Sempre que vou a um espetáculo e tenho a chance de conversar
com os artistas, eu agradeço, elogio, agradeço, tiro fotos (quando dá),
agradeço, agradeço e agradeço. Fica parecendo que me tornei tímida – o que não
sou – ou que, de tão emocionada, perdi as palavras. Logo eu, que tenho as
palavras como ferramenta de ofício. Nada disso. Acho que agradecer muito é o
mínimo, pelo genuíno exercício de doação que é um artista no palco.
No domingo passado, no entanto, vi mais que doação. O que
Aretha Marcos fez no palco do Teatro Décio de Almeida Prado foi expor uma
mistura de saudade, alegria, tristeza, tensão, orgulho, alegria, prazer e tudo
o que se revela quando se abre a portinha da memória afetiva. Quantos de nós já
não experimentamos uma sensação parecia ao folhear um livro velho ou remexer em
uma gaveta e encontrar um papel de bombom guardado? Pode ser reconfortante,
instigante, melancólico, alegre ou triste remexer seu passado. A diferença é
que a maioria de nós – os sem-palco – faz isso no conforto de casa, na penumbra
dos nossos esconderijos preferidos.
Aretha criou um espetáculo para homenagear seu pai, o cantor
e compositor Antonio Marcos, morto em 1992, antes de completar 47 anos. Como
muitos da minha geração, conheci Aretha há mais de trinta anos, quando a filha
da Vanusa e do Toninho estrelou o especial “A arca de Noé”, da Rede Globo.
Virou celebridade na época, gravou seus primeiros discos solo, mas foi se
distanciando da fama. Muitos anos depois, por meio do jornalista Pedro
Alexandre Sanches, descobri que Aretha não apenas continuava cantando como
tinha se tornado uma extraordinária cantora. Vi um show dela em 2011, comprei seu
CD e passei a ficar atenta às suas apresentações. Só consegui voltar a vê-la ao
vivo um ano depois desse primeiro show, no mesmo teatro.
Ao escolher “Como vai você” para abrir o espetáculo,
sabiamente Aretha coloca a plateia no mesmo plano emotivo em que ela pisa no
palco. Uma das canções mais conhecidas de Antonio Marcos, “Como vai você”
comove pela declaração de amor e saudade, pela evocação de um amor que se
sugere incompleto, irrealizado (“não deixe tanta vida pra depois”), ou
simplesmente sofrido pela distância de alguns dias, algumas horas. “Como vai
você” comove ao transportar o público para a sua própria história com aquela
música de trilha sonora, para suas próprias reminiscências.
Aretha é sábia ao elevar a plateia à sua emoção, porque logo
se vê no palco uma cantora sensibilizada, meio tensa, muito tocada pelo
reencontro com o pai. Dali pra frente, estamos todos no mesmo trem desgovernado
das recordações, com a grande diferença que qualquer um ali podia dar vexame,
soluçar, limpar o nariz, e a boneca lá, firme, sem poder esquecer a letra ou
desafinar.
Sempre achei incrível como Elis Regina conseguia cantar e
chorar ao mesmo tempo, sem descer do salto, como fez em “Atrás da porta”, em um
histórico especial da rede Globo. Gal Costa, certa vez, disse que não conseguia
entender como Elis fazia isso. Aretha talvez possa explicar. No começo do show,
ela ainda avisa que deixou algumas canções de lado por não suportar a emoção
que lhe provocam. O que não a isentou de cantar chorando (chorar cantando?) algumas
delas, como “Menina de trança”.
Entre canções e histórias, Aretha expõe um pouco da sua
relação com o pai, lê um poema escrito por ele quando ela completou 15 anos,
reverencia sua carreira, seu gênio inquieto. Lamenta a ausência, mas sobretudo
enaltece a obra e se enxerga fruto – pessoa e artista – desse criador que, aos
olhos reducionistas da maioria, foi mais um que morreu cedo por causa do vício.
Aretha não embarca nessa. Enxerga a sensibilidade do pai como grande trunfo de
sua obra artística e a celebra. Mergulha nas canções feitas ou tornadas sucesso
pelo pai e se encontra com ele em características comuns evidentes – a intensidade,
a teatralidade, o vozeirão.
Esse encontro explode na interpretação de uma música já
tornada um ícone da carreira de Aretha Marcos. “Non, je ne regrette rien”, de
Edith Piaf. A letra fala de um passado superado, sem arrependimentos, sem mágoas.
Poderia ser uma ruptura com a história – sensível e sofrida – do homenageado. Mas,
de novo, seria reduzir demais a complexidade dessa relação. O verso final da
canção de Piaf revela um recomeço. “Pois minha vida, minhas alegrias, hoje
começam com você”. Revisitar (redescobrir?) Antonio Marcos é combustível para
esta magnífica cantora que não se arrepende de nada – do início precoce, do
distanciamento da fama, de continuar cantando, muito menos da história triste e
precocemente interrompida do pai. Do limão, essa moça sabe fazer a melhor
limonada. E faz isso ali, na nossa frente. O que nos resta, meros espectadores?
Agradecer, agradecer, agradecer.