Monday, January 16, 2017

Os quatro elementos de uma tragédia

(Este texto contém spoilers sobre o filme "Manchester à beira mar")

Kyle Chandler (Joe) e Casey Affleck (Lee): água e ar
Quando se torna mãe (ou pai), você passa a dividir o mundo em duas categorias de pessoas. Uma delas é composta por seu(s) filho(s). A outra, pelo resto da humanidade. Deve ser por isso que a morte do pai ou da mãe parece a maior tragédia possível a uma criança, mas começa a se tornar mais aceitável depois que você já tem um filho. É como se ela confirmasse a tal "ordem natural das coisas": você naturalmente vai sofrer, mas relativiza esse sofrimento porque sabe que seria muito pior se seus pais sobrevivessem a você. Porque, de fato, você não quer nunca nem conjecturar a ideia de sobreviver a seus filhos.

Quando o personagem Lee Chandler, vivido por Casey Affleck no filme "Manchester à beira mar", recebe a notícia da morte do irmão Joe (personagem de Kyle Chandler), vê seu corpo no necrotério e passa a lidar com as questões burocráticas que envolvem seus funerais, a primeira impressão pode ser de frieza. Ele parece executar estas tarefas de forma automática, e a ideia de que essa abordagem seja uma defesa contra o sofrimento que tudo isso causa não é improvável.

Mais adiante, no entanto, o espectador é informado de que Lee protagonizou uma tragédia muito maior, quando perdeu os três filhos em um incêndio causado em sua casa, por uma negligência dele. Lee não apenas sobreviveu aos três filhos como passou a carregar a culpa pelo que aconteceu a eles. A morte do irmão, por mais triste que se apresente, não poderia representar uma tristeza maior que a dor entranhada pela morte de seus próprios filhos, e pelas circunstâncias em que tudo aconteceu.

Escrito e dirigido por Kenneth Lonergan, "Manchester à beira mar" logo estabelece as diferenças entre os dois irmãos. Joe, mostrado em vários flashbacks, é um pai e irmão amoroso, um esteio de ações e emoções, reconhecido como alguém admirável por todos, e não são poucas as referências a ele como "uma ótima pessoa". Lee, desde o princípio, surge como alguém sem conexões. Zelador de um conjunto de prédios em Boston, ele passa seus dias fazendo pequenos consertos nas residências e repetindo os movimentos de tirar neve da entrada dos edifícios, como se mergulhado em uma geleira eterna. Uma personalidade solta, alguém que não quer (ou não consegue) se ligar a ninguém, e logo se compreende que aquele homem talvez se imagine um perigo potencial para quem estiver sob sua responsabilidade.

O tio Lee e Patrick (Lucas Hedges): o elemento terra
Essa falta de conexão de Lee com o resto do mundo torna impossível a realização do desejo de Joe, que confia ao irmão a responsabilidade de ser o tutor de seu filho Patrick. O adolescente de 16 anos, apesar da pouca idade, não é exatamente um iniciante no quesito problemas. Além de conviver com a severa doença cardíaca do pai - a ponto de que essa morte seja quase esperada por todos - também testemunhou o alcoolismo da mãe, a crise conjugal, a separação e o completo afastamento desta. Sintomaticamente, no começo da história, Patrick oscila entre duas namoradas, sendo uma delas francamente protetora, delineando um mecanismo de compensação clássico pela falta da mãe em sua vida.

A presença do elemento água é evidente no filme, já que Joe vivia do mar e um dos pontos de conflito entre Lee e Patrick passa a ser justamente o destino do barco. Não deve ter sido à toa que a trilha sonora, a cargo de Lesley Barber, tenha vários temas retirados de obras do compositor alemão George Frideric Händel, que tem entre suas composições mais célebres a série de suítes intituladas "Música Aquática". O "aéreo" Lee comporta-se como uma folha solta no vendaval, sem parecer se importar com o destino, pois sabe que ele foi para sempre marcado pelo fogo que consumiu seus filhos.

O elemento terra a esse núcleo familiar será dado justamente por Patrick que, apesar da imaturidade óbvia de seus 16 anos, parece ter os pés mais próximos ao chão que o tio adulto, à medida que vislumbra sua nova vida sem o pai, aponta soluções e direciona a nova rotina de uma forma muito prática e objetiva. Abalado emocionalmente pelo fato de não poder enterrar o corpo do pai, pelo rigor do inverno que torna quase impossível o ato de escavar, Patrick chega a ter uma crise de pânico ao abrir o freezer e encontrar um frango congelado, relacionando aquele "cadáver" animal ao corpo do pai, aguardando, em uma câmara frigorífica, o momento de ir para o túmulo. Sua ligação com a terra torna-se evidente - e simbólica - na cena em que confere o grau de dureza do solo, para concluir que o enterro finalmente tenha se tornado possível.

Corpo do pai sepultado, Patrick parece vivenciar uma espécie de rito de passagem. Opta pela namorada sensual que não guarda traços de superproteção materna, ajeita-se na nova rotina, mantém o barco e parece apontar o leme para uma nova vida algo que, melancolicamente, mostra-se impossível para o tio, que em breve estará novamente retirando neve dos prédios onde trabalha, cercado de gelo por todos os lados, enquanto se consome no fogo eterno da culpa.

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