Talvez tenhamos que reaprender a ser pedra |
Fechei a janela do banheiro, abri a torneira da ducha,
liguei o rádio em alto volume, enfiei a cabeça debaixo da água. Depois de sair
da última colocação, no primeiro turno, o Corinthians chegava à final e perdia
para o São Paulo, no Campeonato Paulista de 1987. Não queria ouvir a
comemoração lá fora, os fogos, os gritos.
Sentei ao lado da janela, só porque o Outono tinha se
fantasiado novamente de clima do Saara, acompanhei os votos no Twitter, meti
fones de ouvido e, ao sinal do desfecho, soltei Red Hot Chili Peppers no
máximo. A Câmara dos Deputados tinha aprovado o impeachment da presidenta Dilma
Rousseff. Não queria ouvir a comemoração lá fora, os fogos, os gritos.
“Você parece criança que, quando os pais dão bronca, tampa
os ouvidos e fica gritando qualquer bobagem para não ouvir!”
Meu filho, depois de socar o sofá e o chão com suas luvas de
muai thai, tinha certa razão em criticar um traço tão imaturo de escapismo
quanto aquele. Não me demovi do gesto. A primeira música acabou, a farra na rua
continuava. Soltei outra canção. Finda a segunda, o silêncio.
Chora mais. Depois, luta (foto Gustavo Andrade AFP) |
Perdemos. Sim, perdemos feio, de lavada. É triste perder e,
se o gesto foi o mesmo de quase trinta anos atrás, bancando a criança mimada que
não, não quer ouvir, desculpem-me, companheiros. Tenho a pele fina, os ouvidos
sensíveis e, talvez, o mais relevante: um ego inflado que não gosta de ser
tripudiado. É por ele que não me exponho em brigas políticas ou futebolísticas.
Talvez eu seja menos civilizada do que minha postura sugere. Eu não digo tudo o
que penso – de pênaltis mal marcados a votos porcamente justificados – mas
penso cada barbaridade que, deixa pra lá...
Vou continuar não brigando, mas meu coração foi se apertando
e fazendo brotar palavras à medida que interagia com amigos – reais e virtuais
– na noite deste domingo. Eram Paulas, Wesleys, Vanessas, Alans, Tatianas,
Gustavos. E os que mais me comoviam eram os bem jovens, muitos deles
entristecidos não apenas pela derrota, mas principalmente por ver aflorar
sentimentos de intolerância que deságuam em algo que não pode ser chamado de
outra coisa que não seja fascismo.
Por partes, companheiros. Primeiro, à tristeza pela derrota.
Muitos de vocês não eram vivos, ou pelo menos crescidos, enquanto vivíamos uma
ditadura militar no Brasil. Não viveram a campanha pelas Diretas Já, não
votaram para presidente pela primeira vez junto com seus pais. Não vou dizer
que a derrota de ontem foi pouca coisa, não foi. Mas não posso deixar de notar
que os últimos treze anos, que representaram a continuidade de um governo de
esquerda no Brasil, significaram mais da metade da vida de alguns de vocês. A
guerra ainda não está perdida, e a mobilização de todos continua sendo vital
para tentar reverter esse quadro.
Mas, acostumem-se à ideia de agir como oposição, caso
percamos também a guerra. Esses treze anos, coincidentemente, marcaram também a
popularização das redes sociais no mundo. É certo que a oposição à esquerda no
Brasil articulou-se de forma competente por esse canal. Panelaços e
manifestações nasceram nos últimos anos por meio desse veículo. E pessoas que
pensam de forma contrária a nós sentiram-se encorajados para se mostrar.
Mostraram muita convicção e vários exageraram na dose de agressividade.
Mas eu arrisco dizer que a neodireita brasileira não tem
noção do que a esquerda pode fazer quando deixar de ser vidraça e se tornar
pedra novamente, como fomos na maior parte da nossa existência.
Fundamentalmente, porque nosso ativismo não se restringe ao ambiente virtual.
Estamos lastreados por forças sociais (de trabalhadores, de estudantes etc.)
que pode – e, ao me parece, vai – mobilizar a sociedade para além dos protestos
festivos aos domingos.
Por isso, jovens companheiros, quando passar a vontade de
chorar, de se esconder no riff barulhento de um rock estridente ou de socar o
chão, mobilizem-se novamente. Já fizemos isso antes. Dói, mas caleja, e não
mata ninguém, pelo menos enquanto não se chegar à conclusão de que a ditadura é
melhor, como pensam alguns.
Quanto à tristeza de ver o discurso fascista florescendo
entre nós, principalmente entre os mais jovens... Desculpem, talvez para essa
eu precise da ajuda de vocês. Eu entendo e louvo a ideia de que jovens têm de
ser do contra. É quase orgânico, e esperado. E acho que o atual governo tem
erros terríveis a serem corrigidos, e acharia natural ver mais jovens
empunhando a bandeira da inclusão social ampliada, da descriminalização das
drogas, do respeito à mulher, do casamento homoafetivo etc. Mas não consigo
encontrar explicação para, ao contrário, ver crescer as intolerâncias raciais,
religiosas e étnicas, a homofobia, o machismo, a misoginia. Alguém me ajuda com
isso?