"Corra!", longa de estreia de Jordan Peele |
Pessoas brancas que sempre fizeram três refeições por dia e
frequentaram a escola poderão ter dificuldade em perceber que a primeira
sequência de “Corra!”, escrito e roteirizado por Jordan Peele contém alta concentração de ironia. Nela, um jovem negro percorre ruas
de um bairro de classe média falando ao celular até perceber que está sendo
seguido por um carro de luxo. O desfecho da cena reflete o horror que pessoas
brancas costumam experimentar, na vida real, ao frequentar bairros pobres,
falando ao celular, seguidas por veículos populares caindo aos pedaços.
Mas esta relação inversa dificilmente saltará aos olhos da
maior parte da plateia. Falamos em horror? Pois é disso que se trata. A ilação
social a partir da sequência de abertura brotará mais tarde, porque rapidamente
todos os elementos de um filme de horror serão enfileirados, jogando o
espectador em uma atmosfera de suspense e incompreensão irresistível.
O jovem fotógrafo negro Chris Washington (Daniel Kaluuya) namora
Rose Armitage (Allison Williams), uma garota branca que o convida a passar o
fim de semana na casa dos pais, um neurocirurgião e uma psiquiatra (Bradley
Witford e Catherine Keener). A tensão de visitar a família da namorada no
interior é compartilhada com o amigo Rod (LilRel Howery), um agente da polícia
especial que atua em aeroportos. Ainda que Rose tenha tranquilizado Chris
quanto à receptividade dos pais em relação à questão racial (“Meu pai votaria
em Obama uma terceira vez se pudesse”), Chris logo percebe que há algo de
errado e sinistro naquela casa, com aquela família e com as pessoas que a
frequentam.
O negro no centro das atenções: fetiche |
Um dos aspectos mais admiráveis de “Corra!” é nunca esconder
sua intenção em ser um filme de horror: estão lá as cenas no escuro, a
alternância entre normalidade e suspense, os planos fechados na expressão dos
personagens, o design sonoro que não se furta em plantar acordes sinistros e
trilhas em crescendo com a nítida
intenção de preparar ou de assustar o espectador. Mas “Corra!” é muito mais que
um filme de terror, pois ao lado da trama surrealista está o horror social
adjacente da sociedade norte-americana.
Não é à toa que, logo no início do filme, o pai de Rose faça
referência a Jesse Owens, o atleta negro norte-americano que humilhou Hitler na
Olimpíada de Berlim, em 1936. Ao expor o orgulho ianque que derrotou o nazismo,
enaltecendo a força física dos afrodescendentes, o neurocirurgião expõe o
fetiche da sociedade americana pelos negros, e sua tendência/desejo/obsessão em
dominá-los.
E é igualmente notável que o diretor e roteirista Jordan
Peele utilize alegorias tão sutis para estabelecer esta relação. Pois se a
jovem Rose atrai Chris para o centro dessa estranha sociedade valendo-se
basicamente de um canto de sereia fundamentado em sedução e inocência (o
domínio do corpo), será pela hipnose (o domínio da mente) que a estratégia
daquele estranho grupo deverá se consolidar.
A transformação de Rose, por sinal, é evidente no terceiro ato do filme e reforça a intenção de crueldade por trás dos primeiros gestos. A moça de franja, com visual inocente e quase infantil (ela chega a usar uma blusa listrada idêntica à do personagem principal de “Onde está Wally?”) torna-se uma mulher séria, com a testa à mostra, já sem a preocupação de esconder-se por trás de uma fachada cuja função era meramente atrair aquele incauto.
Rose, enquanto "Wally" |
Também sutil, a relação caça/caçador plantada no início da trama fecha-se lindamente ao seu final, quando Chris utiliza justamente a cabeça de um animal empalhado para dar cabo de um de seus algozes, incutindo a possibilidade de reação a essa parcela oprimida da sociedade. Em um personagem, o resumo de uma longa trajetória de
subserviência: da escravidão dos primórdios (o corpo) à doutrinação pós-moderna
(a mente, dominada por conceitos que se espalham desde o discurso abertamente
racista de parte daquela nação até os apelos da sociedade consumista espraiados
indistintamente, e que seguem escravizando esse enorme contingente social).
Mesmo que “Corra!” opte por resolver a trama com recursos um
tanto preguiçosos de roteiro (a indefectível caixa guardada em um sótão que
revela um segredo; o personagem nitidamente plantado para esclarecer a trama ao
protagonista), o longa de estreia de Jordan Peele é daqueles filmes que elevam
a obra de arte à categoria de elemento detonador de reflexão. Ainda que a arte,
por definição, não precise se prestar a nada, tendo fim em si mesma, certos
produtos não se contêm, pela natureza de sua narrativa. Basta ter olhos,
ouvidos e sensibilidade para embarcar junto com eles.