Thursday, June 17, 2010

A primeira Copa

A pedido do meu amigo Alexander Grunwald, escrevi no blog Formula Grun sobre o tema "A primeira Copa". Abaixo, reproduzo o texto.



Serei óbvia. Tenho quarenta anos, nasci no ano do Tri mas, como qualquer pessoa da minha geração, tenho a Copa de 82 como marco fundamental da minha relação com o futebol. Mas vou a ela depois.

(Talvez, adiando falar sobre ela, eu ainda me iluda de que o resultado possa mudar.)

Se nasci no ano do Tri, naturalmente minha primeira Copa foi a de 1970. Minha mãe conta que corria a tapar meus ouvidos na hora do foguetório. E esta é a única referência pessoal que tenho daquele torneio. Já de 1974, as lembranças são mais agudas. Lampejos de memória, mais exatamente.

O que me marcou, definitivamente, foi o contraste das camisas cor de abóbora da Holanda contra o gramado verde. Foi a primeira Copa transmitida em cores para o Brasil, e meu pai deve ter sido um daqueles que se embalou no apelo de comprar uma TV colorida para ver os jogos.

O lampejo de memória remete ao jogo da Laranja Mecânica contra o Brasil. Eu e meu pai sentados na sala, montando cidadezinhas com os blocos Pequeno Engenheiro, tomando suco de abacaxi Maguary. Minha mãe aproveitava os jogos do Brasil para ir ao mercado, e voltava feliz da vida pela ausência de movimento no local. Na Copa seguinte, o mercado passou a fechar as portas na hora dos jogos da seleção brasileira, e meu pai brincava com ela, dizendo que só fechavam para ela não inventar de ir bem na hora da partida.

A Copa da Argentina marca presença com três cenas. O jogo do Brasil contra a Argentina, 0 x 0, especificamente por um lance de reclamação do volante Batista. O locutor soltou um “Cala a boca, Batista”, que era bordão de um programa humorístico da época, “Planeta dos Homens”, e eu me lembro de cair na gargalhada. Eu e meus primos. Estávamos na casa de uma tia, enquanto o resto da família acompanhava o enterro de uma parenta. Consta que o filho desta, um palmeirense doente, impacientava-se na cerimônia, ávido para correr para casa e ver o jogo. É bem provável.

A outra cena é a decantada goleada da Argentina contra o Peru. Eu não estava assistindo ao jogo, mas acompanhava do quintal a contagem dilatada do placar. Lembro que não entendi direito a dramaticidade contida naquele resultado, nem que a vitória massacrante da Argentina tirava o Brasil da final. Mas lembro bem da terceira cena, no dia seguinte, na escola. Dona Irene, minha professora da segunda série, balançando a cabeça grave e tristemente, decretando que, “infelizmente, foi marmelada”.

Eu já era corintiana naquela Copa. Menos de um ano antes, havia sido arrebatada depois da conquista do título paulista, contra a Ponte Preta. Nos quatro anos que separaram a Argentina da Espanha, fui me afeiçoando cada vez mais do futebol, principalmente pela influência dos meus tios Edgar e Edson, já que meu pai era torcedor da Portuguesa de Desportos e teve a grandeza d´alma de não impor sua sina nem a mim nem a meu irmão. Não era muito natural uma menina gostar de futebol, mas não era só de futebol que eu gostava. Tinha esporte na TV, eu estava ligada.


Os músculos do ponta-esquerda Éder


A Copa de 1982 me pegou em cheio na virada da adolescência. Corpo em transformação, hormônios, oscilações terríveis de humor. Vinte e oito anos passados, hoje penso que minha fixação na Copa da Espanha tem muito a ver com o futebol daquele time tão cultuado, mas muito também, e talvez mais, com a minha própria história.

Assim, mais do que o futebol arte, mais do que o calcanhar do Sócrates, os gols do Zico, os passes cirurgicamente precisos do Júnior, a Copa de 1982 talvez seja para mim – desculpem, rapazes – o conjunto de músculos do ponta-esquerda Éder e o porte altivo do zagueiro Oscar. Não sei dizer por qual dos dois, de verdade, mas acho que foi na Copa de 1982 que me apaixonei pela primeira vez.

Sim, o futebol era mesmo tudo aquilo. Quem não viu, que procure vídeos da época. A seleção brasileira jogava o fino, todos os titulares eram dotados de habilidade, não se falava em futebol força. Éder, aliás, destacava-se naquele grupo por seu físico definido, coisa ainda pouco preconizada na época. Olhando à luz de décadas passadas, penso que muita da identificação da torcida com o time vinha do fato de estarem praticamente todos aqui, atuando no Brasil. Eram jogadores do Flamengo, do Corinthians, do São Paulo, do Atlético Mineiro. Tirando Falcão, recém-vendido para a Roma, ninguém jogava em times como Chelsea, Werder Bremen ou Panatinaikos. Eu, aliás, acho que nem conhecia esses nomes, e eu já lia muito sobre futebol!

Se a Copa de 1970 é um vazio na memória, se a de 1974 são lampejos e se a de 1978 é bem menos que um trauma, a Copa de 1982 é até hoje minha lembrança mais forte em se tratando dessa competição. O dia 5 de julho de 1982 permaneceu como dia de luto por muitos anos, como muita gente tem o 1º de maio de 1994. O jogo, na hora do almoço, foi acompanhado de nhoque ao sugo e pão italiano. Achei que a provocação não deu sorte, passei anos sem comer nhoque e pão italiano, e culpei meus pais pela escolha desastrada do cardápio. Culpei meus pais porque adolescentes, especialmente nessa virada hormonal assustadora, culpam os pais por tudo. Mas também sobrou para o Toninho Cerezo, para o Telê que não mandou o time recuar, e para o juiz, que não marcou um pênalti de Gentile sobre Zico. Ou aquela camisa rasgada do Galinho, em plena área, era efeito de tecido puído?

Até hoje, carrego muito mais bronca da Itália que de qualquer outra seleção. É sério: perco com menos raiva da Argentina que da Itália. Na Copa de 1994, mantive-me serena até o jogo final. Eu nem ligava tanto de não ganhar aquela copa, mas quando se definiu o adversário da final, resgatei o entusiasmo. Ainda assim, não compensou. Acho que nunca vou me conformar com aquela derrota estúpida por 3 x 2, embora meu amor ao futebol tenha se solidificado de vez depois daquela que é chamada “a tragédia do Sarriá”. A Copa de 1982, com meus hormônios e minhas primeiras paixões, foi a minha primavera. E eu queria que ela terminasse em flor, consagrada com o título, e não nos pés do Paolo Rossi.