Sunday, September 24, 2023

Elis, Tom & a turma do bom-gosto

 


É impossível ficar uma hora e cinquenta minutos escutando a arte de Tom Jobim e Elis Regina e não sair com um sorriso no rosto. O documentário “Elis & Tom – Só tinha de ser com você” traz imagens da gravação do disco, lançado em 1974, bastidores dessa gravação, entrevistas recentes com personagens desse álbum e muita música. Como poderia ser uma experiência ruim ouvir “Águas de Março”, “Só tinha de ser com você”, “Pois é”, “Chovendo na Roseira”, “Modinha”, “Por toda a minha vida” e outras? Ouvi-las em ensaios, nas gravações, nas audições dos próprios artistas, ainda no estúdio, em vídeos promocionais do disco é puro deleite. E quando se lembra que tudo, absolutamente tudo ali exposto, é fruto de pura arte, sem recursos tecnológicos que operam milagres para melhorar a qualidade do som, inclusive afinar vozes, o deleite vira deslumbramento.

 

“Elis & Tom – Só tinha de ser com você”, no entanto, persegue a confirmação de uma tese:  a de que Elis se tornou uma cantora mais contida, técnica e precisa após a gravação desse disco. Além da tática “jornalismo declaratório” (se alguém disse, é verdade), o filme também comprova tal tese com gravações de Elis anteriores ao álbum gravado com Tom Jobim. Nelas, Elis aparece em performances grandiosas, soltando a voz em arranjos exuberantes, com muitas cordas e metais.

 

Elis, de fato, surgiu assim para a grande mídia sudestina, em 1964, quando se mudou de Porto Alegre para o Rio de Janeiro. Era a cantora “hot” em um ambiente Bossa Nova incensado como “cool”. Era uma intérprete vibrante, dramática, que agitava os braços enquanto vencia um festival, cantando “Arrastão” e ganhando o apelido de “Hélice Regina”. Era a anfitriã de um programa em horário nobre da mais importante emissora de TV da época. E, em que pese chamar-se “O fino da Bossa”, a atração trazia Elis e seu colega Jair Rodrigues embalados em sambas rasgados, em músicas de cunho social (“de protesto”), em uma efervescência que pouco ou nada tinha a ver com a sofisticação dos apartamentos refinados de Ipanema onde nasceu a Bossa Nova.

 

Elis, cantando Arrastão: Hélice Regina

A cantora continuou não sendo “cool” quando deu uma guinada, no final dos anos 1960, e incluiu Roberto Carlos, Beatles e Tim Maia em seu repertório, em uma fase de sua carreira que contou com a produção de Nelson Motto. Elis, também não era contida nem minimalista quando comandou outra atração de TV, ao lado de Ivan Lins, já no início dos anos 1970.

 

Mas nada foi como antes quando Elis encontrou em César Camargo Mariano seu mais frequente parceiro na música. Foram nove anos de conjunção musical (e casamento). O primeiro álbum dos dois juntos, em 1972, configurou um importante ponto de virada da personalidade de Elis como cantora. Foi naquele álbum, que contém a primeira gravação de “Águas de Março”, e também “Atrás da Porta”, “Casa no Campo”, “Nada será como antes”, “Mucuripe”, entre outras, que Elis despiu-se da grandiloquência dos arranjos e passou a entregar interpretações muito mais precisas, contidas, diretas.

 

O disco de 1972: o ponto dessa virada

Pianista e arranjador, César concebeu para esse primeiro trabalho dos dois um conceito musical que mesclava as sonoridades do samba e do jazz, com uma densidade sonora que incluía Elis não como uma crooner, que habitualmente se estimulava a cantar alto e forte para vencer com sua voz os instrumentos. Ali, ela passa a ser uma integrante daquele grupo de músicos ao seu redor. O que parece uma interpretação contida, quase minimalista de Elis, a partir desse disco, é o resultado de um equilíbrio entre vozes – do piano, da guitarra, do baixo, da bateria, de Elis.

 

O álbum seguinte, de 1973, que trouxe “Ladeira da Preguiça”, “Meio de Campo”, “Oriente”, “É com esse que eu vou”, entre outras, tem uma personalidade diferente do disco de 1972, mas continua seguindo a receita da precisão, do equilíbrio, de uma interpretação contida, afinada e afiada.

 

Por isso, parece incorreta a tese de que “Hélice Regina” tenha se tornado uma cantora mais sofisticada, precisa e “cool” apenas depois de gravar com Tom. Antonio Carlos Jobim foi um compositor extraordinário. Moderno, inventivo, revolucionário até. É correto dizer que, ao gravar com Tom, em Los Angeles, Elis provavelmente buscava acoplar sua imagem ao prestígio que o compositor brasileiro já tinha no exterior. Mas essa transmutação veio pelo menos dois anos antes do histórico álbum Elis & Tom.

 

Afirmar que Elis tornou-se uma cantora mais refinada depois desse disco é repetir a visão preconceituosa e elitista que classifica como música “de bom gosto” apenas o que tem a chancela das eminências pardas da dita MPB. Inclusive porque essa versão contida e minimalista da intérprete Elis Regina não se manteve como sua única versão nos oito anos que se seguiram, até sua morte, em 1982.

 

Dois anos depois de “Elis & Tom”, ela rasgava a voz em “Como nossos pais” e “Gracias a la Vida”, e emulava novamente as cantoras do rádio, como no início de carreira, em “Fascinação”, no também histórico “Falso Brilhante”. Alguns anos mais tarde, Elis perfilava-se de novo ao lado de orquestras exuberantes para soltar sua potência vocal em registros como “Cai Dentro” e “Eu, hein, Rosa”, e duelava prazerosamente com Cauby Peixoto em “Bolero de Satã”, qual uma nova versão de Angela Maria, uma de suas grandes referências.

 

Cauby e Elis, 1979: soltando as vozes

Não bastasse o que veio depois de “Elis & Tom”, convém parar para ouvir o que Elis produziu no Rio Grande do Sul, ainda adolescente, quando foi lançada no mercado fonográfico como um genérico de Celly Campello. Nos discos em que desempenhou esse papel, Elis já era capaz de interpretações contidas e românticas, porque era o que se esperava de uma cantora cuja aspiração maior deveria ser embalar o romance dos casaizinhos de sua geração.

 

Elis, aos 16 anos

Elis Regina amadureceu como artista, naturalmente, mas foi sempre uma cantora incrivelmente versátil, que moldava sua voz e sua interpretação ao momento que estava vivendo. Talvez, em 1974, quando se uniu a Tom, ela passou a cantar aquilo que a turma do “bom gosto” esperava dela. O que não quer dizer que ela não sabia fazer isso antes.

Thursday, January 26, 2023

É tudo culpa dela?



Quando uma mulher dá à luz, junto com a criança nasce uma entidade que vai acompanhar essa mãe por toda a vida – a culpa. Talvez exista algum mecanismo mental que faça com que a mãe se sinta culpada por não poder manter aquela criatura, que ela mesma produziu, para sempre na segurança do útero. Choros, cólicas, engasgos, tombos, notas baixas na escola, o vestibular, desilusões amorosas, multas de trânsito, demissões, dívidas, divórcio, tudo o que vier pela frente, na vida daquela criança já transformada em adulto, soará sempre para a mãe como uma falha dela mesma, como se ela pudesse ter evitado tudo isso, se tivesse prendido aquela criança em suas entranhas. Aquele pequeno e indefeso ser, no fundo, é um manancial de preocupação eterna, um pesadelo, um monstro.

Não é à toa que a personagem principal de “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” tenha de enfrentar, em uma série de universos paralelos, uma entidade maligna que tem as feições de sua própria filha. Evelyn, a heroína da história, tem claras diferenças com a filha Joy, que se transforma na vilã Jobu Tupaki na realidade paralela. E é significativo que quem apresente essa vilã para Evelyn seja seu marido, Waymond, um sujeito metido a engraçadão que quer se divorciar da esposa porque, aparentemente, ela não o trata com muita gentileza.

Essa relação parece significativa porque, tão frequente quanto a mãe soterrada em culpa após o nascimento de filhas e filhos é a figura do pai carente, que se ressente da falta da esposa pré-parida, que antes só tinha olhares para ele. Erasmo Carlos até fez uma canção sobre isso (“Quando chego em casa, à noitinha, quero uma mulher só minha/ Mas pra quem deu luz não tem mais jeito, porque um filho quer seu peito”).

Mas Evelyn não é apenas uma mãe mergulhada em culpa e ressentimento com a filha que parece frustrar todos os seus planos. Ela é um burro de carga na empresa que administra com o marido e na qual estão encrencados com uma questão fiscal. Ela atende os clientes desse estabelecimento, uma lavanderia que parece ter tido dias melhores, faz a contabilidade do negócio (e naturalmente se complica com isso) e ainda tem de se haver com o pai idoso, um sujeito aparentemente conservador e invasivo. Aparentemente porque, de certa forma, o filme dá a entender que essa prevalência mental do pai sobre Evelyn pode ser uma dramatização excessiva que ela mesma faz do velho. Ou seja, culpa dela.

“Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” é bom entretenimento, e cheio de bons momentos, enquanto não tenta amarrar aquele grande delírio mental como produto da instabilidade de uma mulher. Talvez seja fácil para o marido bobalhão pedir a ela que “seja gentil” e resumir as razões do casamento desgastado à brutalidade dela. Talvez seja impossível para ele entender toda a carga de culpa que o modelo de vida contemporâneo despeje sobre uma mulher.

Sunday, November 06, 2022

A panela no fogo, Lula e a eterna cobrança

 


A história era contada com tons de anedota: década de 1960, mulher do interior, mãe de dois filhos e professora. Sempre que o marido chegava para almoçar e ela estava atrasada no preparo da refeição, colocava diversas panelas no fogo, tampadas e só com água, para dar a impressão de que a comida estava em vias de ficar pronta. “Assim, ele olhava de longe e não reclamava que eu ainda estava começando a fazer o almoço”, e não apenas os interlocutores riam como a dita senhora reforçava a cena como conselho para as moças mais jovens.

Adolescente, eu ouvia aquilo com um misto de incredulidade e tristeza. Aquela mulher, que fazia jornada tripla, precisava lançar mão de um simulacro bizarro para justificar seu atraso, como se ela estivesse em falta com a família, mesmo que o suposto atraso tivesse sido causado pelo trabalho na escola. Afinal, deixar que ela trabalhasse fora era uma enorme concessão do chefe da casa, já que suas funções prioritárias eram, de fato, cuidar da casa, dos filhos e, claro, do marido. Como se, de fato, aquele lugar fora de casa não fosse o seu lugar.

Sempre me lembro dessa história quando leio, ouço e assisto a notícias e análises políticas relativas ao início de um governo de esquerda. As frases “o PT vai ter que...” e “Lula precisa” estão na mesma chave do patriarcado escancarado da situação acima. “O PT vai ter que dar garantias de governabilidade”, “Lula precisa sinalizar ao mercado quem será seu ministro da Economia” etc.

Da mesma forma que o marido da professora nunca precisava justificar eventuais atrasos e ausências domésticas, governos capitaneados por homens brancos doutores ricos não precisam se explicar previamente. Lula, o operário, duas vezes presidente da república, nas duas vezes alçado ao cargo com o amparo de nomes chancelados pelo dito mercado, segue precisando e parece que precisará sempre se explicar.

Hábil negociador, forjado na atividade sindical, que historicamente sempre teve como primeira finalidade a melhoria financeira da vida do trabalhador (consumidor?), Lula segue sendo cobrado a se compor com as forças dominantes de sempre. É a mulher-mãe-professora negociando com o chefe da casa seu direito de trabalhar, ainda que para isso precise escamotear certas práticas do dia a dia. Quer trabalhar fora, pois que antes garanta minha refeição quente na hora devida.

 

Foto: Ricardo Stuckert

Lula quer aumentar o salário mínimo acima da inflação? Pois que antes garanta o equilíbrio fiscal. Lula quer incluir povos originários nas tomadas de decisão? Pois que antes garanta condições para o agronegócio continuar recebendo linhas de crédito vantajosas. É claro que, fora do ambiente doméstico interiorano no qual panelas ferviam água para fazer parecer que estava saindo o almoço, o governo de um país precisa de determinadas condições ideais para que certas ações possam ser efetivadas.

O ponto central dessa reflexão é que essa necessidade constante de justificativas raramente é exigida de homens brancos ricos doutores, os preferidos de sempre do mercado e, por extensão, da chamada mídia hegemônica. Para eles, mulheres, pessoas LGBTQIA+, pessoas pretas, operários, pessoas com deficiências não pertencem ao lugar de poder que, séculos após séculos, tem sido ocupado pelos mesmos fidalgos de sempre.

A cada vez que um desses representantes de “minorias” ascender ao poder, a necessidade de explicação vai se instalar com a força de um poder inquisidor. E é importante que os porta-vozes dessa cobrança institucionalizada tenham consciência de que esse discurso brota carregado de ódio de classe, de machismo, de homofobia, de xenofobia. Cobrar de Lula o que não se cobra de um político “do mercado” é reafirmar que lugar de mulher é na cozinha.

Monday, May 30, 2022

 

This is Us – Isto são os Estados Unidos?

 (Este texto contém spoilers da série.)

Comecei a assistir à série This is Us quando ela já era um sucesso e não demorou meio episódio para eu me encantar com ela. A estrutura da narrativa, desconstruída no tempo, trazia uma história banal. Uma família norte-americana encarando alegrias e tragédias em diversos períodos do passado e no presente, avançando no futuro depois de algumas temporadas.

O nome da série imediatamente me remeteu ao filme “Nós”, de 2019, dirigido por Jordan Peele e que, no original, chama-se “Us”. O trocadilho em inglês não funciona em português, mas a relação me pareceu posta: da mesma forma que Peele pretendia fazer uma alegoria do país em seu filme de horror (Us = United States), os criadores de This is Us deviam querer dizer alguma coisa com essa menção tão explícita no nome da série.

This is Us, em português, traduz-se como “isto somos nós”, mas em inglês pode sugerir também “isto são os Estados Unidos”, e desde o começo eu assisti à série procurando pistas dessa suposta alegoria.

 

A família Pearson

O lar da família Pearson é a cidade de Pittsburgh, na Pensilvânia, estado que corresponde a uma das treze colônias que deram origem ao país. Pearson é sobrenome de origem inglesa, anglo-saxônica. Jack Pearson, o patriarca da família, nesse contexto seria também uma alegoria dos primeiros colonizadores.

 

No entanto, a família Pearson como a conhecemos só se forma pela união de Jack com Rebecca Malone. Malone é sobrenome de origem irlandesa, uma das principais correntes imigratórias na formação do povo norte-americano. Dessa forma, a gênese da família Pearson se assemelha muito à origem do povo norte-americano, inicialmente formado por colonizadores ingleses, mas logo miscigenado a imigrantes que chegavam ao país, sobretudo, em busca de trabalho.

Pearson + Malone = ingleses + irlandeses

 KKK

Outro detalhe que me chamou a atenção foi a escolha dos nomes dos trigêmeos, filhos de Jack e Rebecca: Kevin, Katherine (Kate) e Kyle. KKK... Kyle não sobrevive. No hospital, quando convence Rebecca a adotar o bebê negro abandonado na mesma noite em que seus filhos nasceram, Jack entende a coincidência como uma espécie de chamado. Mas a ideia de “reposição” está latente, tanto que o bebê segue sendo chamado de Kyle até que Rebecca, ao conhecer o pai biológico do bebê, decide mudar o nome para Randall.

Kevin, Kate e Randall

Aquela família só não teve uma trinca de filhos KKK porque chegou a ela um novo membro, que pode até ter exercido um papel de substituto no início (como o povo negro escravizado substituiu a mão de obra imigrante em diversos contextos). Mas Randall se impõe naquele lar como indivíduo, com outra história pregressa. Talvez, por essa escolha, a série queira instigar uma reflexão: teriam os Estados Unidos se tornado uma grande Ku Klux Klan se não tivessem que se haver com indivíduos diferentes de seus colonizadores brancos e primeiros imigrantes, também brancos?

Miguel: quem é esse cara?

Na mesma linha da “reposição” de pessoas, um dos personagens mais emblemáticos e, ainda assim, de importância apenas latente até o apagar das luzes da série é Miguel. A série já está avançada em sua narrativa quando descobrimos que Miguel, atual marido de Rebecca, era o melhor amigo de Jack. De origem hispânica, Miguel soa sempre meio escanteado na dinâmica dos Pearson, tem poucas falas, e a criação de antipatia ao personagem parece meticulosamente criada pelos autores.

(Aqui, vou fazer um breve parêntesis para deixar claro que parte dessa antipatia da audiência me parece originada no fato de que, segundo essas pessoas, Miguel teria traído o amigo morto ao se envolver com a viúva, um conceito que, já de princípio, baseia-se no machismo, como se Rebecca não tivesse, ela mesma, desejos e motivações próprias, sendo mero objeto de uma disputa desleal entre um homem morto e seu melhor amigo.)

 

Miguel, que precisou virar Mike

O elo mais forte entre a presença de Miguel na série e a história norte-americana está no personagem como alegoria dos imigrantes de origem hispânica. Reeditando basicamente a mesma saga de todos os imigrantes que buscaram a “América” na esperança de trabalho e dignidade, a família de Miguel chega aos Estados Unidos no século 20, período no qual as diversas linhagens de imigrantes europeus já estão no país há várias gerações e são, portanto, simplesmente americanos. Miguel busca aculturar-se, entra em conflito com a própria família, precisa americanizar o nome para enfim conseguir uma chance de emprego. Miguel não é apenas o homem que veio para tomar o lugar de Jack. É a mão de obra mais barata que, no subconsciente americano, vem para roubar “nossos empregos”.

 O Oeste e o trem

Mais um detalhe que aproxima a família Pearson da história norte-americana: a atração pelo Oeste. Em seu início de relacionamento, Rebecca convence Jack a acompanhá-la em uma viagem a Los Angeles, na busca por uma carreira na música. A tentativa foi frustrada, mas o apelo da Califórnia como terra de oportunidades e de novos começos se consolida na geração seguinte, quando Kevin tenta e consegue se estabelecer como ator em Hollywood. E, da mesma forma que a busca por essa terra prometida tornou-se desilusão para milhares de norte-americanos que trocaram o Leste e o Meio Oeste pela Califórnia, encontrando apenas mais um lugar para trabalhar duro, também a maior parte da família Pearson, em dado momento, abandona Los Angeles e se volta para o local de origem.

Rebecca no trem

 Nessa mesma linha de desbravamento do país, surge nas duas histórias uma figura de importância capital – o trem. Da mesma forma que ele foi fundamental para a consolidação dos Estados Unidos enquanto nação, transportando pessoas, colheitas, ouro e tudo o mais, o trem surge como vínculo fundamental entre Rebecca e sua própria história. Está na lembrança mais doce da infância, em um dos primeiros momentos de consciência da doença que desenvolve, e na sua despedida da vida, no penúltimo capítulo da série, que é, literalmente, conduzido em uma viagem de trem.

 Não consigo respirar

 O grande e mais forte elo entre os Pearson e a história norte-americana parece estar em Randall. Cercado de amor desde o berço, o filho adotivo experimentou diversas vezes o sentimento de não pertencer àquele universo. Na audiência em que se definiria a guarda definitiva do bebê para a família adotiva, um juiz (negro) prefere deixar o processo, para não decidir sobre uma questão que ele achava inadequada. Por ele, Randall deveria ser criado por uma família negra, para ter referenciais negros ao longo da vida.

Mas quantas são as famílias negras com recursos financeiros para adotar crianças? Se a maioria dos muito pobres é formada por negros, não parece lógico que crianças abandonadas terão melhores prognósticos com famílias mais abastadas que, em sua maioria, são formadas por brancos? É essa lógica cruel que parece guiar a juíza que decide pela guarda definitiva de Randall para os Pearson.

 

Randall: uma alma sufocada

Ao longo da infância e da adolescência, Randall enfrenta diversas situações permeadas pelo racismo estrutural e mesmo de ofensas racistas. De fato, ele não tinha, em casa, uma referência para abordar essas situações. Uma cena prosaica, vivida na piscina frequentada pela família, demonstra como uma tarefa cotidiana – cuidar dos cabelos – poderia ter sido facilitada se Randall tivesse essa referência. Randall estudou em uma boa universidade, tornou-se um homem bem-sucedido muito provavelmente porque foi acolhido por uma família de classe média com recursos para prover tudo isso. Mas não deixou de sentir essa falta de pertencimento em tantos momentos da vida, que poderia ter sido muito melhor se as mesmas condições que lhe foram dadas pelos Pearsons estivessem presentes em sua família original. Só que essa família, como tantas outras, precisou se haver com a pobreza, com a migração forçada, com a marginalidade, com o desalento.

Na história pregressa de Randall, seu pai biológico, William, migra de Memphis, no Tennessee, para Pittsburgh, exatamente como fizeram muitas pessoas que foram escravizadas no Sul confederado, buscando ambientes menos hostis nos estados do Norte. Randall só parece encontrar seu eixo, e deixar de sofrer constantes crises de pânico, que o sufocavam, quando reconstrói a ponte com suas origens.

Em certos momentos, a história de This is Us acolhe fatos reais, como a pandemia e o assassinato de George Floyd, em Minneapolis, sufocado pela polícia local. Aqui, as reações de sufocamento de Randall, presentes antes mesmo do fato verídico se impor à ficção, podem parecer uma mórbida coincidência, mas é mais lógico constatar que o personagem sufocado por seus próprios sentimentos, ainda que cercado de amor e segurança, fosse uma metáfora genérica do povo negro, vivenciando o racismo há várias gerações na América.

A cena final: um país que precisa se encarar

 A história fictícia parece fazer uma leitura crítica da própria condição do negro na sociedade norte-americana. Enquanto essa sociedade não enxergar o povo negro como único, dono de uma identidade própria, com necessidades e referências específicas e integrado à história do país, esse grupo de pessoas continuará se sentindo – e sendo – sufocado. Nesse contexto, é absolutamente emblemático que a última cena de This is Us mostre Jack e Randall se olhando, como um convite a essa integração ainda a ser feita entre os povos que habitam aquele país.

Saturday, December 28, 2019

Uma mulher alta: traumas de guerra sob o olhar feminino



Pesado, denso, sufocante e, no entanto, fluido e envolvente. “Uma mulher alta”, dirigido pelo russo Kantemir Balagov, propõe-se a contar uma história de guerra sob a ótica feminina e termina por mostrar que as sequelas podem ser tão profundas na alma dos civis quanto em corpos mutilados e paralisados dos soldados que retornam.

A “grandona” do título é Iya (Viktoria Miroshnichenko), uma enfermeira que trabalha em um hospital de Leningrado repleto de soldados russos recém-egressos da Segunda Guerra. Traumatizada pelo conflito, ela desenvolveu a tendência de eventualmente ficar paralisada, incapaz de se mover enquanto respira com dificuldade. Logo depois de um evento pessoal trágico, ela recebe a amiga Masha (Vasilisa Perelygina), que volta da guerra e passa a morar com ela.

O jovem diretor Balagov, de 28 anos, demonstra notável domínio da linguagem cinematográfica ao expressar o contraste entre as duas por meio dos enquadramentos escolhidos, de seus figurinos, das cores associadas a cada personagem. Esse talento foi reconhecido no último Festival de Cannes, no qual o russo foi premiado como Melhor Diretor da mostra Um Certain Regard. Com quase nenhuma trilha sonora, o filme ainda se mostra ousado ao apostar em diálogos muitas vezes monossilábicos, reforçando o peso do silêncio naquele universo. Também é admirável que Balagov adote um ritmo propositadamente lento nos movimentos de câmera, sendo muito parcimonioso no uso de cortes. O pós-guerra em um país recém-liberado de batalhas é um tempo de angústia, de insegurança e de observação, e suas lentes traduzem exatamente esse ritmo.

Iya (Viktoria Miroshnichenko) e Masha (Vasilisa Perelygina): contrastes

Ainda que ligadas por uma amizade genuína, Iya e Masha são mulheres muito diferentes, a começar pelo contraste de altura, mas sobretudo pela forma como a guerra impactou a vida e o espírito de cada uma delas. Enquanto Masha parece sempre disposta a expor o que o horror do conflito lhe impôs, e buscar soluções imediatas para problemas que ela mesma sabe insolúveis, Iya tenta a todo tempo escamotear seus traumas, medos e grande culpa, sabendo-se igualmente impotente diante das evidências de horror que se espalham por sua vida. Paulatinamente, o filme deixa claro que o livro aberto de Masha no fundo esconde páginas ainda mais sangrentas, e que o esforço de Iya em fazer seus próprios problemas desaparecerem em um cenário tão terrível resultam apenas em mais dor.

Baseado na obra “A guerra não tem rosto de mulher”, da vencedora do Nobel Svetlana Aleksiévitch, “Uma mulher alta” é uma história de guerra contada sob a ótica feminina. Nela, aos homens cabem basicamente dois papéis: o de soldados feridos nas batalhas, ou de produtores de esperma. Em sua obsessão por resolver seu problema insolúvel, Masha será ardilosa a ponto de usar modalidades diferentes de chantagem (real e psicológica), sem conseguir esconder, por baixo de gestos e frases enérgicas, a alma despedaçada que passou a carregar dentro de um corpo igualmente com sequelas. Nesse mundo governado por homens, que resolvem seus conflitos em guerra, usá-los no que lhes é mais simbólico de sua virilidade pode não ser minimante eficaz no seu caso, mas termina por se mostrar altamente catártico.

Wednesday, December 11, 2019

História de um casamento: uma boa novela de Manoel Carlos

Scarlett Johansson (Nicole), Azhy Robertson (Henry) e Adam Driver (Charlie


História de um Casamento": sim, parece novela de Manoel Carlos. Pessoas de elite branca com problemas de elite branca. Sem um grande vilão, os conflitos vêm das situações. Não quer dizer que os problemas não sejam duros, e o diretor é hábil em criar empatia.

O forte do filme são os diálogos mas, no início, é quase tortuoso acompanhar tanta falação, cuja função é clara: situar personagens e seus conflitos. Mas o direitor e roteirista Noah Baumbach é também cuidadoso em pontuar esse falatório com signos visuais fortes.

Portas de armário deixadas abertas, cortes de cabelo, refeições sendo preparadas: o que parece mero cenário, nesse início turbulento, ganha significados diferentes em outros momentos do filme, nos quais os sentimentos dos personagens também são outros. Bela sutileza.

Baumbach também se mostra craque nos enquadramentos que escolhe para situações bem específicas da história. O tom confessional de determinada cena de Scarlett Johansson (Nicole), com a câmera fechada em seu rosto, chega a lembrar a estética de alguns filmes de Godard, como "A Chinesa".

E é admirável como ele desconstrói a ideia de intimidade/verdade do que estava sendo dito ao incluir a fala de uma personagem, até então ausente na cena, e cortar para um enquadramento totalmente diferente, descortinando a farsa montada pela advogada vivida por Laura Dern.

Laura Dern, por sinal uma das atrizes preferidas de David Lynch, é favorita em todas as sondagens para levar o Oscar de Atriz Coadjuvante. Na cerimônia, devem exibir um monólogo em que ela compara as mães à figura da Virgem Maria. Mas Laura faz muito mais que isso no filme.


Laura Dern, a advogada Nora


Sua altivez (realçada pelo figurino, com roupas sempre justas e saltos altíssimos, e pelo enquadramento - de novo! - que a coloca sempre como uma espécie de gigante) encurralam o quase ex-marido da história, Adam Driver, e seu(s) advogado(s).

Uma cena, em particular, materializa esse ato de encurralar a dupla masculina. Alan Alda, o advogado "bonzinho", e Driver estão conversando em uma pequena sala do escritório da advogada. O enquadramento escolhido por Baumbach quase dispensa palavras: estão em um beco sem saída.

Se Dern entrega uma personagem invariavelmente altiva, Driver percorre um caminho muito mais dúbio com seu Charlie. Intelectual, gênio criativo, pai exemplar, ele aos poucos deixa escapar sua natureza mesquinha, egoísta e, por que não dizer, machista. E o faz de forma impecável.

A grande cena de confronto entre Driver e Johansson vem ancorada em um diálogo que começa sob o signo da boa intenção e civilidade, atinge seu ápice com violência verbal e sentimentos terríveis, e termina com uma imagem que, afinal, sinaliza por onde passará a solução do conflito.

Por melhor que fosse o diálogo e o movimento de câmeras que o diretor/roteirista tivesse criado para esse ápice, só dois atores gigantes alcançariam o que Driver e Johansson atingiram ali. (Mas dois atores gigantes também não alcançariam isso se... vocês entenderam).

Meu único senão para o filme fica para a penúltima sequência, que acontece no quarto, com Charlie e o filho do casal. Ainda que seja uma solução de roteiro justificável, amarrando o fim com o começo, a mim soou apelativa, "para fazer chorar". No mais, gostei muito.

Thursday, December 05, 2019

Charles Chaplin, Buster Keaton, Noel Rosa e a atualidade do cinema mudo

Charles Chaplin, em cena de "O garoto"
Noel Rosa ficou incomodado com a influência de idiomas estrangeiros na linguagem popular e compôs “Não tem tradução”. O primeiro verso já aponta o réu, dizendo que “o cinema falado é o grande culpado da transformação”. Se estivesse vivo, Noel talvez se sentisse recompensado pela prevalência da imagem sobre o som no século 21.

Não só no cinema, claro. Grandes realizadores do início do século 20, como Charlie Chaplin e Buster Keaton, provavelmente estariam fazendo filmes sonoros nos dias de hoje, mas é instigante notar como o desafio de transmitir ideias só com imagens parece dominar o mundo contemporâneo.

Você liga seu computador e clica em cima de um programa ou de um aplicativo simplesmente ao reconhecer seu ícone na área de trabalho, sem precisar ler uma palavra sequer. O mesmo para seu celular (um computador também, afinal). Se quiser “dizer” que está tudo bem para alguém, é só entrar no aplicativo de mensagens, reconhecido pelo desenho de um telefone dentro de um balão, e enviar a imagem de um polegar erguido, e ainda que isso se chame emoticon, é de uma imagem que se trata.


Buster Keaton

Você não precisa mais ligar para ninguém e dizer, com voz chorosa, que está arrependido de ter feito alguma coisa e quer pedir desculpas. Taca a imagem do Gato de Botas, aquele do Shrek, olhando para cima com uns olhos marejados, segurando o chapéu como em ato de contrição. Não chama emoticon, chama GIF, mas é tudo apenas imagem.


"Desculpe..."

Nada precisa ser dito, e tem sido cada vez mais recorrente a queixa em relação a “áudios longos”. Ninguém quer ficar ouvindo uma ladainha de 1 minuto e meio. Manda uma imagem, um GIF. Se não ficar claro, acompanhe as imagens de um texto curto, uma ou duas linhas.

A comunicação interpessoal desembarcou na segunda década do século 21 como uma recriação do cinema mudo. Ou isso tudo não se resume a “imagens intercaladas com sucintas cartelas de texto”?.

Mas, pensando bem, Noel não se sentiria feliz. WhatsApp, emoticon, GIF (que significa Graphics Interchange Format, sabia?): tudo vem em Inglês e, para a maioria dos usuários, simplesmente não tem tradução.