Sunday, May 29, 2016

Mais uma vez, a arte me salvou


Não sei dizer quantas epifanias e catarses o cinema, a música, o teatro e a literatura já produziram na minha vida. Todas, de alguma forma, me recolocaram no trilho da sanidade mental, embora eu muitas vezes só tenha percebido isso muitos anos depois. Eu achava graça por ter chorado tanto em “Dumbo”, na cena em que o filhote de elefante é separado da mãe, e só depois associei aquele choro como uma resposta elaborada ao ciúme que o nascimento do meu irmão gerou em mim.

Às portas da adolescência, fui assistir ao musical “Aí vem o dilúvio” e fiquei obcecada pela peça, em especial por uma cena na qual os personagens formavam casais que tinham por missão repovoar a Terra. “Bela noite sem sono...” era um dos versos da canção e, novamente, apenas muitos anos depois eu entendi que a sensualidade delicada daquele momento explicou a mim a ebulição de hormônios que eu experimentava – e estranhava. E me pacificou.

Nunca deixou de ser assim. “Cem Anos de Solidão”,“Central do Brasil”, um show extemporâneo dos Mutantes, “Pina”, “Ela”, para citar apenas alguns. De fato, acho que nunca vivi um ano sem que alguma obra de arte fizesse o favor de me colocar no prumo, ou me convulsionar a ponto de repensar as escolhas e o rumo da minha vida. E sempre me sinto um pouco constrangida com isso, porque entendo arte como entidade inútil, no sentido de ter fim em si mesma. Utilizá-la para alguma coisa, ainda que em nível moral, mental, espiritual, soa a mim como profanação.

E hoje essa tarefa coube ao filme “Ponto Zero”, do diretor José Pedro Goulart.

Na sexta-feira passada, comentei brevemente com a minha mãe que não conseguia pensar no estupro coletivo da garota carioca sem ter vontade de chorar. Não era verdade. Cada vez que lia ou escutava algum fato relativo a esse crime, eu não tinha vontade de chorar. Eu sentia angústia, raiva, nojo. Mas lágrima nenhuma descia.

Sintomaticamente, desenvolvi em dois dias uma série de reações físicas a esse conjunto de sentimentos. Uma crise de alergia congestionou minhas vias aéreas superiores. A cabeça pesava e doía, evoluindo durante o dia até virar enxaqueca. Crises de tosse irrompiam sem aviso e me paralisavam a fala. Para coroar, uma afta do tamanho de uma couve-flor deixou meu lábio com o indesejável aspecto de uma aplicação de botox assimétrica.

Fui ver “Ponto Zero” quase num voo às cegas, com pouquíssimas referências. A beleza da cena de abertura vale pelo filme todo, e sua retomada no final, ainda que não viesse carregada de simbolismo, seria justificada plenamente apenas pela questão estética. Acho até que o filme carrega demais nos simbolismos, alguns meio óbvios, como carros andando de marcha à ré, mas nunca vou deixar de ser grata a ele, pela perturbadora sequência de cenas sob a chuva que ocupa boa parte do trecho final.

Além de belíssimas, e de incluir uma dos meus maiores objetos de fascínio no cinema – planos-sequência – as cenas de chuva provocaram uma reação física inequívoca em mim. Chorei. Não, o filme não era especialmente triste, nem esta sequência, carregada de referências a morte e renascimento, tinha algo de triste. Era um rito de passagem do personagem central, mas funcionou como catarse genuína para mim. Três dias depois da notícia do estupro, de pelejar com o peso da cabeça, com o incômodo da alergia, com a afta e com o nó no peito, “Ponto Zero” parecia ter puxado a tampa do meu ralo. Chorei os oito quilômetros que separam o cinema da minha casa. A cabeça não dói mais, estou respirando bem, a afta drenou, aquela dor entre as costelas sumiu.

A arte foi o que de melhor nossa espécie medíocre produziu neste planeta e vou continuar usando-a como tábua de salvação. Bom para mim.


Mas, e a menina?

Friday, May 27, 2016

Cultura do estupro: isso É política



Estou disfarçando, mas não está fácil viver em um país em que uma moça é estuprada por 30 e um “ministro” recebe um apologista do estupro.

Escrevi esta frase no Twitter, na tarde desta quinta-feira. Algumas pessoas começaram a reproduzi-la, até que ela chegou a alguns formadores de opinião da rede social, desses que têm dezenas de milhares de seguidores, que também reproduziram. Muitas horas depois, continuo escutando o sinal no celular, dando conta de que alguém a está curtindo ou compartilhando. Não é ruim a sensação de perceber que não estou sozinha na minha indignação. Mas o sentimento de empatia não preenche a tristeza que continuo sentindo com tudo isso.

A um desses grandes formadores de opinião que reproduziram minha frase, o neurocientista e professor Miguel Nicolelis, respondi com uma pergunta direta: manifestar-se é pouco, indignar-se é pouco – o que fazer? Ele respondeu que a saída é investir em educação com cidadania. Claro, a resposta honesta a essa pergunta não pode supor uma ação cirúrgica pontual, que extirpe a cultura do estupro da nossa sociedade. A mudança virá com o tempo. Mas, e até lá?

Quando digo que não está fácil viver nessa sociedade, não estou usando de retórica. Sou mulher e sinto ecos dessa cultura no meu dia. Quando vou sozinha ao cinema e noto olhares de estranhamento pela minha ausência de companhia. Quando dirijo meu carro sozinha, à noite, e me forço a continuar olhando para a frente, impassível, porque o condutor do carro ao lado acha que o fato de estar desacompanhada funciona como senha para eu ser assediada.

Eu poderia continuar enumerando as situações desagradáveis que uma mulher como eu enfrenta cotidianamente, e elas vão desde irrelevantes dissabores, como o garçom que entrega a conta para meu filho de quinze anos, supondo sempre que o homem da mesa vai pagar a despesa, até grandes inquietações de ordem moral, como embotar minha própria sexualidade enquanto não tiver certeza de que poderei expor isso para um interlocutor civilizado, que não vai me classificar como vagabunda.

(Aliás, cabe aqui uma breve reflexão sobre o emprego das palavras vagabundo e vagabunda, na nossa sociedade. Vagabundo é o homem que não trabalha. Vagabunda, a mulher que transa com quem quiser, ou com qualquer um, ou com muitos. O defeito, no homem, é não prover, pecado venial em sua existência. O da mulher, fazer o que quiser do seu corpo, pecado mortal.)

Mas, na fila dos oprimidos, estou em penúltimo lugar. Sou mulher, branca, com nível superior de escolaridade, tenho casa própria, carro, dois aparelhos de TV em casa. Acho que são esses itens que definem um cidadão de classe A no Brasil. Atrás, na fila da opressão, apenas os homens iguais a mim. À nossa frente, os homens pobres, os homens pretos, os homens pretos e pobres, as mulheres pobres, as mulheres pretas, as mulheres pretas e pobres.

Olham estranho para mim no cinema? O filme não ficará pior nem melhor por isso. O macho alfa do carro ao lado está lançando olhares lascivos em minha direção? Daqui a pouco, o farol abre. O garçom acha que meu filho é o provedor? Ele está repetindo um gesto ancestral e, afinal, muitos homens ainda fazem questão de pagar a conta, e algumas mulheres aceitam isso. O cara se escandalizou com minha franqueza na abordagem? Valeria menos que um cinema, com filme ruim.

Eu estou muito, mas muito menos vulnerável à violência de um estupro que a moça da favela, isso é fato. Mas nem por isso vou me sentir menos agredida do que me senti hoje. O fato de estar mais resguardada, na prática, não me protege da agressão de saber que uma semelhante a mim foi violentada por mais de trinta homens. Nem de encontrar opiniões que culpam a vítima pelo crime que ela sofreu.

Regras para namorar minha filha: 1 - Eu não faço as regras, 2 - Você não faz as regras,
3 - Ela faz as regras, 4 - O corpo é dela, as regras são dela


Na prática, o que posso apresentar como contribuição à mudança dessa cultura do estupro? O fato de estar criando um jovem para que ele respeite as mulheres como donas de seus corpos, e tudo o que isso significa em termos de aproximação, abordagem e envolvimento? Sinceramente, isso é minha obrigação como mãe.


Mas sinto que há algo positivo nascendo dessa tragédia que hoje chegou a nós. Esta é uma causa política. Já há eventos programados para os próximos dias, de protesto e discussão sobre a condição da mulher. Vá a algum deles, engaje-se, manifeste-se. Acho que poucos brasileiros mentalmente sãos, hoje, seriam capazes de afirmar que a nossa sociedade não naufragou. E a nossa sociedade é essencialmente patriarcal, oligárquica, elitista. Despertar – e agir – contra a cultura do estupro pode ser um começo para romper o monolítico atraso moral do Brasil.

Monday, May 23, 2016

Certo agora, errado antes: amor à arte


Se “viver é desenhar sem borracha”, como disse Millôr Fernandes, a arte ignora esse fatalismo. Qualquer forma de narrativa, literária ou audiovisual, permite contar o mesmo fato de maneiras diferentes, inclusive movendo elementos que modifiquem essencialmente a própria história. O filme sul-coreano “Certo agora, errado antes” faz isso de uma maneira desconcertante.

À primeira vista, é uma história de amor, ou de mera atração, entre um consagrador diretor de filmes “de arte” e uma artista plástica iniciante. Tudo o que dá errado na primeira parte do filme (“errado antes”) transforma-se com o movimento de uma única peça – uma informação fundamental sobre a vida do diretor. E é a segunda parte do filme, quando a história é recontada acrescida dessa informação, que o filme se revela bem mais que uma história de amor.

A simplicidade que o diretor Sang-soo Hong imprime a cada cena logo parece deixar clara a intenção da obra: contar uma história. As cenas são gravadas sempre com uma única câmera, muitas vezes fixa. O recurso do zoom, que surge esporadicamente, pode soar anacrônico, quase pueril, lembrando o movimento de câmera dos antigos filmes de lutas marciais. Aqui, no entanto, ele parece empregado apenas para captar mais de perto a expressão facial dos protagonistas e, aos poucos, vai deixando o espectador mais próximo daquela história e mais íntimo daquelas pessoas.

Ao acrescentar a informação essencial à história, na segunda parte (“certo agora”), Sang-soo Hong não apenas dá outro rumo à trama de amor/atração entre o diretor e a artista plástica. Ele redimensiona ambos e, ao fazer isso, propõe uma discussão que faz eco na própria arte.

Nesse momento, o personagem do diretor humaniza-se, deixa de ser “o famoso diretor Ham Cheon-soo”, cultuado como gênio, para ser apenas um ser humano sujeito a beber demais, e a falar demais, e a dar vexame. 

A artista plástica e o cineasta, no ateliê: discussão essencial

















Sob esse prisma, duas sequências deixam claro que a intenção de Sang-soo Hong, ao contrário da primeira impressão, não era apenas contar uma história de amor/atração, mas generosamente colocar a própria arte em discussão. Os diálogos entre o diretor e a artista plástica, no ateliê dela, antes e depois, revelam essa revisão. No segundo momento, é lapidar uma resposta da moça à suposição de que sua pintura era uma forma de fugir da solidão. “Não, quando eu quiser fazer isso, eu vou procurar um cara legal.”

A segunda passagem é a relação do diretor com um crítico local, responsável pela mediação de uma palestra sobre a obra do cineasta. No momento “errado” da história, o diretor sente-se agredido pelas perguntas do crítico, nitidamente sentindo-se aviltado. Seu estado de espírito – preso ao pedestal – parece agir contra uma interlocução franca e construtiva com quem quer que seja. Na recontagem da história, despido da faceta de mito infalível, o diretor surge relaxado e aparentemente feliz, em ver sua obra discutida e valorizada em um ambiente de pessoas interessadas no que ele tem a dizer.


Depois de descer do pedestal, com a simples admissão de uma verdade essencial, ele parece tornar sua própria arte mais verdadeira e mais propícia a atrair, enlevar, agradar ou simplesmente provocar a reflexão em quem tiver contato com ela.A cena final, cercada de afeto e compreensão, faz a ponte definitiva entre aquele casal improvável. Não seriam, afinal, suas vidas distantes que os uniriam, mas a arte.