato Fu: muita gente sempre identificou traços inequívocos de Mutantes na banda mineira, inclusive no vocal da Fernanda Takai. Com a negativa da Rita Lee em participar do revival, parecia coerente tentar a Fernanda como vocalista nos Mutantes. Houve essa opção? Por que não aconteceu?
Aluizer - Não chegamos a fazer o convite. Era um nome dos mais cotados, mas Zélia fez uma visita antes e acabou ensaiando e deu muito certo.
Alessandra - Há quarenta anos, Mutantes eram três jovens músicos de São Paulo, que depois viraram cinco. Hoje, são dez. Essa "encorpada" na banda proporcionou que os Mutantes fizessem ao vivo coisas que não conseguiam antes, como Dom Quixote e Caminhante Noturno, que têm arranjos elaborados e que não se prestavam à formação enxuta de antes. Como essa banda nova foi formada? Você poderia dizer de onde vieram, e pelas mãos de quem, cada um dos jovens músicos incorporados ao grupo?
Aluizer - Basicamente sugerida pelo Sergio. Indiquei Simone Soul para a percussão.
Sunday, August 05, 2007
Disciplinar a guerra
.
- Alonso não vai mais largar na pole.
- Por que, mãe?
- Porque atrapalhou Hamilton, não deixou o companheiro fazer a última volta rápida.
- Ué, mas a Fórmula 1 não é isso mesmo? Um não quer deixar o outro chegar na frente...
A lógica de uma criança de sete anos é simplista, mas não deixa de ser lógica. Ao punir a esperteza sacana de Alonso, guindando Hamilton à pole, a FIA cumpriu seu papel de juiz. Há que ter alguma ética no esporte. Mas qual ética?
A justificativa da FIA para a punição: o gesto de Alonso tinha implicações diretas na luta pelo título. Por isso justifica-se uma intervenção da FIA no grid de largada para o GP da Hungria de 2007 e nenhuma ingerência no resultado do GP da Áustria de 2002, aquele em que Barrichello foi obrigado pela equipe a ceder o primeiro lugar a Schumacher. No primeiro, havia um título em jogo. No segundo, não.
Então, a ética da FIA circunscreve-se a títulos, não a gestos. Se a "paradinha" de Alonso tivesse prejudicado, digamos, Nick Heidfeld, Ralf Schumacher ou Giancarlo Fisichella, problema deles.
Então, amigos, para mim isso não é ética, é hipocrisia.
Que lavem as mãos de uma vez por todas e assumam que o esporte nada mais é que a sublimação civilizada de nossos ímpetos bélicos. É guerra, vence o melhor. Qualquer tentativa de disciplinar uma batalha é, por definição, uma batalha perdida. Pronto, falei.
- Alonso não vai mais largar na pole.
- Por que, mãe?
- Porque atrapalhou Hamilton, não deixou o companheiro fazer a última volta rápida.
- Ué, mas a Fórmula 1 não é isso mesmo? Um não quer deixar o outro chegar na frente...
A lógica de uma criança de sete anos é simplista, mas não deixa de ser lógica. Ao punir a esperteza sacana de Alonso, guindando Hamilton à pole, a FIA cumpriu seu papel de juiz. Há que ter alguma ética no esporte. Mas qual ética?
A justificativa da FIA para a punição: o gesto de Alonso tinha implicações diretas na luta pelo título. Por isso justifica-se uma intervenção da FIA no grid de largada para o GP da Hungria de 2007 e nenhuma ingerência no resultado do GP da Áustria de 2002, aquele em que Barrichello foi obrigado pela equipe a ceder o primeiro lugar a Schumacher. No primeiro, havia um título em jogo. No segundo, não.
Então, a ética da FIA circunscreve-se a títulos, não a gestos. Se a "paradinha" de Alonso tivesse prejudicado, digamos, Nick Heidfeld, Ralf Schumacher ou Giancarlo Fisichella, problema deles.
Então, amigos, para mim isso não é ética, é hipocrisia.
Que lavem as mãos de uma vez por todas e assumam que o esporte nada mais é que a sublimação civilizada de nossos ímpetos bélicos. É guerra, vence o melhor. Qualquer tentativa de disciplinar uma batalha é, por definição, uma batalha perdida. Pronto, falei.
Wednesday, August 01, 2007
Benza Deus!
.
Nesta quinta-feira, dia 2 de agosto, se fosse viva minha avó Elza completaria 88 anos. Morreu em 2000, antes de conhecer o quinto bisneto, que estava na minha barriga. De qualquer forma, aproveitou bem as oito décadas de vida terrestre que lhe couberam, sempre fugindo dos problemas. Não que tenha tido uma vida sem percalços, ninguém a tem.
O pior deles deve ter sido a perda do filho primogênito, Toninho, abatido por um mal a que ela se referia como “bucho virado” ou “espinhela caída”. Suponho que a doença fosse desidratação, hoje uma ocorrência banal, mas que dizimou milhares de crianças ainda no século 20. Mesmo com o trauma, ainda teve outros cinco filhos.
O sobrenome de solteira da vó Elza era Silva, mas bem que podia ser Coelho. Nasceu em uma família tão numerosa que é difícil contabilizar e – mais ainda – acreditar nos números relatados. Seu pai teve doze filhos com a primeira esposa. A mãe, três com o primeiro marido. Consta que a mãe perdeu marido e prole vitimados por alguma peste na viagem de navio, de Portugal para cá. Viúvos, o brasileiro e a lusitana se casaram. Daí pra frente, nunca entendi ao certo. Dizem que tiveram vinte filhos. Sim, duas dezenas. Jamais soube se foi esse descontrole natal mesmo. Fato é que, filhos de ambos, vingaram nove. Vó Elza era a terceira. Ah, sim: recentemente, alguém da família fez uma pesquisa e parece ter descoberto outros quatro filhos “naturais” do meu bisavô, o Coelho, quer dizer, Antônio da Silva.
Vó Elza nasceu em Amparo, interior de São Paulo, e lá viveu até os vinte anos, quando se casou com meu avô Antônio. Nunca mais voltou a morar na cidade natal. Mesmo assim, uns quarenta anos depois de ter saído de Amparo, sempre esticava o pescoço quando via um carro com placa de lá. “Será alguém conhecido?”.
Quando meu avô morreu, com apenas 57 anos, vó Elza tinha 56. Para mim, no entanto, ela era uma velhinha bem velhinha. Curioso é que minha mãe ficou viúva com a mesma idade e eu a achava tão nova... Minha avó era uma vovozinha. Minha mãe é uma grand-mothern, uma avó moderna, antenada, agitada. Acho que tanto mudaram as avós, que hoje são bem menos vovozinhas mesmo, quanto mudei eu, porque a idade torna tudo tão relativo, não é mesmo? Quando você tem cinco anos, 56 anos é idade de velho. Com 37, bem, estamos quase chegando lá, né?
O fato é que Vó Elza era uma avó típica: agulhas sempre em punho, parecia uma máquina de fazer crochê. Em uma tarde, pronto: um biquinho de pano de prato, uma toalhinha de bandeja, era um fenômeno. Eu gostava mais quando ela errava no tricô e precisava desfazer. Uma linha de desmontagem perfeita: um neto ia puxando a lã já tecida, outros iam esticando para não embaraçar, o último enrolava no novelo. Netos não faltavam, já que ela teve doze, seis meninas e seis meninos. Além de tricotar e crochetar, vó Elza também era ótima na pintura. Acho que não agradeci suficientemente por tantos trabalhos de Artes que ela fez e eu só dublei. Dona Zinha, minha eterna professora na matéria, devia sacar fácil que não era eu a autora de tantas obras primas, já que sempre fui muito menos que o cocô do cavalo do bandido em termos de habilidade para artes plásticas. Obrigada, vó. Desculpe, dona Zinha...
Mas vó Elza, como todas as inúmeras irmãs, era também cozinheira de mão cheia. Seu trivial era espetacular e não há quem esqueça o inigualável bolinho de batata recheado com queijo. As netas, algumas, herdamos o talento para a cozinha, embora nem todas, como eu, pratiquemos a arte regularmente. Herdei um de seus cadernos de receita, que guardo com carinho de neta e com interesse de cozinheira que voltarei a ser, um dia. Dizem, aliás, que faço seu decantado bolo de fubá tão bem quanto ela, o que sempre soou como troféu de excelência para mim.
Cuca fresca por natureza, vó Elza só parecia ter medo incontrolável de duas coisas: cobras e relâmpagos. As primeiras, mesmo que as visse só pela TV, faziam-na levantar na mesma hora as pernas para cima do sofá. Raios e trovões a dirigiam para uma espécie de ritual religioso: andava pela casa sacudindo palmas bentas da Semana Santa pelas janelas, entoando frases de louvor a Santa Bárbara, que parece ser protetora contra intempéries da natureza. Tenho a impressão de que Santa Bárbara é Iansã no candomblé e acho que tem a ver com raios e trovões, sei lá. Mas tenho certeza de que vó Elza ficou feliz, onde está, ao saber que agora tem uma bisneta chamada Bárbara.
Se via uma criança bonita e robusta, ou um belo peru assado, ou um bolo que crescia bastante ou qualquer coisa que desse sinal de beleza, fartura ou saúde, vó Elza exclamava sempre a mesma expressão: “Benza Deus!”. A frase, pelo que sei, é uma corruptela de “A benção de Deus”. Que Deus abençoe você, vó Elza, hoje e sempre!
///
E você? Tem avó? Não tem mais? Quer me falar dela? Contar alguma coisa, dar uma receitinha? Fique à vontade.
Nesta quinta-feira, dia 2 de agosto, se fosse viva minha avó Elza completaria 88 anos. Morreu em 2000, antes de conhecer o quinto bisneto, que estava na minha barriga. De qualquer forma, aproveitou bem as oito décadas de vida terrestre que lhe couberam, sempre fugindo dos problemas. Não que tenha tido uma vida sem percalços, ninguém a tem.
O pior deles deve ter sido a perda do filho primogênito, Toninho, abatido por um mal a que ela se referia como “bucho virado” ou “espinhela caída”. Suponho que a doença fosse desidratação, hoje uma ocorrência banal, mas que dizimou milhares de crianças ainda no século 20. Mesmo com o trauma, ainda teve outros cinco filhos.
O sobrenome de solteira da vó Elza era Silva, mas bem que podia ser Coelho. Nasceu em uma família tão numerosa que é difícil contabilizar e – mais ainda – acreditar nos números relatados. Seu pai teve doze filhos com a primeira esposa. A mãe, três com o primeiro marido. Consta que a mãe perdeu marido e prole vitimados por alguma peste na viagem de navio, de Portugal para cá. Viúvos, o brasileiro e a lusitana se casaram. Daí pra frente, nunca entendi ao certo. Dizem que tiveram vinte filhos. Sim, duas dezenas. Jamais soube se foi esse descontrole natal mesmo. Fato é que, filhos de ambos, vingaram nove. Vó Elza era a terceira. Ah, sim: recentemente, alguém da família fez uma pesquisa e parece ter descoberto outros quatro filhos “naturais” do meu bisavô, o Coelho, quer dizer, Antônio da Silva.
Vó Elza nasceu em Amparo, interior de São Paulo, e lá viveu até os vinte anos, quando se casou com meu avô Antônio. Nunca mais voltou a morar na cidade natal. Mesmo assim, uns quarenta anos depois de ter saído de Amparo, sempre esticava o pescoço quando via um carro com placa de lá. “Será alguém conhecido?”.
Quando meu avô morreu, com apenas 57 anos, vó Elza tinha 56. Para mim, no entanto, ela era uma velhinha bem velhinha. Curioso é que minha mãe ficou viúva com a mesma idade e eu a achava tão nova... Minha avó era uma vovozinha. Minha mãe é uma grand-mothern, uma avó moderna, antenada, agitada. Acho que tanto mudaram as avós, que hoje são bem menos vovozinhas mesmo, quanto mudei eu, porque a idade torna tudo tão relativo, não é mesmo? Quando você tem cinco anos, 56 anos é idade de velho. Com 37, bem, estamos quase chegando lá, né?
O fato é que Vó Elza era uma avó típica: agulhas sempre em punho, parecia uma máquina de fazer crochê. Em uma tarde, pronto: um biquinho de pano de prato, uma toalhinha de bandeja, era um fenômeno. Eu gostava mais quando ela errava no tricô e precisava desfazer. Uma linha de desmontagem perfeita: um neto ia puxando a lã já tecida, outros iam esticando para não embaraçar, o último enrolava no novelo. Netos não faltavam, já que ela teve doze, seis meninas e seis meninos. Além de tricotar e crochetar, vó Elza também era ótima na pintura. Acho que não agradeci suficientemente por tantos trabalhos de Artes que ela fez e eu só dublei. Dona Zinha, minha eterna professora na matéria, devia sacar fácil que não era eu a autora de tantas obras primas, já que sempre fui muito menos que o cocô do cavalo do bandido em termos de habilidade para artes plásticas. Obrigada, vó. Desculpe, dona Zinha...
Mas vó Elza, como todas as inúmeras irmãs, era também cozinheira de mão cheia. Seu trivial era espetacular e não há quem esqueça o inigualável bolinho de batata recheado com queijo. As netas, algumas, herdamos o talento para a cozinha, embora nem todas, como eu, pratiquemos a arte regularmente. Herdei um de seus cadernos de receita, que guardo com carinho de neta e com interesse de cozinheira que voltarei a ser, um dia. Dizem, aliás, que faço seu decantado bolo de fubá tão bem quanto ela, o que sempre soou como troféu de excelência para mim.
Cuca fresca por natureza, vó Elza só parecia ter medo incontrolável de duas coisas: cobras e relâmpagos. As primeiras, mesmo que as visse só pela TV, faziam-na levantar na mesma hora as pernas para cima do sofá. Raios e trovões a dirigiam para uma espécie de ritual religioso: andava pela casa sacudindo palmas bentas da Semana Santa pelas janelas, entoando frases de louvor a Santa Bárbara, que parece ser protetora contra intempéries da natureza. Tenho a impressão de que Santa Bárbara é Iansã no candomblé e acho que tem a ver com raios e trovões, sei lá. Mas tenho certeza de que vó Elza ficou feliz, onde está, ao saber que agora tem uma bisneta chamada Bárbara.
Se via uma criança bonita e robusta, ou um belo peru assado, ou um bolo que crescia bastante ou qualquer coisa que desse sinal de beleza, fartura ou saúde, vó Elza exclamava sempre a mesma expressão: “Benza Deus!”. A frase, pelo que sei, é uma corruptela de “A benção de Deus”. Que Deus abençoe você, vó Elza, hoje e sempre!
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E você? Tem avó? Não tem mais? Quer me falar dela? Contar alguma coisa, dar uma receitinha? Fique à vontade.
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