Tuesday, October 28, 2014

Sabedoria lusitana

Portuguesa, vice-campeã do Brasileiro de 1996
Era um daqueles finais de tarde de caos em São Paulo. Dezembro, uma chuva de verão pesada, trânsito travado. Eu trabalhava no Centro Empresarial e morava em Santana. Em linha reta, uns 25 km. Nas rotas tortas para fugir dos congestionamentos, podia ultrapassar os 35, fácil. Naquele dia, nem rota alternativa salvaria. Saí do trabalho às seis da tarde. Eram mais de nove e eu ainda não tinha nem atravessado o Rio Tietê. Minha aflição não era a chuva, mas o jogo. A Portuguesa entraria em campo em poucos minutos para a primeira partida da final do Campeonato Brasileiro, contra o Grêmio

Seria a primeira final da Lusa que eu assistiria com meu pai, torcedor do time. Na única vez em que isso aconteceu, 1973, eu era pequena demais, não tinha nenhuma lembrança da conturbada final do Paulista daquele ano, quando o juiz Armando Marques errou na contagem dos pênaltis no jogo contra o Santos. Um pai torcedor da Lusa. Era como ter um pai astronauta. Ou cantor de ópera. Ou mergulhador em águas profundas. Dificilmente alguém diria: ah, meu pai também. Dava um sentimento de diferenciação, eu me sentia exótica.

O jogo começou e eu lá, na Avenida Tiradentes, na frente da Pinacoteca. O primeiro tempo estava quase acabando quando Alexandre Gallo abriu o placar para a Lusa. Ouvindo, pelo rádio do carro, pulei, vibrei, soquei o volante e acho até que buzinei. Veio o intervalo e consegui cruzar o rio. O trânsito clareou, corri para a casa dos meus pais, certa de que o encontraria com os olhos grudados na TV. Entro e dou de cara com ele lavando a louça do jantar. Nem TV, nem rádio ligado. Mais por fora que jornalista em férias.

"Você não está vendo o jogo? A Lusa está ganhando! Já começou o segundo tempo", explodi em indignação e pressa. "Ah, não...", falou calmamente, enquanto continuava enxaguando uma panela. Entendi o humor dele no mesmo instante. Era calmo, otimista, gentil, simpático. E sábio. Tinha uma tática infalível para acompanhar os jogos da Portuguesa e manter-se sempre contente. Não assistir. "Se ganha, fico feliz. Se perde, fico feliz por não ter perdido meu tempo." Estava nessa vibração. Mas eu, não.

Assisti ao final do segundo tempo. Rodrigo Fabri ampliou o placar e a Lusa voou para Porto Alegre com um sólido 2 x 0 na bagagem. Lá, o Grêmio repetiu o placar. Tinha a vantagem do empate, ficou com o título. Não vi o time do meu pai ser campeão e minha ansiedade em assistir ao jogo com ele parecia carregada de intuição. Menos de quatro anos depois, eu já não teria meu pai vivo. Era naquela hora ou nunca.

Sempre gostei de esportes por influência dele. Víamos futebol, mas também corridas de Fórmula 1, ainda na era Emerson Fittipaldi, Copas, Olimpíadas, inventávamos superstições para serem quebradas, ele vinha com bacias de pipoca. Dos 30 anos que convivi com ele, quantos foram passados em frente a TV, com uma bola rolando ou rodas girando? Assistir àquele jogo, comemorar o título com ele seria uma forma de retribuir o gosto pelo esporte e sua generosidade em nunca nos impor seu time. Sabia que seria sofrimento eterno.

Anos depois, conversando com minha tia, irmã mais velha dele, ela revelou que meu avô era torcedor do Corinthians. Português, encantou-se pelo time de operários quando aqui chegou. Meu pai nasceu, meu avô já tinha passado dos 50. Tinha tempo de levar o caçula para passear nos charcos do Ibirapuera, onde, anos depois, seria inaugurado o parque. A Portuguesa, que ainda não tinha comprado o Canindé, treinava o time de futebol nos campos de várzea daquela área. Meu pai viu os jogadores, encantou-se pelo time que tinhas as cores da bandeira paterna. Virou torcedor luso. Meu avô, vendo o paradoxo, renegou o alvinegro e abraçou o time do filho. A história soou como grande relevação para mim, que sempre imaginei o óbvio: meu pai se tornara torcedor luso por causa do pai, e era o contrário.

Hoje, 28 de outubro de 2014, a Portuguesa foi rebaixada para a Série C do Campeonato Brasileiro. Fiquei triste, como meu pai provavelmente ficaria. Mas estaria ocupado com alguma outra coisa - talvez lavando louça ou brincando com os netos que não conheceu - e certamente daria para a queda a mesma atenção que deu para aquela Lusa finalista de 18 anos atrás. Nem tão triste com a derrota, nem eufórico com a perspectiva da vitória. Eu disse: era sábio. Talvez a qualidade mais em falta no Canindé, atualmente.

Sunday, October 19, 2014

Sobreviventes

Minha segunda medalha em maratonas
Em 8 de julho de 2012, quando concluí minha primeira maratona, no Rio, tive certeza de que aquela experiência tinha sido a única e que eu já estava feliz por ter completado uma prova de 42.195 metros. Passei 2013 fazendo algumas corridas de 10 km, feliz por terminá-las, além de completar minha sexta São Silvestre. Mas eis que 2014 chegou e a coceira voltou. Resolvi fazer mais uma maratona.

Depois de trocar ideias com os amigos Elisabete e Ricardo Capriotti (ele, meu chefe na Rádio Bandeirantes), decidi correr a Maratona de Buenos Aires, que foi a maratona de estreia de ambos. Totalmente plana, a prova se encaixava no meu calendário para 2014, marcada para o dia 12 de outubro. Eu precisaria abrir mão de comentar o GP da Rússia, que aconteceria no mesmo dia, mas paciência. Em 2012, também precisei faltar a um GP da Inglaterra, no caso. Estava tudo planejado, e comecei a treinar. Março de 2014.

Meu velho amigo Nelson Evencio aceitou a empreitada e me incluí entre os atletas amadores da sua assessoria. Na primeira maratona, tive a orientação da amiga Martha Maria Dallari. Nelson é presidente da Associação de Treinadores de Corrida de São Paulo. Martha foi sua vice por muito tempo, até se mudar para Brasília, no final de 2013. Ou seja, eu estava em ótimas mãos.

Tudo planejado

Logo que comecei a treinar, chegou às lojas o CD “Coração a Batucar”, da Maria Rita. Ganhei-o em uma sexta. No sábado, fui ouvindo no caminho, para a Cidade Universitária, onde treinei religiosamente aos sábados nos últimos meses. Sábado, antes das sete da manhã, não tem trânsito. Isso me permitia associar cada uma das 13 faixas a pontos do meu trajeto.

Começava na rua de casa, com a faixa de abertura, “Meu samba, sim, senhor", e ia até terminar o disco, já no caminho de volta, com “É corpo, é alma, é religião”, perto da Ponte da Anhanguera. Cada faixa caía quase sempre no mesmo ponto, coisa que só pode acontecer em São Paulo em um sábado de manhã. Para completar o caminho de volta, eu ouvia algumas músicas do CD da cantora de 2007, “Samba meu”. Ou seja, passei o treino inteiro escutando samba e não tango, da Buenos Aires que me receberia nos planos originais. Um sinal?

Chega o mês de agosto e uma série de questões pessoais e profissionais me faz mudar os planos. Ficaria inviável ir para a Argentina naquele período, e eu, depois de conversar com meu treinador, resolvi adiar minha maratona por uma semana, disputando a prova de São Paulo, que não era plana como a prova portenha. A ideia inicial, de tentar buscar um tempo abaixo de 4 horas (fiz a prova do Rio em 4h18) também foi engavetada. Se fizesse abaixo dessa primeira marca, eu já estaria feliz.

Treinos seguidos à risca, fui colhendo resultados cada vez melhores. Nelson me transmitia confiança de que era possível melhorar a marca e eu, de fato, me sentia muito confiante. Naquela altura, só por ter conseguido manter o plano de fazer uma maratona em 2014, eu já estava feliz. Mas não ficaria chateada se derrubasse meu recorde pessoal. Uns dez dias antes da prova, conversando com o Capriotti na rádio, ele sacou seu celular e checou a previsão do tempo para o dia corrida. “Más notícias...”. A previsão de máxima era de muitos graus em São Paulo, mais a condição de tempo seco que tem sido uma constante na cidade nos últimos meses. Parecia que ia ser uma prova difícil. Mas acho que ninguém poderia supor que seria tanto.

A largada, marcada para as 8h, na verdade aconteceu às 7h, pois o domingo foi o primeiro dia do horário de verão. Menos mal. Alguns minutos antes, Nelson me informou que os termômetros já marcavam 28 graus. A estratégia estava traçada e o técnico não se importou em repetir várias vezes: “se precisar, ande. Se piorar, pare. E vá se hidratando o tempo todo”. Eu repeti a ele o mesmo que havia escrito para a amiga Bete, na véspera: uma semana antes, minha mãe estava internada, com pneumonia. Passei parte do domingo com ela, no hospital. Hoje, só por tê-la bem, em casa, e eu lá, na frente do Obelisco do Ibirapuera, meu lucro já era imenso. Fique tranquilo. Vou correr para agradecer e me divertir.

A vida é dura para quem é mole

Sempre começo minhas provas em ritmo moderado, pensando em me poupar para o final. Seria cretinice fazer isso desta vez. Ou eu corria o que pudesse no começo, ou não teria condições de fazê-lo no final, pois o céu era de brigadeiro em São Paulo, um sol pra cada um. Aqueles 28 graus do começo deixariam saudade. Corri os primeiros 15 km sempre com ritmo entre 5’30 e 5’40. A primeira ameaça de boicote mental surgiu no final da avenida da raia, na USP.

Correr na Avenida Escola Politécnica é sempre um desafio. Quase sem sombras, a via habitualmente “quebra” alguns atletas. Politécnica: escola que forma engenheiros. “Seu pai era engenheiro. Não vai ser essa avenida que vai te derrubar”. O anjinho ia vencendo fácil a parada quando o diabinho sussurrou. “É, mas seu pai não fez a Poli, fez Mackenzie.” Eita... “Mas era engenheiro”, gritou o anjinho. E segui feliz.

Completei a primeira metade da prova tranquila, mantendo o bom ritmo dos primeiros quilômetros. A programação da Maratona Internacional de São Paulo incluía outras duas provas: uma de 10 km e outra de 25 km. Perto dos 25, o calor já estava forte, eu já havia andado algumas vezes pela avenida do Jóquei Clube e então encontrei o Nelson, que me esperava com Gatorade e gel de carboidrato (eu já havia consumido os dois sachês que levara no bolso do calção).

Quando cheguei perto do treinador e ele me perguntou como estava, fui sincera. “Está f...”. Junto com ele, dois integrantes da equipe Saúde & Performance. Um deles me repreendeu: “Não está, não! Você vai conseguir! A vida é dura para quem é mole!” Não pude discordar, e segui para a Marginal Pinheiros, também conhecida como a filial do inferno neste domingo paulistano.

Aos sobreviventes, as batatas

Não deixa de ser uma vingancinha saborosa correr pela pista expressa da Marginal Pinheiros ditando a ela o meu ritmo, e não ficando parada em seus habituais congestionamentos. Para acessá-la, precisamos subir o viaduto que fica ao lado de um shopping relativamente novo na cidade. Foi a segunda vez que andei na prova. Voltei a correr ao chegar à Marginal, indo na direção da Avenida Rebouças. Encontrei o Nelson mais uma vez, que parecia teletransportar-se naquele cenário insólito.

O técnico Nelson Evêncio, salvando sua atleta da desidratação


Perto do km 30, a organização da prova oferecia batatinhas cozidas com sal aos corredores. Sempre achei essas batatinhas-aperitivo algo bem sem graça. Não haveria de ser em plena Marginal Pinheiros, com aquela catinga do rio, que eu haveria de apreciar tal iguaria. Mais de 30 km, com sol a pino, tendo como sombra apenas os baixos das pontes, o físico começou a pifar. Alternei corridas e caminhadas. Em uma desses trechos em que só caminhava, uma colega passou por mim e disse: “vem, não desanima!”. E eu respondi que sim, eu iria, só estava me recuperando um pouco.

Não sei se ela também parou, ou diminuiu o ritmo, o fato é que voltei a correr e a encontrei. “Não disse que eu ia continuar?”, perguntei. E fomos correndo juntas. E começamos a conversar, o que nos permitiu encontrar um ritmo ideal para continuar correndo. Só esquecemos de combinar com o sol, que continuava fritando nossos miolos. E passamos a alternar corrida e caminhada, cientes de que, àquela altura, por volta do km 35, essa era a melhor técnica.

Descobri que ela já fez Iron Man, correu Maresias-Bertioga (75 km) solo, tem um filho de três anos. De mim, ela descobriu que aquela era minha segunda maratona, que corro há doze anos e que tenho um filho de 14. E assim fomos vencendo o inferno da Marginal Pinheiros. Quase no final daquele trajeto que percorri hoje pela manhã, mas parecer ter sido há uns três anos, porque não acabava nunca, quem surge? O onipresente Nelson, claro. O arsenal variava, e agora ele surgia com uma Coca. Eu já estava mareada de tanta água e isotônico. Nem sou fã de refrigerante, mas caiu bem à beça (à benção, Martha Maria Dallari, entusiasta da hidratação de emergência à base de refrigerante de cola).

Era hora de subir o demoníaco viaduto de novo, e fomos andando. Ao chegar à avenida Juscelino Kubitschek, km 39, a irresistível sensação de que a prova estava liquidada. Nós também estávamos, mas ignoramos esse detalhe. Foi então que nos apresentamos formalmente. Simone, Alessandra. Nelson ainda surgiu mais uma vez, agora para me dar mais Coca e um bolinho. E não foi mais embora. Estava inscrito na prova e me acompanhou quase até o final. Um cavalheiro, sumiu de cena quando a linha de chegada de aproximava. Depois, disse que os atletas daquela maratona não eram participantes, mas sobreviventes. E que, durante muitos anos, vamos lembrar desse inferno seco pelas ruas da minha São Paulo. 

Ao longo da corrida, a ideia de correr abaixo de 4 horas pareceu um devaneio. Debaixo do sol da Marginal Pinheiros, superar as 4h18 surgiu como improvável. Eu só queria terminar. Inteira (podia ser inteiramente estropiada, não tinha problema, só não queria abandonar). Cruzei a linha de chegada com 4h58, debaixo do maior calor que já senti na vida. Pouco antes, Edu me esperava. Acenei para ele. Gabriel ficou com a minha mãe, na casa dela, para minha tranquilidade. Liguei para lá e ele me perguntou como foi: “pior que parto normal!” Ele riu e sugeriu: “na próxima vez, tenha outro filho, em vez de correr outra maratona!”


Claro que, no momento, vivencio a certeza de que esta foi a última maratona da minha vida. Claro que não será. Mas uma impressão eu espero que se confirme: corri a maratona mais difícil da minha vida.