Monday, January 27, 2014

AíPod: para deixar Wagner de boca aberta


Se o termo existisse no século 19, seria possível descrever Richard Wagner como um artista multimídia. Maestro, compositor, diretor de teatro e escritor, Wagner tornou-se um daqueles imortais em função de suas óperas. Sua obra-prima - "O anel do Nibelungo" - é uma tetralogia que inclui as óperas "O ouro do Reno", "As valquírias", "Siegfried" e "O crepúsculo dos Deus". Wagner criava sob o conceito de "obra de arte total", enxergando a ópera como a expressão completa da arte, reunindo música, teatro, poesia e artes plásticas.

Bem, estamos no século 21. Não que as óperas tenham caducado como gênero. Atualizações são possíveis e bem-vindas, e mesmo as montagens mais convencionais mantêm seu público. Em 2012, assisti a uma montagem de "Crepúsculo dos Deuses" que incorporava elementos do bumba-meu-boi e colocava Siegfried vestindo calça jeans. O que parece distante, hoje, é engessar um criador no formato tradicional da ópera: uma história (dramática ou bufa), contada sob a forma de música, apoiada em recursos cênicos convencionais (cenário, figurino, iluminação). O que não quer dizer que se tenha perdido o conceito de "obra de arte total".

Até Wagner concordaria. Quer ver?

Em vez de orquestra, coloque uma banda com cinco músicos. No lugar de uma história linear, várias pequenas situações aglutinadas. Em vez de cenários estáticos, por que não lançar mão de telões no fundo do palco? E já que vivemos em uma era verdadeiramente multimídia, o que nos impede de multiplicar as formas de interação entre os atores com recursos como tablets e webcam? Como na ópera, lance mão de atores/cantores, se possível que dancem também. Porque, afinal, a atuação humana continua sendo insubstituível. História, música, cenário, bel canto e interpretação: o espetáculo "AíPod", em cartaz no Teatro do Mube, pode até não ser uma ópera, mas desafio quem for assisti-lo a dizer que ali não está, redivivo, o conceito da "obra de arte total".

A concepção do espetáculo é do ator e diretor Edu Berton. No libreto (ops, folheto) do espetáculo, ele deixa claro que se trata de uma criação coletiva. Além de criador da peça/show/espetáculo multimídia, Edu é um extraordinário ator, que se transmuta de locutor a personagem de rádio novela, passando por criações impagáveis como um calouro de programas tipo "The Voice", além da hilária imitação (incorporação?) do cantor Renato Russo.

Ao lado do ator/diretor, a atriz, cantora e bailarina Simone Gutierrez. (Uma historinha rápida, antes: Simone está atualmente no ar na novela Joia Rara, da TV Globo. Sigo a trama pelo menos duas vezes por semana, religiosamente quando estou correndo na esteira da academia. Dia desses, em uma cena de casamento, a personagem de Simone começa a cantar a "Ave Maria" de Gounod. Confesso que não sabia que a atriz era também cantora e fiquei atônita com a potência de sua voz, sua afinação, em resumo, era uma diva na TV. Sou dessas: comecei a chorar enquanto corria! Sigo Simone no Twitter e perguntei se era ela mesma cantando. Respondeu que sim e eu imediatamente me candidatei a vê-la ao vivo quando ela estivesse em um musical. "AíPod" reestrearia na semana seguinte. Fui ver a peça sem ter muita informação.)

Oh, boy...

Além do conceito inovador (seria isso a ópera do século 21?), fiquei encantada com a qualidade dos músicos - Cézar Benzoni (violão e bandolim), JP Silvestre (bateria e percussão), André Sangiovanni (baixo), Luiz Panini (guitarra) e André Hã (teclados), além do próprio Edu Berton, que em alguns números também toca violão e teclado (!). É fraco o rapaz... Além de serem músicos extraordinários, mostram a criatividade ao criar arranjos que literalmente recriam canções de maneira instigante, subversiva até. Lembra de "Chega de Saudade", praticamente uma pedra fundamental da Bossa Nova. Esqueça. Aqui, é puro rock'n'roll. Gente competente como a banda AíPod pega canções pop-chiclete e as transforma em obras de relevo. Eu nunca daria muita coisa por "True Colours", da Cindy Lauper, ou por "Faith", do George Michael, e eles reabilitaram meus ouvidos (preconceituosos?) para essas verdadeiras pérolas.

Mas, Simone... Caramba! Quando for ver o espetáculo, você, amigo leitor, já estará hipnotizado pela capacidade que ela tem de fazer rir e emocionar na mesma intensidade. E de como canta bem qualquer estilo, em português e em inglês. Mas quando ela começar a cantar "Dirty man", de Joss Stone, lá no céu (e no telão) Alberta Hunter estará abençoando. E quem estiver na plateia precisará se beliscar para ter certeza de que tanta voz cabe em uma mulher de um metro e meio de altura. Se você tiver sorte, não precisa se beliscar a si mesmo. Talvez ela mesma o faça. E mais não digo!

Como radialista, apaixonada por esse veículo, não tinha como eu não me encantar com "AíPod". Como amante de música, que aos 13 anos decidiu ser jornalista por influência do programa de Zuza Homem de Mello na rádio Jovem Pan, eu só podia mesmo me apaixonar pelo espetáculo. Mesmo que você nem goste tanto assim de rádio, ou de ópera, ou de viajar na maionese como eu, um conselho: vá ver AíPod. Porque você pode não gostar muito de nada disso, mas se gosta de você mesmo, mereça esse presente.

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