Monday, April 17, 2017

Brasil em Cena

Julio Machado e Isabél Zuaa, em cena de "Joaquim", que estreia dia 20 de abril

A partir de hoje, meus textos também poderão ser lidos no site "Cinema em Cena", em uma nova coluna chamada "Brasil em Cena", dedicada à produção audiovisual no Brasil. Na primeira coluna, o destaque é o filme "Joaquim", o quinto longa do diretor pernambucano Marcelo Gomes. Entrevistei o Marcelo e dois atores do filme - Julio Machado e Isabél Zuaa. O conteúdo todo está aqui.

Só um trechinho da entrevista com o Marcelo, dando o tom:

Cinema em Cena – Existe um paralelo entre o Brasil Colonial de “Joaquim” e o momento atual do Brasil?
Marcelo Gomes – Acho que os personagens são muito contemporâneos, porque são contraditórios, humanos, têm objetivos muito específicos, pensam neles mesmos, porque estão em um momento salve-se quem puder. A ética da época faz com que Joaquim, mesmo cultivando pensamentos “humanistas”, não ache estranho ter escravos. Mas isso não é muito diferente de agora. A elite brasileira acha normal ter uma pessoa para limpar seu banheiro. Nós ainda precisamos viver um processo de descolonização na nossa cabeça, porque isso está presente até hoje, impregnado. Quando você chega a um edifício, em São Paulo, construído nos anos 70, 220 anos depois desse período, tem dois elevadores, o social e o de serviço, aí você chega na casa e tem duas portas, a social e a de serviço. Um europeu chega aqui e pergunta: o que é isso? É a casa grande e senzala verticalizada. Muda a face, mas no âmago está tudo ali.
Aqui, um trecho da entrevista com Isabél Zuaa:
Cinema em Cena – A mulher negra segue sendo a maior vítima na nossa sociedade?
Isabél Zuaa - No cinema, como na vida, a mulher negra é costumeiramente vista como o final da cadeia alimentar. Ela é vista para servir, ela é a barraqueira, mas por quê? Porque ela usa essas estratégias de resistência, como a Preta faz no filme: ela tem uma força física e uma força psicológica. Ela mata um homem e, diante de tudo que ela sofreu, o espectador se identifica com o gesto porque percebe que aquela foi uma reação, uma legítima defesa. O que a Preta faz com sua própria vida, no filme, é o que a gente chama hoje de empoderamento: é a reação de uma mulher negra em uma sociedade hostil a ela. E essa sociedade hostil continua, para mim. No entanto, eu tenho outros mecanismos para me impor, não precisei matar e fugir, mas eu tenho pessoas na família que precisaram fugir. Meus pais são africanos e passaram por duas guerras, em dois países africanos colonizados por Portugal. As consequências se mantêm: sabe lá o que alguém tirar você da sua terra e te dizer “você não pertence mais a esse lugar”? Isso é de uma violência extrema.
E um pedaço da conversa com Julio Machado:
Cinema em Cena – O protesto que a equipe fez, em Berlim, contra o atual governo no Brasil, traz algum temor em relação ao filme e à sua carreira?
Julio Machado - Nenhum temor! Estar vivo não permite ensaio. As coisas vão chegando e, se isso (um boicote ao filme) acontecer vai ser mais uma oportunidade para se revelar a mesquinharia dessa reação reacionária da nossa sociedade bipolar, que não se conhece. Que se enxerga no americano e no europeu e não se conhece, nunca leu um livro de história e fica tentando fazer discurso político sem conhecer nada. É uma distorção completa. É uma situação que a gente vê no filme como gênese e segue aí. Não tenho temor algum. Eu quero mais é que essas pessoas se revelem, que elas se manifestem, mas não escondidas atrás de um computador.

Monday, April 10, 2017

Mimadinhos

Lançado nos EUA em junho de 1982, só chegou ao Brasil em dezembro
No princípio, era o atraso. Os filmes eram lançados no mercado norte-americano e levavam muitos meses para estrear no Brasil. Não estou falando de filmes cult, aqueles que um grupo muito específico de espectadores quer assistir por ser o mais recente lançamento um diretor tailandês controverso ou de uma performer sérvia. Blockbuster mesmo, daqueles que estouram nas bilheterias e/ou colecionam estatuetas no Oscar.

“Guerra nas Estrelas”, por exemplo, foi lançado nos Estados Unidos em maio de 1977. No Brasil, oito meses depois, em janeiro de 1978. Em 1982, as coisas tinham mudado pouco: “E.T. – o extraterrestre” foi apresentado ao mundo no Festival de Cannes, em maio. Chegou aos cinemas norte-americanos em junho. Estreia no Brasil? 25 de dezembro. Havia uma tradicional convenção de atrelar os lançamentos de blockbusters ao período do Verão, e assim o público brasileiro esperava, pacientemente.

A mais recente "história Star Wars" estreou no mundo inteiro no mesmo dia

Quatro décadas depois, a dinâmica mudou completamente. A mais recente produção da série Guerra nas Estrelas – “Rogue One – Uma história Star Wars” – estreou no mundo inteiro no mesmo dia, em dezembro de 2016. Tempos de economia globalizada, de esforços concentrados para gerar alta receita, no menor tempo possível. Como tudo na vida, essa sincronia trouxe benefícios e desvantagens. Entre elas, uma espécie de fobia dos chamados “spoilers”.

Não conhece o termo? Sem problema. O dicionário Inglês-Português resolve: spoiler significa “destruidor, desmancha prazeres”. É derivado do verbo to spoil (estragar, malograr, deteriorar). No jargão dos fãs desse tipo de série, “dar spoiler” significa contar algum detalhe do filme (e nem precisa ser o final). Outra derivação do verbo é a palavra spoiled, que significa, em Português, mimado. Poucas associações podem ser tão significativas.

Veja a reação de um fã de alguma dessas séries (vale para as de TV também) diante da perspectiva de receber um spoiler. Parece uma criança contrariada, mimadinha que, diante da bronca, tapa os ouvidos e fica emitindo ruídos altos, para não escutar a voz dos pais. Juro que já ouvi, de um deles: “a pior coisa que uma pessoa pode fazer é dar um spoiler”.

Claro, alguns finais de filmes ou episódios, se revelados, roubam o elemento surpresa que os realizadores de filmes engendraram na trama. Saber antes que Bruce Willis também é um (assassino? psicopata? fantasma?) esvaziaria a grande revelação de “O sexto sentido”. Assim como descobrir que os personagens de “Lost” estavam todos (delirando? falidos? mortos?). Mas a turma, às vezes, exagera, como na vez que um crítico de cinema recebeu reclamações por ter revelado que Adolf Hitler morria (!) no filme sugestivamente intitulado “A queda – as últimas horas de Hitler” (!!).

Além disso, reduzir toda a obra cinematográfica “ao que acontece” é atestado de superficialidade. Se tivesse lido, antes de ver o filme, que o E.T. faz as bicicletas dos garotos voarem em determinada cena, por isso você teria deixado de se encantar com a poesia das imagens criadas por Steven Spielberg? Se soubesse antes que a personagem de Jodie Foster conversa com o espírito de seu adorado pai em “Contato”, ficaria menos emocionado com a beleza daquele encontro? Um filme não se resume ao que acontece nele, mas em como isso se apresenta na tela.

Sam Peckinpah: não conhece? Dá um Google e pronto

A geração que nunca precisou esperar um semestre inteiro para assistir a um filme já visto no Hemisfério Norte também parece se ressentir de referências a outras obras em resenhas e críticas de filmes. Já vi gente reclamando que, em tal texto sobre um filme de Quentin Tarantino, certo crítico fez referência a Sam Peckinpah. “Nunca ouvi falar desse cara, por que ele está citado aqui?”

Comumente, esse tipo de referência é lido pela horda de mimadinhos como exibicionismo do crítico quando, muito provavelmente, ela é um elemento a mais para a compreensão da obra analisada. Considerando que basta uma rápida consulta em um site de busca para saber que Sam Peckinpah foi um dos primeiros diretores a incorporar a violência de forma explícita em seus filmes, chega a dar pena da preguiça de alguns leitores, que deixariam de conhecer a fonte de um elemento fundamental na obra de seu cultuado Tarantino.


Lá nos anos 1980, 1990, quando havia uma referência desconhecida em uma crítica, a alternativa era procurar em livro, revistas especializadas. Com alguma sorte, encontrar um filme antigo em uma videolocadora. Hoje, com tudo mais fácil e à mão, descortinando praticamente a história do cinema em incontáveis conteúdos online, há quem reclame. Eles, os mimadinhos. 

Sunday, April 02, 2017

Mulheres do século 20



Eu achava que nenhum filme seria capaz de me tocar tanto, no que se refere à minha relação com meu filho, quanto “Tudo sobre minha mãe”, de Pedro Almodóvar. Até que assisti a “Mulheres do século 20”, escrito e dirigido por Mike Mills.

Mills é um autor que não tem medo de enfrentar a própria história como referência para seus longas. Ele já havia feito isso em “Toda forma de amor”, que rendeu um Oscar de ator coadjuvante a Christopher Plummer, centrado na figura de seu pai, e agora passa a limpo a relação com sua mãe, vivida por Annette Bening. Embora tenha como fio condutor as memórias de Jamie (Lucas Jade Zumann), toda a narrativa gira em torno da personagem Dorothea (Bening), mulher de 55 anos que cria sozinha o filho adolescente no final dos anos 1970, na Califórnia.

Na primeira sequência, mãe e filho estão fazendo compras em um supermercado quando descobrem que seu carro está pegando fogo no estacionamento. O velho Ford Galaxie parecia ser o último vínculo físico com o pai de Jamie, ex-marido de Dorothea que abandonou a família para viver “no Leste”, como genericamente cita o texto em off, dito pelo garoto.

De volta à casa, o relato do incêndio serve para apresentar os outros personagens de destaque na história: Abbie (Greta Gerwig), uma fotógrafa recuperando-se de um câncer ginecológico que aluga um quarto na casa de Dorothea, Julie (Elle Fanning), amiga de infância que divide com Jamie as incertezas e medos da adolescência, e William (Billy Crudup), hippie extemporâneo alojado no casarão que, entre a reforma do imóvel e consertos diversos, surge como autêntico quebra-galho para as duas mulheres adultas da trama.

“Mulheres do século 20” é um filme construído sob o ponto de vista feminino: diálogos explicitamente favoráveis ao empoderamento feminino, culto à liberdade sexual da mulher, presença solar de Bening, quatro vezes indicada ao Oscar de Melhor Atriz Principal que talvez tenha atingido, neste mais recente longa, sua plenitude na atuação. Mas o filme se torna explicitamente feminista pela forma com que retrata os homens.

No início da história, William raramente aparece de frente, sendo visto quase como um espectro de homem naquele universo. A falta do pai de Jamie (ou de uma figura que o represente em um corpo de homem) jamais será suprida por aquele bicho-grilo de meia idade que não parece empenhado em ser nada diferente do que um quebra-galho. O diálogo entre mãe e filho sobre o papel de um homem na vida de uma mulher ressalta o que ela não espera ver de Jamie no futuro: “os homens acham que precisam sempre estar na nossa vida para consertar alguma coisa, mas basta que estejam lá”.

Para garantir que o filho seja um homem diferente daqueles que cruzaram seu caminho, a mãe se apoia nas duas outras mulheres para pedir ajuda “na criação” de Jamie. Confrontada com as dificuldades da adolescência, Dorothea confia à inquilina e à jovem amiga do filho a incumbência de ajudá-la a atravessar essa fase, provavelmente por sentir que ambas, mais jovens que ela, conectam-se mais facilmente à mente do garoto de 15 anos. “Eu o conheço menos a cada dia”, constata a mãe depois de um acidente em que Jamie quase morre por conta de uma brincadeira estúpida entre adolescentes. “E você, fumando sem parar, não está procurando a morte também?”, questiona o jovem.

O cigarro está, de fato, presente em quase todas as cenas de Dorothea. Um diálogo entre ela e Julie pode parecer improvável nos dias atuais, mas é possível que toda família ocidental do século 20 tenha tido pelo menos uma mulher que se tornou fumante depois de adulta apenas pelo apelo de elegância com que o cigarro era vendido nas propagandas. A minha, pelo menos, teve.

Em mais de uma ocasião, os gestos e pensamentos de Dorothea serão embalados pela mítica “As time goes by”, trilha sonora de “Casablanca”. No entanto, em vez de começar com o tradicional verso “You must remember this”, a versão do filme de Mills começa com o pouco conhecido recitativo original, cujos versos dizem: “Esses dias e a era que estamos vivendo nos dão motivo de apreensão, com a velocidade e novas invenções e coisas na quarta dimensão/Embora fiquemos um pouco cansados com as teorias do Sr. Einstein, precisamos voltar à Terra de vez em quando, e liberar a tensão/E não importa o progresso ou o que ainda possa ser provado, os simples fatos da vida são tantos que não podem ser retirados.”

Dificilmente algo poderia expressar melhor a inquietação da mãe diante dos novos hábitos do filho – da música contemporânea às descobertas sobre as mulheres. E a frase recorrente de Jamie sobre a mãe (“Ela nasceu na Depressão”) surge ao mesmo tempo como uma justificativa para a aparente inadequação de Dorothea e uma inequívoca tentativa do jovem de estabelecer uma diferenciação entre o seu mundo e o dela, como se a percepção da individualidade daquele menino tenha sido postergada da primeira infância para a adolescência, provavelmente pela prevalência da figura materna em sua vida.

O pedido de Dorothea para que Abbie e Julie ajudem Jamie acaba criando uma espécie de “corrente do bem”, na qual aquela família informal se sustenta diante das crises. Pois, se Abbie introduz o garoto à cena punk e aos conceitos do feminismo (chocando Dorothea, como se a influência nesse campo tivesse ido longe demais), é Jamie quem segura a barra de Abbie em um dos momentos mais tocantes do filme. E o faz sem falar nada, sem querer consertar nada, apenas “estando lá”, como a mãe ensinou. E se Julie funciona como literal instrumento de fuga de Jamie, é ele também que a ajuda a enfrentar uma dúvida aterrorizante, daquelas que paralisam qualquer adolescente em algum momento da vida.

No entanto, todos esses elementos – Jamie, Abbie, Julie – de alguma forma fazem fluir seus pensamentos, conceitos e vivências de volta para Dorothea, contribuindo para sua própria reflexão de vida. Os conceitos rasteiros de psicologia repetidos por Julie (“A culpa sempre é da mãe”), a instigação de Abbie, falando sobre o amor materno ou sobre menstruação em um jantar com convidados, enfrentando de forma literalmente punk um assunto tabu, e os questionamentos de Jamie mostram que aquela mulher de 55 anos podia – e queria – dar novos rumos à sua vida.


Narrado como memória por um Justin adulto, o filme remete a “Entre dois amores”, de 1985, e a marcante sequência de um voo em um bimotor, lembrando a escritora Karen Blixen, ícone da independência feminina. Dorothea surge, então, como um produto contemporâneo dessa mulher emancipada, mas também ciente do confronto entre suas inseguranças e desejos. Eu não poderia me enxergar mais naquela mulher, e já estava banhada em lágrimas quando Justin questiona a si mesmo como definiria a mãe para os próprios filhos. “Explicar a eles como ela era? Impossível.”