Durante todo o primário, o ritual era o mesmo: minha mãe me pegava na escola às cinco da tarde e eu entrava no carro ao som de “Take the A Train”, com a big band de Duke Ellington. É claro que, nessa época, eu não sabia o nome daquela música, nem quem era Duke Ellington. Por muitos anos, aqueles acordes eram para mim apenas “a música do programa do Zuza”, porque logo vinha o locutor informar que “aí vem o Zuza, um programa para quem tem música nas veias”.
Ouvimos todos os lançamentos da fertilíssima MPB daqueles anos 70, entrevistas com vários artistas, análises e histórias saídas do baú privilegiado de Zuza Homem de Mello, pesquisador, crítico musical e escritor que, sem exagero, foi o responsável pela minha escolha profissional. O “Programa do Zuza” fez sua estréia pela Rádio Jovem Pan AM em 1977, o ano em que cursei a primeira série. Eu ouvia o Zuza, naqueles tempos, por osmose, pura influência dos hábitos da minha mãe.
Tanto que, por dois anos, estive distante da melodia de “Take the A Train”. Foi quando passei a estudar de manhã e já não pegava carona no carro da minha mãe. Entre 1981 e 1982, aproveitava o fim de tarde para ficar escutando meus LPs recém-adquiridos, especialmente a coleção de discos da Rita Lee que ia formando. Também aproveitava que eventualmente não havia ninguém em casa – minha mãe continuava saindo no mesmo horário vespertino, para buscar meu irmão – para ensaiar meus momentos de futuro estrelato. Colocava para tocar “Sucesso, aqui vou”, da mesma Rita, e descia a escada do sobrado vislumbrando o palco que nunca pisei. Micos adolescentes: atire a primeira pedra quem não os teve.
Começo de 1983, sétima série, eu tinha de doze para treze anos. Meu pai chega em casa comentando que o Zuza ia passar a fazer um programa por mês inteiramente produzido por um ouvinte, que deveria escolher as músicas e escrever os textos. “Por que você não faz um programa sobre a Rita Lee?”, ele sugeriu. Primeiro, achei que o Zuza não levaria ao ar um programa sobre ela, que estava no auge da fama, fazendo músicas que bombavam nas paradas de sucesso.
O “Programa do Zuza” tocava de tudo, mas tinha um inegável contorno de sofisticação. Depois, achei que o crítico não perderia tempo com os rabiscos de uma garota de treze anos. Mas, sempre me vali da idéia de que o não eu já tenho, se tentar, posso ter o sim. Peguei duas folhas de papel almaço, escolhi as músicas, começando com “Domingo no Parque”, primeira aparição de impacto dos Mutantes, escrevi um textinho para cada música, fechei o envelope, selei, pus no Correio. Alea jacta est.
A sorte estava lançada, mas não pensei muito nisso. Nem passei a ouvir o programa regularmente, por conta do intento, e fiquei mesmo surpresa quando meu pai, de novo, chegou em casa e anunciou: “O Zuza vai fazer seu programa amanhã!”. Fiquei numa pilha só. No dia seguinte, uma quarta-feira, antes das cinco, postei-me ao lado do aparelho de som, fita cassete a postos, o coração aos pulos. Zuza começou o programa anunciando que se tratava de uma contribuição de “uma ouvinte de treze anos”, e repetia essa frase o tempo inteiro. Minha inseparável amiga Cynthia ouviu o programa comigo. Se a maioria das pessoas tem apenas uma vaga idéia de como e quando escolheu sua profissão, eu tenho ano, mês, dia e hora. Foi em 23 de fevereiro de 1983, às 17h, que decidi ser jornalista.

Daí pra frente, Zuza virou minha religião, minha ideologia, meu guia e meu ideal de vida. Eu queria ser Zuza quando crescesse. Todas as quartas-feiras, ele fazia o “Dia do Ouvinte”, lendo cartas e tocando músicas pedidas pela audiência. A última quarta do mês era o “Programa do Ouvinte”, como esse que escrevi e se chamou “Um pouco de Rita Lee”. Entre 1983 e 1988, quando o último “Programa do Zuza” foi ao ar, escrevi dezenas de cartas, quase todas em tons de crítica azeda e violenta. Eu era adolescente, afinal, rebeldia no último volume. Também escrevi mais uns três ou quatro programas completos. A cada programa produzido pelo ouvinte, Zuza ofertava uma fita cassete com a íntegra. Não sei o que me deixava mais feliz: ouvir meu nome no rádio ou ir até a Avenida Paulista, número 807, para buscar a fita das mãos do próprio Zuza.
Há exatos vinte anos, no dia 31 de março de 1987, uma festa oferecida pelo Zuza marcou para sempre a minha vida.
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Naquele dia, o “Programa do Zuza” completava dez anos. Ele organizou um encontro de amigos, incluindo ouvintes, no simpático bar “Inverno & Verão”, no bairro de Santo Amaro. Recebi o convite pelo correio e, claro, pedi para minha mãe me levar. Lembro de tudo: de como o sol batia naquele dia, do lugar em que sentei à mesa, da boca seca de ansiedade. Acho que eu nunca tinha ficado tão empolgada com nenhum acontecimento em meus 17 anos anteriores. Havia artistas de todos os estilos entre os convidados, mas certamente todos os presentes só tinham olhos para uma figura quase mitológica da MPB que também apareceu por lá – Geraldo Vandré.
Conheci pessoalmente os colegas ouvintes que freqüentavam o mesmo espaço das ondas do rádio, como os queridos Chico Nascimento, Nair, Rosinha, gente que parecia fazer parte do meu círculo de amigos íntimos, pela simples irmandade dos que têm música nas veias. Foi nesse dia que conheci Gê Tock, outro da turma, moço de Tietê, bacharel em direito. Mas, de cara, Gê me disse que sua profissão mesmo era músico. Estudava música e era de música que queria viver. Antes de sair, trocamos endereços e telefones. Logo começamos a enviar longas cartas manuscritas um para o outro, fazer eventuais telefonemas, gravar fitas cassetes e enviá-las pelo Correio.
Gê me fornecia rock dos anos 70, muita música mineira da turma do Clube da Esquina e me abastecia seguidamente de um som instrumental que ele mesmo me apresentou, o do guitarrista Pat Metheny. Eu devolvia com MPB das décadas de 60 e 70, Beatles e cantoras de jazz e blues, como minhas preferidas Billie Holliday e Dinah Washington. Um ano depois da histórica festa, nossa festa acabou: em fevereiro de 1988, Zuza apresentou a última edição de seu programa diário. Foi no mesmo mês que passei no vestibular para Jornalismo. A amizade com Gê, no entanto, tinha alçado vôo próprio. Nos anos seguintes, cursei a faculdade, Gê cumpriu o objetivo de viver de música e hoje é professor do respeitado Conservatório Musical de Tatuí, além de guitarrista da Big Band da instituição. Já gravou dois CDs independentes, é excelente instrumentista e compositor, um querido anfitrião nas visitas periódicas a Tietê, foi meu padrinho de casamento. Acima de tudo isso, um amigo querido, dos que têm música nas veias, há exatos vinte anos.
Obrigada, Zuza!