Monday, March 20, 2017

Silêncio: Scorsese traz Deus para o chão


"Silêncio"; o "olhar de Deus"

Está em “Taxi Driver”, em “Os bons companheiros”, em “Cassino”, em “Os infiltrados”. O “olhar de Deus” se faz presente praticamente em toda a obra do diretor Martin Scorsese. É aquela tomada do alto, perpendicular à cena, como se alguém observasse, do céu, os atos dos personagens. Uma presença vigilante, opressora em vários sentidos.

E está lá, logo no começo de “Silêncio”, mais recente longa do diretor: o “olhar de Deus” vigia os passos de três padres que se deslocam em uma escadaria enquanto acertam os detalhes para a ida de dois deles ao Japão. Olhando uma escada totalmente “de cima”, não se sabe, ao certo, que lado sobe, que lado desce, e é justamente essa dualidade que o filme de Scorsese parece colocar em cheque, estabelecendo um diálogo com a extensa filmografia do diretor.

A história se passa no século 17: dois padres jesuítas portugueses (Andrew Garfield e Adam Driver) viajam ao Japão em busca de outro religioso da companhia (Liam Neeson), desaparecido depois de ter renegado sua fé no país que, a essa altura, perseguia os cristãos.

"Silêncio": no início, tons escuros e terrosos

Inexplicavelmente desprezado pela Academia, “Silêncio” recebeu apenas uma indicação ao Oscar deste ano: o de Fotografia (perdeu para La La Land). E este é, de fato, um dos maiores atributos do filme. Rodado quase exclusivamente em locações, “Silêncio” apoia-se em uma fotografia contemplativa, criando uma sequência de “quadros” permeados pela força da natureza de um Japão medieval.

Essa característica pode causar estranheza a quem associa a obra de Scorsese ao universo de gângsters, violência e sangue, retratadas na maioria das vezes com energia, por meio de movimentos de câmera ágeis. Mas, se a obra de Scorsese não se resume a esse universo e já tenha incorporado a temática da fé em outras produções (“A última tentação de Cristo”, “Kundun”), “Silêncio” parece contestar a onipresença da figura divina – e da Igreja Católica – acrescentando um olhar diferente, sob outra perspectiva.

A fotografia predominantemente escura do início do filme reforça, a todo o tempo, a presença da terra e de seus tons de marrom. Ela está nas roupas dos padres e dos fiéis, nas paredes da caverna que os escondem, nos pés de barro, fartamente focalizados em uma cena recorrente: o ato de renegar a fé em Jesus, literalmente pisando em figuras representativas do chamado Filho de Deus.

Renegando Cristo: Deus está no chão

À medida em que vai avançando para seu terceiro ato, “Silêncio” também joga luzes sobre sua fotografia, como se a malfadada experiência católica no Japão esclarecesse a real imagem de Deus para aquele povo, modificando inclusive a visão de pelo menos um dos padres dessa missão. Scorsese não apenas parece abandonar o “olhar de Deus”, lá do alto, como traz essa presença para o nível dos mortais, e rente ao chão, sujo de terra, até literalmente jogá-la para debaixo do solo, no comovente desfecho do filme.

Outro aspecto destacável do longa está, como não poderia deixar de ser, em seu som. As súplicas dos fiéis, padres inclusive, resultam no frustrante “Silêncio” de Deus diante do sofrimento, da abnegação, da incompreensão dos homens. E a forma pela qual Scorsese aborda esse silêncio é minimalista e corajosa. Praticamente sem trilha sonora, o filme se apoia nos chamados sons “diegéticos” (que os personagens também estão ouvindo), reforçando a presença da natureza hostil àquelas pessoas (natureza hostil inclusive no que se refere aos humanos antagonistas da trama).

Garfield: papel muito mais complexo que em "Até o último homem"
 Sem o reforço dramático que a música pode conferir a uma produção como “Silêncio”, o peso da interpretação dos atores (especialmente Andrew Garfield, cuja figura vai se assemelhando à representação de Jesus Cristo ao longo do filme) torna-se ainda mais relevante, e parece ainda menos compreensível o desprezo da Academia pelo filme. E quase uma heresia pensar que “Até o último homem”, dirigido por Mel Gibson, tenha não apenas sido indicado ao prêmio de Melhor Filme como rendido a Garfield uma indicação ao prêmio de Melhor Ator, sendo o papel dele em “Silêncio” incomparavelmente mais desafiador.

Martin Scorsese: ajuste de contas


Longa vida a Martin Scorsese: que seu gênio criativo continue brindando os cinéfilos de todo o mundo com outras obras-primas como “Silêncio”. Mas, se quisesse se aposentar agora, o sofrido relato de dois padres portugueses no Japão seria um belíssimo encerramento de ciclo – e talvez um ajuste de contas – com a culpa católica que sempre permeou a obra do cineasta.

Sunday, March 12, 2017

Fora, Violet



“O que é um fim de semana?”

Com um ar meio aparvalhado, Violet Crawley genuinamente não entendeu o significado daquela expressão. O jovem Matthew tinha chegado a Downton Abbey como herdeiro improvável da fortuna da família. Primo distante, ele só assumiria esse papel caso o primeiro nome na linha de sucessão morresse. Como convém a uma obra de ficção, o herdeiro não só morreu como morreu no naufrágio do Titanic.

Sem perspectiva de passar a vida apenas usufruindo o dinheiro dos ancestrais nobres, Matthew não tinha sido criado para ser herdeiro. Por isso, estudou e arranjou algo exótico para aquela família de aristocratas a um passo da falência: um emprego. Quem tem emprego precisa de um intervalo para descansar. E faz isso em um final de semana. Quem não tem emprego, de fato, haverá de ter alguma dificuldade em compreender o significado, ou antes, a necessidade de dois dias de ócio.

Violet, interpretada pela atriz inglesa Maggie Smith, não estava errada. Era apenas a personificação do anacronismo. Arraigada a uma tradição medieval, enxergava-se como membro de uma estirpe superior, que não precisava (nem deveria) ter preocupações com dinheiro ou bens materiais. Aos nobres, essas coisas simplesmente apareciam, herdadas de geração em geração. Tinha sido sempre assim, e assim haveria de continuar. (Não me parece muito diferente da visão de alguns herdeiros da burguesia no século 21, mas isso é outra história.)

Temer: machista e míope


Lembrei essa passagem do seriado nesta semana, quando o “presidente” Michel Temer exaltou o papel das mulheres na sociedade como relevante para aferir preços em supermercados e criar filhos. A grita feminista foi instantânea, gerando protestos, textos, memes, piadas, parodia de música, discussões. É claro que a visão de Temer tinha de ser confrontada pelo viés feminista, mas ela me parece ter um forte componente classista também. E foi por isso que ela me remeteu à frase da aristocrata de Downton Abbey.

Usando o próprio seriado como exemplo: para manter o funcionamento da propriedade dos Crawley, a casa era coalhada de serviçais, em número bem maior que o da própria família. Entre eles, um contingente expressivo de... mulheres. Elas estavam lá para limpar, arrumar a casa e cozinhar, além de vestir e pentear as mulheres da família, cuidar de bebês e crianças.

Uma passagem em particular ilustra como a relação entre mães e filhos, no ambiente aristocrata, tinha muito pouco de afeto e convivência: questionada pela filha sobre seu pouco interesse na vida dela, a idosa Violet defende-se, dizendo que não havia transcorrido um dia sequer sem ela passar “pelo menos uma hora” com seus filhos, deixando claro que as outras 23 eram atribuição delas, as criadas.

A criadagem de Downton Abbey: exército de mulheres


Ambientado no início do século 20, o programa de TV faz o retrato de um período, mas historicamente nós sabemos que a presença da mulher como força de trabalho sempre existiu. Fosse como serviçal remunerada ou como escrava. Cem anos depois, esse panorama mudou timidamente. (Sim, timidamente, pois se ainda estamos discutindo paridade salarial, significa que ainda temos muito a avançar.) Quando estranhamos a fala de Temer, pelo anacronismo semelhante ao da aristocrata do seriado, estamos olhando para um perfil de mulher da classe média ou da elite que de fato avançou no mercado de trabalho.

E é absolutamente legítimo que nós, desta quase casta, tenhamos o direito de nos sentirmos ofendidas, por não reconhecermos as compras para o lar e a criação de filhos como nossas únicas atribuições. Mas ao reduzir as mulheres a isso, Temer não foi só machista, foi classista também, por ignorar que essa figura anacrônica de dona de casa e mãe sempre contou – antes e agora, com variações – com um exército de mensalistas, diaristas, cozinheiras, babás, atendentes de lojas, garçonetes, ascensoristas, manicures, cabeleireiras, depiladoras etc. etc. etc.


Da mesma forma que Violet ignorava o conceito de trabalho e as pessoas responsáveis por executá-lo, Temer explicita uma visão míope sobre a própria casta a que pertence. E ignora a maior parte da população feminina, que trabalha agora, e sempre trabalhou, mas parece invisível aos olhos dessa casta.