Thursday, August 31, 2006

Nouvelle cuisine

Quinta-feira era dia de macarrão. Minha família não tem nada de italiana, nunca entendi por que se consolidou essa tradição, mas assim era. Talvez um hábito absorvido de fora para dentro de casa, pois todo restaurante tipo “prato feito” de São Paulo podia destacar-se pelo tempero, nunca pela originalidade. Segunda, virado à paulista. Terça, dobradinha. Quarta e sábado, feijoada. Quinta, macarrão. Sexta, peixada.

Lembro que o costume do macarrão às quintas foi particularmente forte no ano de 1980. Ah, a catequese... A turma de meninas seguia para a igreja lá pelas nove da manhã, comprometidas em assistir às aulas da dona Neusa. Uma das mães se encarregava de buscar todas – cinco ou seis – levava para a casa, servia o almoço e depois despejava o grupo na escola.

O cardápio era invariavelmente igual: salada de batatas, bife à milanesa e macarrão. Deus e Dona Neusa que me perdoem, mas eu não via a hora de acabar a aula, salivando pela mistura carbo-calórica que me aguardava. Deus teve de seguir me perdoando enquanto freqüentei a igreja católica e suas missas, porque continuei ansiando pelo fim do ritual, mesmo sem macarrão com bife à milanesa como prêmio, só esperando a parte da missa que mais me enchia de alegria, o “vamos em paz e o senhor nos acompanhe”.

Macarrão, naqueles tempos, não era massa nem pasta. Era macarronada e era muito diferente do que se pede hoje em restaurantes bacanudos da metrópole. Ninguém nunca tinha ouvido falar em grano duro, al dente, pesto, tomate seco, mussarela de búfala. Aliás, ninguém nunca tinha ouvido falar em búfala e rúcula era uma verdura amarguinha que, vez em quando, aparecia na salada, meio exótica.

Macarronada era assim: cozinhava o macarrão, esquentava o molho, escorria a massa, jogava em um pirex com um pouco de manteiga, misturava bem para o macarrão não grudar, jogava o molho, bastante molho, misturava tudo e servia, com queijo ralado por cima.

Daí veio a nouvelle cuisine e seus pratos lindinhos de se ver. Mataram a macarronada. O próprio macarrão foi para o limbo. Restaurante modernete que se preze não serve macarrão, serve pasta. Que é feita de sêmola de grano duro, ou coisa que o valha, cozida al dente, acomodada em um prato fundo, com uma conchinha espartana de molho pomodoro jogada no meio, e um buquê de algo verde decorando no centro. Praticamente uma obra-de-arte.

Nem vou entrar no caso do bife à milanesa, que apanhou tanto, mas tanto, a ponto de se transformar de suculento pedaço de carne em uma solinha de sapato chamada paillard.

Só que, de quando em vez, parece bater uma nostalgia de macarronada no público pagante. E uma pontinha de remorso nos chefs das casas badaladas. Daí colocam no cantinho do cardápio, bem blasé, quase imperceptível, um adendo salvador. Abaixo das pastas finamente acompanhadas de paillard, surge simpático o “molho extra”. Continua vindo a pasta, elegante com sua borda imaculada, o molho só ao centro. Mas junto vem o potinho de molho extra, para que o comensal chafurde feliz o macarrão naquele exagero de tomates pelados liquefeitos, transformando sua pasta al dente de grano duro em uma familiar, suculenta e saborosa macorronada.

Tuesday, August 29, 2006

Brevíssima aula de jornalismo

Ontem, noticiou-se a morte da suposta pessoa mais velha do mundo. Agora, leitores, respondam: quantas vezes, só neste ano, a pessoa mais velha do mundo já morreu? Mês sim, mês não, somos brindados com uma notícia desse teor. Ora, na faculdade de Jornalismo me ensinaram que notícia não é o cachorro que morde o homem, mas o homem que morde o cachorro. Portanto, onde está a notícia no fato de uma pessoa nascida no século 19 morrer em pleno 2006?

Sempre que me deparo com uma notícia dessa, fico procurando sua antítese, mas nunca achei manchete deste tipo - "Nasceu a pessoa mais jovem do mundo".

Um fato curioso relaciona-se ao segredo da longevidade desses centenários: o esporte. Jamais o praticaram.

Monday, August 28, 2006

O adeus a um americano de esquerda

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Andre Agassi estréia hoje no Aberto dos Estados Unidos para dizer adeus. O jogador de 36 anos, atual número 35 do mundo, anunciou sua aposentadoria depois de 20 anos de carreira, 60 títulos conquistados em 90 finais disputadas. Em Flushing Meadows, o complexo que abriga o USOpen, Agassi reinou por duas vezes, em 1994 e 1999. No ano passado, perdeu a final para Roger Federer, o suíço número um do mundo.

Que sejam esses os fatos, o encerramento de uma carreira coroada de sucesso, não se discute. Mas por que, então, meu coração está apertado, como se estivesse me despedindo para sempre de alguém querido, como se este fosse o último dia das férias? Por que dói em mim a certeza do nunca mais, se sempre terei os tapes de seus jogos, se a qualquer tempo poderei relembrar aquele backhand espetacular?

Mais do que a esquerda mortífera, Agassi passeou pelo saibro, pela grama e pelos pisos rápidos munido de uma arma que não se conquista com treinos – carisma. Menino prodígio rebelde, cabelos em desalinho, norte-americano na bandeira, italiano no sangue e nas brigas com juízes de linha, de cadeira, nos gritos consigo mesmo. Tinha a cara dos anos 80, roupas coloridas, um jeito new wave de desafiar o aristocrático e chatinho mundo do tênis. Depois dele, só quem desarmou a sisudez das quadras imaculadas foi Gustavo Kuerten que, não por acaso, foi festejado após o primeiro dos três títulos em Roland Garros tanto pelo jogo quanto pelo sorriso cativante.

Na mesma proporção em que ganhava títulos, milhões e mulheres, Agassi perdia cabelo. As longas e despenteadas madeixas, sempre acompanhadas de faixas na testa, foram substituídas em 1995 por um “penteado” arrojado para aqueles tempos. Raspou a cabeça antes que outros branquelos como ele aderissem ao visual consagrado pelos negros do basquete. Altos e baixos se sucederam: em um ano vencia Wimbledon, no outro, uma operação no pulso. Quando muitos já se preparavam para acender a vela de sete dias de sua carreira, ressurgia fulminante.

Foi muito bom de marketing, casou-se com a bela Brooke Shields, naufragou com ela no casamento – uma das “boas” crises de sua carreira – virou ativista da Unicef, pareceu ter encontrado o equilíbrio no casamento com a alemã Steffi Graf, até hoje e para sempre meu grande ídolo no tênis internacional.

Milionário, consagrado, adorado por seu público, pô! O que faz persistir esse gosto de ressaca na boca da minha alma?

Penso, respiro, reflito.

Não é dos cabelos desarrumados de Agassi, nem de sua esquerda potente, nem de sua força de superação que sinto saudade. Um ídolo do esporte que se aposenta, depois de uma longa carreira que vimos e vivenciamos por vinte anos, leva consigo uma parte da nossa própria história. Pesa em nossos ombros com o determinismo de frases saudosistas que brotam antes que possamos escamotear. “Esse eu vi jogar”. E já não joga mais.

Thursday, August 24, 2006

I love you, Tony

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“A senvergonhice reina, tão leve e leve pertencidamente, que por primeiro não se crê no sincero sem maldade.”(Riobaldo, Grande Sertão: Veredas, João Guimarães Rosa)

- Mãe, você, por favor, pode comprar duas caixas de Sucrilhos?
O pedido, com sentido de urgência, veio no meio da tarde de segunda-feira, soando inusitado. Raramente come Sucrilhos, duas caixas para quê? Justificativa rápida e, em sua lógica, justíssima. O amigo apareceu com duas bolinhas vindas de brinde nas caixas do cereal. Cada caixa, uma bolinha. Logo, duas caixas. “Você traz?”, insistiu.
Averigüei a descrição das tais bolinhas, para confirmar a suspeita. Só podia ser promoção do período da Copa. Em pleno agosto, já era, não vamos encontrar. “Mas você pode procurar?”, tornava a perguntar. Vencer o jogo, talvez. Entrar em campo, sempre. Para não transparecer derrotismo – “não vamos encontrar mesmo” – concordei em levá-lo ao supermercado, à noite.
Vasculhamos todas as embalagens de cereais disponíveis. A ressaca da Copa foi evidente, nada de bolinhas. “Vamos perguntar para alguém”, sugeriu, como se a dinâmica de auto-atendimento dos supermercados pudesse supor alguém atrás do balcão para dar conta de tudo que não se acha. Examinando uma das caixas, uma pista: www.sucrilhos.com.br.
Ainda na casa da avó, me fez suplicar informações para dona Kellog´s. O site tinha o indefectível “Fale conosco” e falei, pedindo ajuda. Onde uma mãe instigada poderia encontrar o brinde descontinuado para o filho? A resposta automática veio em segundos. No dia seguinte, bem cedo, uma resposta personalizada repousava em minha caixa postal. “O brinde a que a senhora se refere é o futebag, distribuído por ocasião da Copa do Mundo. Como já não é atual, será difícil encontrá-lo no varejo, mas teremos prazer em enviar uma unidade para seu filho. Por favor, informe o endereço completo.”
Claro que o fiz no mesmo instante, esperançosa e muda. Não se comenta esse tipo de expectativa com uma criança de seis anos. Você pode não ter filhos, mas já teve seis anos e sabe como o próximo domingo fica longe, como custa para chegar o dia de ir à praia.
Na sexta, chegando em casa, fim de tarde, um envelope alaranjado esperava embaixo da porta. Ele nem notou, claro, não esperava nada. Meu coração palpitou. Guardei as compras, limpei a área, fechei a porta, desliguei o celular. Nenhum intruso, visual ou sonoro, tinha o direito de macular aquele momento. Blasé, peguei o envelope e coloquei sobre a mesa. “Vem ver essa carta que chegou”, pedi. Antes de ver o próprio nome constante como destinatário, bateu o olho no logo, canto esquerdo do envelope. “Uma carta da Kellog´s?!”
Os olhos foram se arregalando e tive a impressão de ver as sinapses acelerando a cabecinha sempre tão veloz. “Abre, mamãe, me ajuda, será que mandaram a bolinha?”. Mantive a fleuma de não rasgar o papel. Alguns papéis devem ser guardados, como o envelope da primeira carta que se recebe. O brinde veio embrulhado em plástico, tal como devia vir na embalagem de Sucrilhos. Pôs a mão no peito, como acusando o coração disparado. “Ai, que emoção, nem acredito!”
O futebag é nada mais que uma bolinha de tecido, recheada com alguma coisa que podem ser pedrinhas, ou qualquer material que deixe o conjunto pesado. No ato, me lembrou aqueles saquinhos cheios de arroz que a vó Elza costurava para a gente jogar. Sabe como é? Uns saquinhos minúsculos, que o desafiante deve jogar um a um para cima, enquanto pega o outro, até encher a mão com todos eles.
Por coincidência, o futebag que veio tem a inscrição “1970” e três estrelinhas. O ano do tri, o meu ano. Nada mais que um saquinho. “Puxa, essa Kellog´s, hein?! Como foi legal! Agora, você tem que comprar Sucrilhos sempre!”
Antes que o coisa ruim passasse a mão sobre minha cabeça e me influenciasse a tecer comentários malévolos à empresa gringa – “safados, é assim que eles capturam seus clientes!!!” – a fada dos bons pensamentos me aconselhou. Foi um gesto simpático, nada mais que uma atitude gentil. Nada mais que um saquinho de pano. Só um sorriso, olhos arregalados, coração disparado, a primeira carta. Um gesto, tudo.

Monday, August 21, 2006

GPTotal, ano 5

Minha coluna de hoje, no GPTotal, comemora os cinco anos do site, lembrando 11 de setembro. O que tem a ver uma coisa com a outra? Quem ler saberá...

Thursday, August 17, 2006

Drummond, 19 anos



Eu estava no 3° colegial e, coincidência, estudávamos Drummond nas aulas de Língua Portuguesa daquela semana. Em casa, sempre tivemos o hábito de ouvir rádio desde cedo, então logo escutei a notícia de sua morte. Comentei com a Teca, queridíssima professora de Português, uma das responsáveis por eu ter me tornado profissional da linguagem.

Anos depois, na faculdade, usei trechos de "Os ombros suportam o mundo" em uma reportagem sobre uma sobrevivente de um campo de concentração. Drummond sempre me foi muito caro. São tantas suas qualidades, mas gostaria de destacar uma. Drummond experimentou e ousou com a linguagem sem se tornar uma caricatura. Subverteu as regras de métrica e rima sem, para isso, tornar-se ininteligível. Pelo contrário, é claro, límpido e direto, talvez por isso mesmo tendo se tornado um poeta tão popular.

Reproduzo "Sentimento do Mundo" e convido os amigos a opinar e sugerir outros escritos de Drummond, inclusive prosa, inclusive infantil.

Sentimento do mundo

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer

esse amanhecer
mais noite que a noite.

Wednesday, August 16, 2006

Um pedido especial

Mensagem para todos os blogueiros e neo-blogueiros: agradeço imensamente pelos comentários recentes, muitos deles motivados pelo link no Blog da Soninha. Manda a boa etiqueta da blogosfera que os comentários sejam respondidos com rapidez, mas tive um contratempo hoje e, infelizmente, só vou conseguir dedicar a atenção que vocês merecem amanhã. Peço a compreensão de todos e agradeço!

Monday, August 14, 2006

Adrenalina, suor e Vivaldi

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(vou introduzir um assunto recente mas, por favor, atentem para os debates nos tópicos abaixo, que continuam a todo vapor. Não vamos nos dispersar!)

A Corrida do Centro Histórico, cuja 11ª edição aconteceu ontem, em São Paulo, já se tornou uma tradição para os corredores paulistanos. É uma prova diferente de todas as outras, que normalmente acontecem em locais como a Cidade Universitária ou parques, como o Ibirapuera e o Villa Lobos. Correr pelas ruas do centro tornou-se um momento muito especial para mim, por muitos motivos.

Primeiro, mea culpa, porque sou uma paulistana de meia tigela, que não conhece o coração da própria cidade. Sou de uma geração de classe média criada longe desse burburinho. A infância e a juventude dos meus pais foi marcada por constantes idas ao centro, ou “à cidade”, como se costumava dizer. Os bairros não tinham todas as facilidades da região central, de forma que qualquer necessidade além do cotidiano implicava em uma visita ao centro. E essas necessidades iam de consultar um oculista a comprar tecidos finos. Estar no centro parece significar, para mim, a volta a um passado que nem é meu, afinal de contas.

Mas há outros motivos para meu carinho com a Corrida do Centro Histórico. O ritual que antecede a prova, por exemplo. É a única ocasião do ano em que tomo o metrô às 6h30 da manhã de um domingo. Na primeira vez, fui meio ressabiada, achando que seríamos só eu e poucas almas penadas. Logo descobri que o metrô paulistano pulsa cedo, mesmo em um domingo de agosto, habitualmente frio. Não foi o caso deste 13 de agosto, que amanheceu quente.

A arena montada pela Corpore, que organiza a corrida, também tem um charme especial. Estendem-se as barracas pelo Vale do Anhangabaú e eu, que nunca fui de passeatas e protestos, me sinto um pouco mais perto da história, do comício das Diretas Já, das comemorações nas Copas do Mundo, dos já longínquos títulos do meu (Las)timão. E o fato de estarmos ali, em lugar apropriado para aglomerações humanas, permite que encontremos conhecidos, troquemos impressões sobre a corrida, tudo muito bom.

Este ano, a Corpore introduziu uma prática muito simpática durante as provas. A exemplo de maratonas tradicionais, como a de Nova York, a organização programa apresentações de grupos musicais ao longo do percurso (fruto da parceria com o Conservatório Musical Souza Lima). Na prova de ontem, a largada foi brindada com um tenor cantando sucessos italianos antigos e outras peças para vozeirões privilegiados. Na Praça da República, uma cantora entoava Volare (Nel blu di pinto di blu). Achei que a coisa estava italianada demais para o meu gosto. Nada contra peças em italiano, mas me pareceu caricato.



Até que cheguei ao Pátio do Colégio e um grupo de câmara, composto por quatro jovens músicos, soltava no ar a melodia do Allegro da Primavera, “As quatro estações”, de Antonio Vivaldi. Deixei-me render pelos italianos: que cena bonita de se ver! Música erudita para todos, e com visível interesse dos transeuntes. Passei (claro!) muito rápido pelo local, mas pude perceber como tinha juntado gente em torno do pequeno palco. E, convenhamos, quem estava no centro de São Paulo, às oito e pouco da manhã de um domingo, não era a fina flor da elite paulistana, o que derruba a tese preconceituosa de que “música clássica é coisa de rico”. O culto à beleza, a fruição da arte é para todos.

Thursday, August 10, 2006

Ciranda de livros

O tema nasceu nas discussões do tópico abaixo ("Vamos defenestrar o ambíguo?") e, para minha grande satisfação, nos colocamos todos a falar sobre livros e experiências de leituras. Como o tema é vastíssimo e como eu não sou nada além de uma leitora dedicada, não terei pretensões de crítica literária. A idéia é compartilhar impressões sobre livros e literatura em geral e me comprometo, dado ao entusiasmo geral manifestado, a periodicamente retomar o tema da literatura, com foco em algum aspecto específico.

Para começar, sugiro que falemos de um livro que tenha marcado intensamente a vida de cada um. Quem gosta de ler certamente terá dificuldade em escolher um só, mas vamos tentar.

"Ciranda de livros" também é o nome da atividade de incentivo à leitura da escola do meu filho, o Gabriel. Cada semana, o aluno leva para casa o livro de um colega até que, encerrado o ano, todo mundo tenha lido o livro de todo mundo.

Vale, novamente, a indicação. Quem quiser saber mais sobre literatura, acesse O Biscoito Fino e a Massa, blog do professor Idelber Avelar que tem, inclusive, um Clube de Leituras virtual.

Começo falando de "Cem Anos de Solidão", de Gabriel García-Márquez.

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Realismo fantástico, fantasia real

"Cem Anos de Solidão", do colombiano Gabriel García-Márquez, lançado em 1967, foi provavelmente o primeiro livro "adulto" que li. Foi no abrasador verão de 1984, um mês antes que eu completasse 14 anos. Desde os sete, sempre fui uma leitora interessada, mas nunca havia me apegado a um livro como daquela vez. A versão que me caiu nas mãos, emprestada, tinha 364 páginas, que venci em quatro dias.

Não é totalmente verdade dizer que "Cem Anos" foi o primeiro livro de gente grande que li. Antes disso, meninota ainda, dediquei-me a alguns livros de Agatha Christie, autora muito apreciada por meu pai. Ao ler meu primeiro García-Márquez, tive a dimensão do que eram livros para entretenimento e o que era literatura (sem, por favor, entrar em juízos de valor, não por enquanto!).

Talvez tenha sido imprudência entrar na literatura pelas portas do realismo fantástico, esse gênero tão identificado a García-Márquez, que no entanto ele não fundou, mas que ficou indelevelmente associado à sua obra. Imprudência porque a impressão foi tão forte, à época, que depois fiquei algum tempo em dúvida: será que "Cem Anos" me marcou tanto mais por seu universo surreal do que pela qualidade da obra em si?

Afastei essa dúvida a cada nova leitura da obra, na medida em que a riqueza da linguagem, a fluência da narrativa e a exposição de tantos e tão diversos dramas humanos confirmavam que ali estava de fato uma obra-prima, independente do padre que levitava, aparições precedidas de borboletas, uma anciã que encolhia até quase caber numa caixa de sapatos, um bebê com rabo de porco devorado por formigas.

Gente muito mais gabaritada que eu já se debruçou sobre "Cem Anos de Solidão" para dizer o que é, afinal, a fantasmagórica Macondo, o que representa a figura do Coronel Aureliano Buendía, onde estão escondidos mitos milenares nos personagens e fatos da história, o significado daquele final a um tempo tão anunciado e chocante, tão óbvio e tão carregado de angústia. Pessoalmente, a experiência com "Cem Anos de Solidão" ganhou um capítulo riquíssimo e, ouso dizer, alentador, com a leitura de "Viver para Contar", a primeira parte da biografia de García-Márquez, lançada em 2003.

Nesse livro, o autor relembra sua infância, adolescência e os primeiros anos da vida adulta. Muitos dos personagens e fatos contidos em "Cem Anos" são reproduções fantasiosas de personagens e fatos de sua própria vida. Há um fato isolado do período que rendeu, sozinho, um livro inteiro, o também ótimo "Crônica de uma morte anunciada" (leitura recomendada e capítulo obrigatório para estudantes de jornalismo!) O alento vem justamente da percepção que a infância e a juventude de García-Márquez não foram nada de extraordinário, uma vida comum, como a de tantos de nós. E, no entanto, dessa vida ordinária, ele extraiu a matéria-prima para construir uma obra fanstástica, nos dois sentidos. E o alento é perceber que é possível fazer literatura a partir do dia-a-dia mais previsível. Transformar os fatos em um texto imortal é que são elas...

Quem quiser saber um pouco mais sobre "Cem Anos de Solidão" encontra uma breve introdução aqui.

Quem quiser puxar discussão sobre "Cem Anos", esteja à vontade. Quem quiser falar de outros livros, vambora!

Wednesday, August 02, 2006

Vamos defenestrar o ambíguo?

Quem me conhece sabe que me esforço para olhar o mundo sempre por uma perspectiva positiva. Um olhar Pollyanna. Não nasci assim, mas entendi que esse é um jeito mais inteligente de viver, por isso me aplico, com a ajuda de valiosos amigos e mentores, para melhorar e enxergar o mundo pela lente do otimismo. Nesse sentido, acho que vale mais a pena enaltecer o bom que reforçar o ruim. Tudo isso para dizer que não tenho (mais) o hábito de criticar o Galvão Bueno.

Hoje, sou capaz de compreender Galvão como um karma coletivo do povo brasileiro. É aquele ser que veio ao mundo para nos dar a oportunidade de exercer a paciência. Além disso, por mais espontaneidade que possa estar contida nos achados e bordões do locutor, não podemos esquecer que ele é empregado de uma emissora de TV e, se está prestigiado na posição há tanto tempo, certamente isso se dá em razão de ser um funcionário exemplar. Ou seja, cumpre bem as ordens que recebe.

Sublimo tanto a existência de Galvão que sou capaz de assistir a uma partida de futebol ou a uma corrida narrada por ele sem registrar o que ele diz. Talvez tenha sido por isso que não me lembro de duas passagens havidas na última corrida de Fórmula 1, disputada no último domingo, na Alemanha. Mas as duas valem o registro, menos no sentido da malhação habitual, e mais no exercício de reflexão que ensejam.

Primeiro ato. Rubens Barrichello abandona a prova e é entrevistado pelo repórter Pedro Bassan, afirmando que não havia rodado na pista. A imagem mostra que rodou, sim. Bassan retoma o contato com Barrichello, sem que o áudio da segunda conversa vá ao ar. O repórter apenas relata que perguntou novamente sobre a eventual rodada “porque a resposta de Rubinho tinha sido ambígua”. Imediatamente, Galvão pede explicações ao repórter. “Tinha sido o quê?”. Consta que o pedido de explicação veio em tom de reprimenda, como se Bassan tivesse proferido um palavrão no ar.

Segundo ato. Falando sobre algum piloto substituído – provavelmente Montoya (nesse caso, não tenho certeza. Se alguém souber, agradeço o complemento da informação) – o comentarista Reginaldo Leme diz que o piloto tinha sido “defenestrado pela equipe”. Ato contínuo, Galvão emenda: “Tá boa a coisa aqui hoje. Ambíguo, defenestrar...”, apontando as “falhas” dos colegas em usar palavras, digamos, “difíceis” no ar.

De novo, reafirmo: a postura do locutor não pode ser compreendida como mera idiossincrasia (oh, desculpem pela palavra!). É, evidentemente, uma postura da empresa em que ele trabalha. Um dogma que deve ter o seguinte teor: falamos para o povo, e quando se fala para o povo, não se pode falar difícil. Aqui eu acho que cabem a reflexão e o debate. Vou lançar algumas idéias e convido vocês a embarcar e contribuir com outras.

Se a postura é essa, para mim é um desserviço. A emissora de TV é uma concessão pública que implica algumas obrigações do concessionário, como as de informar e educar. Usar palavras e formações lingüísticas cultas, explicando-lhes o significado, é uma maneira de alargar o vocabulário e a capacidade de comunicação de quem assiste. Não vejo mal nenhum, nenhum pedantismo, em usar a palavra “ambíguo”, explicando seu significado, em uma transmissão esportiva.

A própria emissora, se reza por essa cartilha, no entanto já usou o expediente de formar entretendo. Li há alguns meses que o autor Silvio de Abreu aproveitou uma cena da novela das oito para “corrigir” o hábito crescente do chamado “gerundismo” (vou estar ligando, vou estar retornando etc.). E novela das oito é o programa de maior audiência da TV, e é entretenimento puro.

Outro aspecto que vale o debate. Não é uma postura também preconceituosa achar que a linguagem deve forçosamente ser medíocre para que o público compreenda? Eu tenho convicção de que pessoas simples, de origem simples, são capazes de nos acrescentar muito em termos de vocabulário. A Lia, que trabalha lá em casa, vive dizendo que fulano “está engenhando alguma coisa”. Achei a expressão curiosa e fui ao dicionário. Está lá que engenhar é inventar, tramar, criar. Eu não sabia, ela me ensinou.

Ou será que na comunicação de massa só cabe o medíocre e Galvão e sua empregadora estão certos?