Tuesday, December 27, 2016

Promessa de ano velho

“Acabei de pensar numa resolução para 2017: ligar pras pessoas.” A frase, escrita em um aplicativo de mensagens, não dita ao telefone, soou para mim como uma viagem no tempo. Como se alguém tivesse me dito que iria tirar leite da vaca, viajar em um bonde, escrever uma carta. Coisas que faziam parte da rotina e hoje figuram como hábitos exóticos.

Não estranhei totalmente. Ele tem uns olhos de poeta romântico, um quê de Gary Oldman em “Drácula de Bram Stoker” (talvez pelos cabelos compridos). Parece o tipo que morreria tísico com certo orgulho. A nostalgia lhe cai bem.

Achei graça na resolução, mas logo emendei um desejo recentemente nascido: também sinto falta de conversar mais, talvez volte a fazer terapia. “Você pode ligar para as pessoas!”, insistiu com frescor juvenil. Ácida, como quase sempre, retruquei que a ideia carecia de um planejamento estratégico. Senão, vejamos.

“Ligar para as pessoas” é coisa que não se faz ultimamente. Tirando as ligações profissionais, e eu ainda faço um bocado delas, acho que só falo ao telefone com a turma da terceira idade. Tudo o que vale para os bem jovens – quer passar um recado? Mande uma mensagem – não vale para o pessoal acima dos 60 – quer falar com eles? Ligue, de preferência no telefone fixo. Mensagens correm o risco de serem vistas apenas várias horas depois. Celular não é uma extensão do corpo dos que nasceram antes do advento dos Beatles.

O mercado reagiu à nova realidade. Ligações estão se tornando algo exótico, como se tornaram os LPs. Talvez, ligar para as pessoas, e conversar como se conversa com um terapeuta, não fique mais barato que pagar a terapia. Eu sei. Destruí a poesia nostálgica daquela resolução de ano novo. Senti culpa (oh, que novidade) e me pus a pensar que alguns hábitos de outros tempos talvez estejam mesmo fazendo falta.

As cartas, por exemplo. Adolescente, escrevia-as aos montes. Tendo vivido as décadas seguintes de escrever, enxergo naquelas pilhas de cartas tanto a vontade de saber dos outros quanto a de exercitar a escrita. E acho que não teria me tornado profissional da palavra, com parcos vinte anos, se não tivesse escrito tantas cartas. Theodore, o personagem de Joaquin Phoenix no filme “Ela”, vive de escrever cartas, em um futuro não muito distante, um tempo em que as pessoas não escrevem mais mensagens pessoais, então contratam um serviço para fazer isso por elas.



Quando saí do cinema, ainda impactada pela história desconcertante daquele homem que se apaixona pela voz do sistema operacional de seu computador, fui tirar dinheiro em um caixa eletrônico e a porta de vidro fechou em cima de mim. Foi rápido, só bateu rapidamente na minha cabeça, mas chorei feito criança, mas não era pela batida da porta. Pela miséria humana, por me sentir meio Theodore, escrevendo milhares de caracteres por dia sobre coisas que não me dizem respeito. E por vislumbrar um mundo onde se compre tudo, até as mensagens pessoais que pretendemos entregar para os donos do nosso afeto.


Talvez a resolução de “ligar mais para as pessoas” não seja tão anacrônica assim. Antes que a falta desse hábito crie uma inibição tão grande, de parte a parte, que a única alternativa seja terceirizar esse afeto, apelando para outros Theodores.

Saturday, December 10, 2016

O rastro do meu sangue na cozinha


Era um final de tarde de sábado, abril, com certeza. A rotina de sempre: adiantando refeições para a semana, as cinco bocas do fogão emprestavam calor para panelas que cozinhavam arroz, feijão, legumes. Na panela de pressão, uma carne em cubos se preparava para virar carne de panela.

Sempre que estou nesse ritmo multitarefas, em casa, recordo um editorial da revista Claudia. Anos 1980, acho. Lembro bem que a editora era Maria Cristina Gama Duarte, definindo um fogão com ocupação máxima como a tradução da mulher contemporânea. Há que fazer muita coisa, e rápido, tudo ao mesmo tempo. Não é a mesma coisa que fazer toda a comida na hora, servir-se direto da panela, claro. Mas é isso ou lasanha congelada. Eleve-se o fogo, nas cinco bocas, então.

Também não é a mesma coisa usar alho triturado, comprado em potinhos, que descascar os dentes, picá-los ou amassá-los. Mas é isso ou mão fedendo a alho. Abra-se o potinho que a carne já está no ponto para temperar. O pote de plástico, aquele lacre, uma faca de ponta, a carne chiando na panela, vai, rápido. Enfio a ponta da faca no minúsculo espaço entre o lacre e o pote, forço para cima. Vai lacre, tampa, tudo de uma vez, até a ponta da faca parar dentro da minha mão, fazendo um talhe naquela parte de pele mole, entre o dedão e a palma.



Em casa, como sempre, só eu e meu filho, menos que um adolescente, na época. Ao meu lado, na pia, ouve minha frase, ainda em tom comedido. “Cortei a mão.” Abro a torneira, coloco a mão embaixo da água fria. Sangue. Olho atenta para o corte. Um talhe relativamente profundo. Sangue. Enfio de novo a mão embaixo da água. A pia vai se tingindo de rosa. Sangue. Desmaiei pela primeira e única vez na vida.

Ato seguinte, estou deitada no chão da cozinha. O menino grita, eu desperto.

O resto da história não tem nada de dramático. Pronto-socorro, um ponto no corte, curativo, final de noite em paz. Os que ouviam a história, nos dias seguintes, sempre faziam a mesma observação: “ah, eu também não posso ver sangue que desmaio”. Errado. Não desmaiei porque vi sangue, nunca tive esse tipo de reação. O processo mental que me levou ao ataque de ansiedade – esse, sim, um velho conhecido, mas nunca antes concluído em desmaio – não foi uma crise de hemofobia.

Lembro, nitidamente, do meu último pensamento antes de desabar, sem nenhum glamour. “Cacete, vai acontecer comigo o mesmo que aconteceu com Nena Daconte.”

Acho que já fazia mais de dez anos que eu tinha lido o conto “O rastro do teu sangue na neve”, de Gabriel García Márquez, mas nunca deixei de associar a ideia de “sangrar até morrer” a essa história, publicada no livro “Doze contos peregrinos”. O idílio de um jovem casal, em lua de mel pela França, termina de forma trágica, por conta de um corte no dedo, provocado pelo espinho de uma rosa. Não foi o sangue na pia, foi a evocação do rastro de sangue na neve, terminando em morte, que me fez desmaiar.

Aqueles que têm o hábito de fruir a arte costumam identificar-se com filmes, livros e letras de música, repetindo que tal obra parecer ter sido feita para eles. Tenho outra tese. Gente dessa estirpe – os que amam a arte – por vezes parecem moldar sua personalidade para se parecer com os personagens dessas obras.

Será que gosto tanto da letra de “Dona”, de Sá & Guarabyra, porque ela evoca uma mulher que se parece comigo ou será que me forjei como alguém para quem “não há pedras no caminho, não há ondas no mar, não há vento ou tempestade que impeçam de voar”? Será que me enxergo tanto em “Ruby Tuesday”, dos Rolling Stones, ou teria eu me moldado para ser uma mulher livre, “porque esse é o único jeito de ser”?


Não, não acho provável que eu tenha me cortado de propósito para emular Nena Daconte. Mas também não nego que aquele corte na mão, por dias seguidos, criou a confortável ilusão de que enfrentei a Mamba Negra, de Kill Bill, em um duelo de facas. A julgar pelo corte mínimo, venci.

Vivica A. Fox e Uma Thurman, na cena da luta de facas, em Kill Bill volume 1