Vou fazer este post à moda de Caetano Veloso. O objeto do texto é outro mas, como o poeta, vou começar falando de mim. Claro, porque Caetano Veloso é capaz de dedicar uma canção à ex-mulher (Branquinha), tendo ele mesmo como foco da poesia em toda a primeira estrofe (Eu sou apenas um velho baiano, um fulano, um Caetano, um mano qualquer, vou contra a via, canto contra a melodia, nado contra a maré...).
Eu sou apenas uma paulistana da Zona Norte, nascida e crescida em uma família de classe média do bairro de Santana. (Meu colega Eduardo Castro diz, com muita propriedade, que quem tem casa própria, carro e estuda em escola particular é rico. Bem, tive tudo isso desde sempre, talvez eu seja rica, mas cresci ouvindo que era de classe média, então vou me identificar assim). Estudei durante 14 anos em um colégio de freiras, fui aluna exemplar, chamada pela turma de CDF mesmo, do tipo que ficava arrasada se não fechasse todas as matérias no terceiro bimestre. E tão chateada quanto se não tirasse notas igualmente soberbas no quarto bimestre. Em resumo, eu era uma xarope.
Daí que resolvi estudar jornalismo e fui, sem escala, do Colégio Santana, onde não se podia usar meia três quartos abaixada, para a Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, com uma concentração de malucos menor só que a da FFLCH e de alguns manicômios, nesta ordem. Na semana de integração, fomos recebidos por alunos veteranos que achavam bobagem aplicar trote nos “bichos”, e apenas se juntavam a nós para debates ditos culturais, nos quais falávamos sobre temas relevantes, como a Perestroika, os rumos da educação pública, Escola de Frankfurt etc. Eu ficava inquieta por pensar que, ali, ninguém parecia se interessar muito pelo novo carro da McLaren que, naquele início de 1988, surgia como máquina imbatível. Em determinado ponto do debate, um dos alunos referiu-se a certa professora como “uma puta professora”, e a santanense recém-saída do quase-convento ruborizou-se porque, naquela altura, dizer que alguém era uma “puta professora” equivalia a vários pontos negativos na caderneta, talvez suspensão, certamente admoestação na frente dos pais, quiçá expulsão.
Meu choque de realidades foi, de fato, uma enorme frustração. O desejo de partir de um colégio de bairro, rígido em suas normas de educação e moral, para uma instituição humanista em que se cultivasse a criatividade e se cultuasse a liberdade resultou em anticlímax. A ECA/USP era uma faculdade de burguesinhos que só pareciam diferentes de mim pelos bairros em que moravam. Poucas vagas, um vestibular difícil, fórmula ideal: só os CDFs das “melhores escolas” de São Paulo conseguiam seu lugar lá. Minha vontade de ser rebelde esvaiu-se logo e o máximo de insurreição que eu conseguia era falar de futebol e de Fórmula 1 em um ambiente no qual todos pareciam candidatos a editor da Ilustrada.
Em resumo, my friends, Daniel Cohn-Bendit teria vergonha do meu passado estudantil. Não fui rebelde, nunca participei de manifestação nenhuma.
Isso até 2 de novembro de 2011.
Nesse dia, insurgentes de diversas idades, muitos de nós jornalistas, tomamos a Avenida Paulista para protestar contra a mudança de percurso da Corrida de São Silvestre, esta sim, o objeto deste texto. (Tal suspense nem o Caetano conseguiria. Ou não...).
Foi na Avenida Paulista, em frente ao prédio da Fundação Cásper Líbero, que ouvi um policial se referir ao nosso grupo como “manifestantes”. Eu sabia que tinha 15 km à frente para vencer, imaginava que nosso protesto tinha pouca chance de reverter a decisão da organização, de tirar a chegada da São Silvestre da Avenida Paulista, mas subitamente me tomei de orgulho e coragem.
Manifestante!
Nosso maio de 68 atraiu cerca de 300 pessoas às 7h da manhã, fazia um frio danado, juntaram-se a nós o mítico José João da Silva, duas vezes vencedor da São Silvestre, e o senador Eduardo Suplicy. Em vez de descer o cassetete nos manifestantes, a polícia nos ajudou a fazer o percurso da “antiga” São Silvestre, interrompendo cruzamentos e isolando faixas nas principais avenidas para corrermos com segurança.
A São Silvestre de 2011, afinal, vai mesmo terminar no Obelisco do Ibirapuera, como tantas outras corridas que fazemos ao longo do ano. Continuo achando um equívoco o percurso atual, cheio de declives perigosos. Vencer a Brigadeiro e ganhar a Paulista não estará entre as glórias dos atletas deste ano. E quem já fez esta prova sabe o que isso significa. São coisas da vida...
A semente dos rebeldes foi plantada, o alerta dos especialistas foi feito. Graças a este movimento, conheci pessoas incríveis e me aproximei de outras, reforcei laços. Todos queremos o mesmo: o bem da nossa maior e mais famosa corrida. Aos amigos que participaram do grupo, tenham certeza: este foi um dos melhores momentos de 2011 para mim.
Ainda que tenha tido pouco efeito prático, com licença, estou em paz. Sou manifestante, mais respeito, por favor. A todos, um feliz 2012. E como já é tradição neste blog, a imagem da aniversariante de 31 de dezembro.
Eu sou apenas uma paulistana da Zona Norte, nascida e crescida em uma família de classe média do bairro de Santana. (Meu colega Eduardo Castro diz, com muita propriedade, que quem tem casa própria, carro e estuda em escola particular é rico. Bem, tive tudo isso desde sempre, talvez eu seja rica, mas cresci ouvindo que era de classe média, então vou me identificar assim). Estudei durante 14 anos em um colégio de freiras, fui aluna exemplar, chamada pela turma de CDF mesmo, do tipo que ficava arrasada se não fechasse todas as matérias no terceiro bimestre. E tão chateada quanto se não tirasse notas igualmente soberbas no quarto bimestre. Em resumo, eu era uma xarope.
Daí que resolvi estudar jornalismo e fui, sem escala, do Colégio Santana, onde não se podia usar meia três quartos abaixada, para a Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, com uma concentração de malucos menor só que a da FFLCH e de alguns manicômios, nesta ordem. Na semana de integração, fomos recebidos por alunos veteranos que achavam bobagem aplicar trote nos “bichos”, e apenas se juntavam a nós para debates ditos culturais, nos quais falávamos sobre temas relevantes, como a Perestroika, os rumos da educação pública, Escola de Frankfurt etc. Eu ficava inquieta por pensar que, ali, ninguém parecia se interessar muito pelo novo carro da McLaren que, naquele início de 1988, surgia como máquina imbatível. Em determinado ponto do debate, um dos alunos referiu-se a certa professora como “uma puta professora”, e a santanense recém-saída do quase-convento ruborizou-se porque, naquela altura, dizer que alguém era uma “puta professora” equivalia a vários pontos negativos na caderneta, talvez suspensão, certamente admoestação na frente dos pais, quiçá expulsão.
Meu choque de realidades foi, de fato, uma enorme frustração. O desejo de partir de um colégio de bairro, rígido em suas normas de educação e moral, para uma instituição humanista em que se cultivasse a criatividade e se cultuasse a liberdade resultou em anticlímax. A ECA/USP era uma faculdade de burguesinhos que só pareciam diferentes de mim pelos bairros em que moravam. Poucas vagas, um vestibular difícil, fórmula ideal: só os CDFs das “melhores escolas” de São Paulo conseguiam seu lugar lá. Minha vontade de ser rebelde esvaiu-se logo e o máximo de insurreição que eu conseguia era falar de futebol e de Fórmula 1 em um ambiente no qual todos pareciam candidatos a editor da Ilustrada.
Em resumo, my friends, Daniel Cohn-Bendit teria vergonha do meu passado estudantil. Não fui rebelde, nunca participei de manifestação nenhuma.
Isso até 2 de novembro de 2011.
Nesse dia, insurgentes de diversas idades, muitos de nós jornalistas, tomamos a Avenida Paulista para protestar contra a mudança de percurso da Corrida de São Silvestre, esta sim, o objeto deste texto. (Tal suspense nem o Caetano conseguiria. Ou não...).
Foi na Avenida Paulista, em frente ao prédio da Fundação Cásper Líbero, que ouvi um policial se referir ao nosso grupo como “manifestantes”. Eu sabia que tinha 15 km à frente para vencer, imaginava que nosso protesto tinha pouca chance de reverter a decisão da organização, de tirar a chegada da São Silvestre da Avenida Paulista, mas subitamente me tomei de orgulho e coragem.
Manifestante!
Nosso maio de 68 atraiu cerca de 300 pessoas às 7h da manhã, fazia um frio danado, juntaram-se a nós o mítico José João da Silva, duas vezes vencedor da São Silvestre, e o senador Eduardo Suplicy. Em vez de descer o cassetete nos manifestantes, a polícia nos ajudou a fazer o percurso da “antiga” São Silvestre, interrompendo cruzamentos e isolando faixas nas principais avenidas para corrermos com segurança.
A São Silvestre de 2011, afinal, vai mesmo terminar no Obelisco do Ibirapuera, como tantas outras corridas que fazemos ao longo do ano. Continuo achando um equívoco o percurso atual, cheio de declives perigosos. Vencer a Brigadeiro e ganhar a Paulista não estará entre as glórias dos atletas deste ano. E quem já fez esta prova sabe o que isso significa. São coisas da vida...
A semente dos rebeldes foi plantada, o alerta dos especialistas foi feito. Graças a este movimento, conheci pessoas incríveis e me aproximei de outras, reforcei laços. Todos queremos o mesmo: o bem da nossa maior e mais famosa corrida. Aos amigos que participaram do grupo, tenham certeza: este foi um dos melhores momentos de 2011 para mim.
Ainda que tenha tido pouco efeito prático, com licença, estou em paz. Sou manifestante, mais respeito, por favor. A todos, um feliz 2012. E como já é tradição neste blog, a imagem da aniversariante de 31 de dezembro.