Thursday, January 26, 2023

É tudo culpa dela?



Quando uma mulher dá à luz, junto com a criança nasce uma entidade que vai acompanhar essa mãe por toda a vida – a culpa. Talvez exista algum mecanismo mental que faça com que a mãe se sinta culpada por não poder manter aquela criatura, que ela mesma produziu, para sempre na segurança do útero. Choros, cólicas, engasgos, tombos, notas baixas na escola, o vestibular, desilusões amorosas, multas de trânsito, demissões, dívidas, divórcio, tudo o que vier pela frente, na vida daquela criança já transformada em adulto, soará sempre para a mãe como uma falha dela mesma, como se ela pudesse ter evitado tudo isso, se tivesse prendido aquela criança em suas entranhas. Aquele pequeno e indefeso ser, no fundo, é um manancial de preocupação eterna, um pesadelo, um monstro.

Não é à toa que a personagem principal de “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” tenha de enfrentar, em uma série de universos paralelos, uma entidade maligna que tem as feições de sua própria filha. Evelyn, a heroína da história, tem claras diferenças com a filha Joy, que se transforma na vilã Jobu Tupaki na realidade paralela. E é significativo que quem apresente essa vilã para Evelyn seja seu marido, Waymond, um sujeito metido a engraçadão que quer se divorciar da esposa porque, aparentemente, ela não o trata com muita gentileza.

Essa relação parece significativa porque, tão frequente quanto a mãe soterrada em culpa após o nascimento de filhas e filhos é a figura do pai carente, que se ressente da falta da esposa pré-parida, que antes só tinha olhares para ele. Erasmo Carlos até fez uma canção sobre isso (“Quando chego em casa, à noitinha, quero uma mulher só minha/ Mas pra quem deu luz não tem mais jeito, porque um filho quer seu peito”).

Mas Evelyn não é apenas uma mãe mergulhada em culpa e ressentimento com a filha que parece frustrar todos os seus planos. Ela é um burro de carga na empresa que administra com o marido e na qual estão encrencados com uma questão fiscal. Ela atende os clientes desse estabelecimento, uma lavanderia que parece ter tido dias melhores, faz a contabilidade do negócio (e naturalmente se complica com isso) e ainda tem de se haver com o pai idoso, um sujeito aparentemente conservador e invasivo. Aparentemente porque, de certa forma, o filme dá a entender que essa prevalência mental do pai sobre Evelyn pode ser uma dramatização excessiva que ela mesma faz do velho. Ou seja, culpa dela.

“Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” é bom entretenimento, e cheio de bons momentos, enquanto não tenta amarrar aquele grande delírio mental como produto da instabilidade de uma mulher. Talvez seja fácil para o marido bobalhão pedir a ela que “seja gentil” e resumir as razões do casamento desgastado à brutalidade dela. Talvez seja impossível para ele entender toda a carga de culpa que o modelo de vida contemporâneo despeje sobre uma mulher.

Sunday, November 06, 2022

A panela no fogo, Lula e a eterna cobrança

 


A história era contada com tons de anedota: década de 1960, mulher do interior, mãe de dois filhos e professora. Sempre que o marido chegava para almoçar e ela estava atrasada no preparo da refeição, colocava diversas panelas no fogo, tampadas e só com água, para dar a impressão de que a comida estava em vias de ficar pronta. “Assim, ele olhava de longe e não reclamava que eu ainda estava começando a fazer o almoço”, e não apenas os interlocutores riam como a dita senhora reforçava a cena como conselho para as moças mais jovens.

Adolescente, eu ouvia aquilo com um misto de incredulidade e tristeza. Aquela mulher, que fazia jornada tripla, precisava lançar mão de um simulacro bizarro para justificar seu atraso, como se ela estivesse em falta com a família, mesmo que o suposto atraso tivesse sido causado pelo trabalho na escola. Afinal, deixar que ela trabalhasse fora era uma enorme concessão do chefe da casa, já que suas funções prioritárias eram, de fato, cuidar da casa, dos filhos e, claro, do marido. Como se, de fato, aquele lugar fora de casa não fosse o seu lugar.

Sempre me lembro dessa história quando leio, ouço e assisto a notícias e análises políticas relativas ao início de um governo de esquerda. As frases “o PT vai ter que...” e “Lula precisa” estão na mesma chave do patriarcado escancarado da situação acima. “O PT vai ter que dar garantias de governabilidade”, “Lula precisa sinalizar ao mercado quem será seu ministro da Economia” etc.

Da mesma forma que o marido da professora nunca precisava justificar eventuais atrasos e ausências domésticas, governos capitaneados por homens brancos doutores ricos não precisam se explicar previamente. Lula, o operário, duas vezes presidente da república, nas duas vezes alçado ao cargo com o amparo de nomes chancelados pelo dito mercado, segue precisando e parece que precisará sempre se explicar.

Hábil negociador, forjado na atividade sindical, que historicamente sempre teve como primeira finalidade a melhoria financeira da vida do trabalhador (consumidor?), Lula segue sendo cobrado a se compor com as forças dominantes de sempre. É a mulher-mãe-professora negociando com o chefe da casa seu direito de trabalhar, ainda que para isso precise escamotear certas práticas do dia a dia. Quer trabalhar fora, pois que antes garanta minha refeição quente na hora devida.

 

Foto: Ricardo Stuckert

Lula quer aumentar o salário mínimo acima da inflação? Pois que antes garanta o equilíbrio fiscal. Lula quer incluir povos originários nas tomadas de decisão? Pois que antes garanta condições para o agronegócio continuar recebendo linhas de crédito vantajosas. É claro que, fora do ambiente doméstico interiorano no qual panelas ferviam água para fazer parecer que estava saindo o almoço, o governo de um país precisa de determinadas condições ideais para que certas ações possam ser efetivadas.

O ponto central dessa reflexão é que essa necessidade constante de justificativas raramente é exigida de homens brancos ricos doutores, os preferidos de sempre do mercado e, por extensão, da chamada mídia hegemônica. Para eles, mulheres, pessoas LGBTQIA+, pessoas pretas, operários, pessoas com deficiências não pertencem ao lugar de poder que, séculos após séculos, tem sido ocupado pelos mesmos fidalgos de sempre.

A cada vez que um desses representantes de “minorias” ascender ao poder, a necessidade de explicação vai se instalar com a força de um poder inquisidor. E é importante que os porta-vozes dessa cobrança institucionalizada tenham consciência de que esse discurso brota carregado de ódio de classe, de machismo, de homofobia, de xenofobia. Cobrar de Lula o que não se cobra de um político “do mercado” é reafirmar que lugar de mulher é na cozinha.

Monday, May 30, 2022

 

This is Us – Isto são os Estados Unidos?

 (Este texto contém spoilers da série.)

Comecei a assistir à série This is Us quando ela já era um sucesso e não demorou meio episódio para eu me encantar com ela. A estrutura da narrativa, desconstruída no tempo, trazia uma história banal. Uma família norte-americana encarando alegrias e tragédias em diversos períodos do passado e no presente, avançando no futuro depois de algumas temporadas.

O nome da série imediatamente me remeteu ao filme “Nós”, de 2019, dirigido por Jordan Peele e que, no original, chama-se “Us”. O trocadilho em inglês não funciona em português, mas a relação me pareceu posta: da mesma forma que Peele pretendia fazer uma alegoria do país em seu filme de horror (Us = United States), os criadores de This is Us deviam querer dizer alguma coisa com essa menção tão explícita no nome da série.

This is Us, em português, traduz-se como “isto somos nós”, mas em inglês pode sugerir também “isto são os Estados Unidos”, e desde o começo eu assisti à série procurando pistas dessa suposta alegoria.

 

A família Pearson

O lar da família Pearson é a cidade de Pittsburgh, na Pensilvânia, estado que corresponde a uma das treze colônias que deram origem ao país. Pearson é sobrenome de origem inglesa, anglo-saxônica. Jack Pearson, o patriarca da família, nesse contexto seria também uma alegoria dos primeiros colonizadores.

 

No entanto, a família Pearson como a conhecemos só se forma pela união de Jack com Rebecca Malone. Malone é sobrenome de origem irlandesa, uma das principais correntes imigratórias na formação do povo norte-americano. Dessa forma, a gênese da família Pearson se assemelha muito à origem do povo norte-americano, inicialmente formado por colonizadores ingleses, mas logo miscigenado a imigrantes que chegavam ao país, sobretudo, em busca de trabalho.

Pearson + Malone = ingleses + irlandeses

 KKK

Outro detalhe que me chamou a atenção foi a escolha dos nomes dos trigêmeos, filhos de Jack e Rebecca: Kevin, Katherine (Kate) e Kyle. KKK... Kyle não sobrevive. No hospital, quando convence Rebecca a adotar o bebê negro abandonado na mesma noite em que seus filhos nasceram, Jack entende a coincidência como uma espécie de chamado. Mas a ideia de “reposição” está latente, tanto que o bebê segue sendo chamado de Kyle até que Rebecca, ao conhecer o pai biológico do bebê, decide mudar o nome para Randall.

Kevin, Kate e Randall

Aquela família só não teve uma trinca de filhos KKK porque chegou a ela um novo membro, que pode até ter exercido um papel de substituto no início (como o povo negro escravizado substituiu a mão de obra imigrante em diversos contextos). Mas Randall se impõe naquele lar como indivíduo, com outra história pregressa. Talvez, por essa escolha, a série queira instigar uma reflexão: teriam os Estados Unidos se tornado uma grande Ku Klux Klan se não tivessem que se haver com indivíduos diferentes de seus colonizadores brancos e primeiros imigrantes, também brancos?

Miguel: quem é esse cara?

Na mesma linha da “reposição” de pessoas, um dos personagens mais emblemáticos e, ainda assim, de importância apenas latente até o apagar das luzes da série é Miguel. A série já está avançada em sua narrativa quando descobrimos que Miguel, atual marido de Rebecca, era o melhor amigo de Jack. De origem hispânica, Miguel soa sempre meio escanteado na dinâmica dos Pearson, tem poucas falas, e a criação de antipatia ao personagem parece meticulosamente criada pelos autores.

(Aqui, vou fazer um breve parêntesis para deixar claro que parte dessa antipatia da audiência me parece originada no fato de que, segundo essas pessoas, Miguel teria traído o amigo morto ao se envolver com a viúva, um conceito que, já de princípio, baseia-se no machismo, como se Rebecca não tivesse, ela mesma, desejos e motivações próprias, sendo mero objeto de uma disputa desleal entre um homem morto e seu melhor amigo.)

 

Miguel, que precisou virar Mike

O elo mais forte entre a presença de Miguel na série e a história norte-americana está no personagem como alegoria dos imigrantes de origem hispânica. Reeditando basicamente a mesma saga de todos os imigrantes que buscaram a “América” na esperança de trabalho e dignidade, a família de Miguel chega aos Estados Unidos no século 20, período no qual as diversas linhagens de imigrantes europeus já estão no país há várias gerações e são, portanto, simplesmente americanos. Miguel busca aculturar-se, entra em conflito com a própria família, precisa americanizar o nome para enfim conseguir uma chance de emprego. Miguel não é apenas o homem que veio para tomar o lugar de Jack. É a mão de obra mais barata que, no subconsciente americano, vem para roubar “nossos empregos”.

 O Oeste e o trem

Mais um detalhe que aproxima a família Pearson da história norte-americana: a atração pelo Oeste. Em seu início de relacionamento, Rebecca convence Jack a acompanhá-la em uma viagem a Los Angeles, na busca por uma carreira na música. A tentativa foi frustrada, mas o apelo da Califórnia como terra de oportunidades e de novos começos se consolida na geração seguinte, quando Kevin tenta e consegue se estabelecer como ator em Hollywood. E, da mesma forma que a busca por essa terra prometida tornou-se desilusão para milhares de norte-americanos que trocaram o Leste e o Meio Oeste pela Califórnia, encontrando apenas mais um lugar para trabalhar duro, também a maior parte da família Pearson, em dado momento, abandona Los Angeles e se volta para o local de origem.

Rebecca no trem

 Nessa mesma linha de desbravamento do país, surge nas duas histórias uma figura de importância capital – o trem. Da mesma forma que ele foi fundamental para a consolidação dos Estados Unidos enquanto nação, transportando pessoas, colheitas, ouro e tudo o mais, o trem surge como vínculo fundamental entre Rebecca e sua própria história. Está na lembrança mais doce da infância, em um dos primeiros momentos de consciência da doença que desenvolve, e na sua despedida da vida, no penúltimo capítulo da série, que é, literalmente, conduzido em uma viagem de trem.

 Não consigo respirar

 O grande e mais forte elo entre os Pearson e a história norte-americana parece estar em Randall. Cercado de amor desde o berço, o filho adotivo experimentou diversas vezes o sentimento de não pertencer àquele universo. Na audiência em que se definiria a guarda definitiva do bebê para a família adotiva, um juiz (negro) prefere deixar o processo, para não decidir sobre uma questão que ele achava inadequada. Por ele, Randall deveria ser criado por uma família negra, para ter referenciais negros ao longo da vida.

Mas quantas são as famílias negras com recursos financeiros para adotar crianças? Se a maioria dos muito pobres é formada por negros, não parece lógico que crianças abandonadas terão melhores prognósticos com famílias mais abastadas que, em sua maioria, são formadas por brancos? É essa lógica cruel que parece guiar a juíza que decide pela guarda definitiva de Randall para os Pearson.

 

Randall: uma alma sufocada

Ao longo da infância e da adolescência, Randall enfrenta diversas situações permeadas pelo racismo estrutural e mesmo de ofensas racistas. De fato, ele não tinha, em casa, uma referência para abordar essas situações. Uma cena prosaica, vivida na piscina frequentada pela família, demonstra como uma tarefa cotidiana – cuidar dos cabelos – poderia ter sido facilitada se Randall tivesse essa referência. Randall estudou em uma boa universidade, tornou-se um homem bem-sucedido muito provavelmente porque foi acolhido por uma família de classe média com recursos para prover tudo isso. Mas não deixou de sentir essa falta de pertencimento em tantos momentos da vida, que poderia ter sido muito melhor se as mesmas condições que lhe foram dadas pelos Pearsons estivessem presentes em sua família original. Só que essa família, como tantas outras, precisou se haver com a pobreza, com a migração forçada, com a marginalidade, com o desalento.

Na história pregressa de Randall, seu pai biológico, William, migra de Memphis, no Tennessee, para Pittsburgh, exatamente como fizeram muitas pessoas que foram escravizadas no Sul confederado, buscando ambientes menos hostis nos estados do Norte. Randall só parece encontrar seu eixo, e deixar de sofrer constantes crises de pânico, que o sufocavam, quando reconstrói a ponte com suas origens.

Em certos momentos, a história de This is Us acolhe fatos reais, como a pandemia e o assassinato de George Floyd, em Minneapolis, sufocado pela polícia local. Aqui, as reações de sufocamento de Randall, presentes antes mesmo do fato verídico se impor à ficção, podem parecer uma mórbida coincidência, mas é mais lógico constatar que o personagem sufocado por seus próprios sentimentos, ainda que cercado de amor e segurança, fosse uma metáfora genérica do povo negro, vivenciando o racismo há várias gerações na América.

A cena final: um país que precisa se encarar

 A história fictícia parece fazer uma leitura crítica da própria condição do negro na sociedade norte-americana. Enquanto essa sociedade não enxergar o povo negro como único, dono de uma identidade própria, com necessidades e referências específicas e integrado à história do país, esse grupo de pessoas continuará se sentindo – e sendo – sufocado. Nesse contexto, é absolutamente emblemático que a última cena de This is Us mostre Jack e Randall se olhando, como um convite a essa integração ainda a ser feita entre os povos que habitam aquele país.

Saturday, December 28, 2019

Uma mulher alta: traumas de guerra sob o olhar feminino



Pesado, denso, sufocante e, no entanto, fluido e envolvente. “Uma mulher alta”, dirigido pelo russo Kantemir Balagov, propõe-se a contar uma história de guerra sob a ótica feminina e termina por mostrar que as sequelas podem ser tão profundas na alma dos civis quanto em corpos mutilados e paralisados dos soldados que retornam.

A “grandona” do título é Iya (Viktoria Miroshnichenko), uma enfermeira que trabalha em um hospital de Leningrado repleto de soldados russos recém-egressos da Segunda Guerra. Traumatizada pelo conflito, ela desenvolveu a tendência de eventualmente ficar paralisada, incapaz de se mover enquanto respira com dificuldade. Logo depois de um evento pessoal trágico, ela recebe a amiga Masha (Vasilisa Perelygina), que volta da guerra e passa a morar com ela.

O jovem diretor Balagov, de 28 anos, demonstra notável domínio da linguagem cinematográfica ao expressar o contraste entre as duas por meio dos enquadramentos escolhidos, de seus figurinos, das cores associadas a cada personagem. Esse talento foi reconhecido no último Festival de Cannes, no qual o russo foi premiado como Melhor Diretor da mostra Um Certain Regard. Com quase nenhuma trilha sonora, o filme ainda se mostra ousado ao apostar em diálogos muitas vezes monossilábicos, reforçando o peso do silêncio naquele universo. Também é admirável que Balagov adote um ritmo propositadamente lento nos movimentos de câmera, sendo muito parcimonioso no uso de cortes. O pós-guerra em um país recém-liberado de batalhas é um tempo de angústia, de insegurança e de observação, e suas lentes traduzem exatamente esse ritmo.

Iya (Viktoria Miroshnichenko) e Masha (Vasilisa Perelygina): contrastes

Ainda que ligadas por uma amizade genuína, Iya e Masha são mulheres muito diferentes, a começar pelo contraste de altura, mas sobretudo pela forma como a guerra impactou a vida e o espírito de cada uma delas. Enquanto Masha parece sempre disposta a expor o que o horror do conflito lhe impôs, e buscar soluções imediatas para problemas que ela mesma sabe insolúveis, Iya tenta a todo tempo escamotear seus traumas, medos e grande culpa, sabendo-se igualmente impotente diante das evidências de horror que se espalham por sua vida. Paulatinamente, o filme deixa claro que o livro aberto de Masha no fundo esconde páginas ainda mais sangrentas, e que o esforço de Iya em fazer seus próprios problemas desaparecerem em um cenário tão terrível resultam apenas em mais dor.

Baseado na obra “A guerra não tem rosto de mulher”, da vencedora do Nobel Svetlana Aleksiévitch, “Uma mulher alta” é uma história de guerra contada sob a ótica feminina. Nela, aos homens cabem basicamente dois papéis: o de soldados feridos nas batalhas, ou de produtores de esperma. Em sua obsessão por resolver seu problema insolúvel, Masha será ardilosa a ponto de usar modalidades diferentes de chantagem (real e psicológica), sem conseguir esconder, por baixo de gestos e frases enérgicas, a alma despedaçada que passou a carregar dentro de um corpo igualmente com sequelas. Nesse mundo governado por homens, que resolvem seus conflitos em guerra, usá-los no que lhes é mais simbólico de sua virilidade pode não ser minimante eficaz no seu caso, mas termina por se mostrar altamente catártico.

Wednesday, December 11, 2019

História de um casamento: uma boa novela de Manoel Carlos

Scarlett Johansson (Nicole), Azhy Robertson (Henry) e Adam Driver (Charlie


História de um Casamento": sim, parece novela de Manoel Carlos. Pessoas de elite branca com problemas de elite branca. Sem um grande vilão, os conflitos vêm das situações. Não quer dizer que os problemas não sejam duros, e o diretor é hábil em criar empatia.

O forte do filme são os diálogos mas, no início, é quase tortuoso acompanhar tanta falação, cuja função é clara: situar personagens e seus conflitos. Mas o direitor e roteirista Noah Baumbach é também cuidadoso em pontuar esse falatório com signos visuais fortes.

Portas de armário deixadas abertas, cortes de cabelo, refeições sendo preparadas: o que parece mero cenário, nesse início turbulento, ganha significados diferentes em outros momentos do filme, nos quais os sentimentos dos personagens também são outros. Bela sutileza.

Baumbach também se mostra craque nos enquadramentos que escolhe para situações bem específicas da história. O tom confessional de determinada cena de Scarlett Johansson (Nicole), com a câmera fechada em seu rosto, chega a lembrar a estética de alguns filmes de Godard, como "A Chinesa".

E é admirável como ele desconstrói a ideia de intimidade/verdade do que estava sendo dito ao incluir a fala de uma personagem, até então ausente na cena, e cortar para um enquadramento totalmente diferente, descortinando a farsa montada pela advogada vivida por Laura Dern.

Laura Dern, por sinal uma das atrizes preferidas de David Lynch, é favorita em todas as sondagens para levar o Oscar de Atriz Coadjuvante. Na cerimônia, devem exibir um monólogo em que ela compara as mães à figura da Virgem Maria. Mas Laura faz muito mais que isso no filme.


Laura Dern, a advogada Nora


Sua altivez (realçada pelo figurino, com roupas sempre justas e saltos altíssimos, e pelo enquadramento - de novo! - que a coloca sempre como uma espécie de gigante) encurralam o quase ex-marido da história, Adam Driver, e seu(s) advogado(s).

Uma cena, em particular, materializa esse ato de encurralar a dupla masculina. Alan Alda, o advogado "bonzinho", e Driver estão conversando em uma pequena sala do escritório da advogada. O enquadramento escolhido por Baumbach quase dispensa palavras: estão em um beco sem saída.

Se Dern entrega uma personagem invariavelmente altiva, Driver percorre um caminho muito mais dúbio com seu Charlie. Intelectual, gênio criativo, pai exemplar, ele aos poucos deixa escapar sua natureza mesquinha, egoísta e, por que não dizer, machista. E o faz de forma impecável.

A grande cena de confronto entre Driver e Johansson vem ancorada em um diálogo que começa sob o signo da boa intenção e civilidade, atinge seu ápice com violência verbal e sentimentos terríveis, e termina com uma imagem que, afinal, sinaliza por onde passará a solução do conflito.

Por melhor que fosse o diálogo e o movimento de câmeras que o diretor/roteirista tivesse criado para esse ápice, só dois atores gigantes alcançariam o que Driver e Johansson atingiram ali. (Mas dois atores gigantes também não alcançariam isso se... vocês entenderam).

Meu único senão para o filme fica para a penúltima sequência, que acontece no quarto, com Charlie e o filho do casal. Ainda que seja uma solução de roteiro justificável, amarrando o fim com o começo, a mim soou apelativa, "para fazer chorar". No mais, gostei muito.

Thursday, December 05, 2019

Charles Chaplin, Buster Keaton, Noel Rosa e a atualidade do cinema mudo

Charles Chaplin, em cena de "O garoto"
Noel Rosa ficou incomodado com a influência de idiomas estrangeiros na linguagem popular e compôs “Não tem tradução”. O primeiro verso já aponta o réu, dizendo que “o cinema falado é o grande culpado da transformação”. Se estivesse vivo, Noel talvez se sentisse recompensado pela prevalência da imagem sobre o som no século 21.

Não só no cinema, claro. Grandes realizadores do início do século 20, como Charlie Chaplin e Buster Keaton, provavelmente estariam fazendo filmes sonoros nos dias de hoje, mas é instigante notar como o desafio de transmitir ideias só com imagens parece dominar o mundo contemporâneo.

Você liga seu computador e clica em cima de um programa ou de um aplicativo simplesmente ao reconhecer seu ícone na área de trabalho, sem precisar ler uma palavra sequer. O mesmo para seu celular (um computador também, afinal). Se quiser “dizer” que está tudo bem para alguém, é só entrar no aplicativo de mensagens, reconhecido pelo desenho de um telefone dentro de um balão, e enviar a imagem de um polegar erguido, e ainda que isso se chame emoticon, é de uma imagem que se trata.


Buster Keaton

Você não precisa mais ligar para ninguém e dizer, com voz chorosa, que está arrependido de ter feito alguma coisa e quer pedir desculpas. Taca a imagem do Gato de Botas, aquele do Shrek, olhando para cima com uns olhos marejados, segurando o chapéu como em ato de contrição. Não chama emoticon, chama GIF, mas é tudo apenas imagem.


"Desculpe..."

Nada precisa ser dito, e tem sido cada vez mais recorrente a queixa em relação a “áudios longos”. Ninguém quer ficar ouvindo uma ladainha de 1 minuto e meio. Manda uma imagem, um GIF. Se não ficar claro, acompanhe as imagens de um texto curto, uma ou duas linhas.

A comunicação interpessoal desembarcou na segunda década do século 21 como uma recriação do cinema mudo. Ou isso tudo não se resume a “imagens intercaladas com sucintas cartelas de texto”?.

Mas, pensando bem, Noel não se sentiria feliz. WhatsApp, emoticon, GIF (que significa Graphics Interchange Format, sabia?): tudo vem em Inglês e, para a maioria dos usuários, simplesmente não tem tradução.




Monday, November 25, 2019

Ford vs. Ferrari: um filmão, em sentido amplo

Damon (Shelby) e Bale (Miles): heróis na pista contra os monstros da burocracia


Se ocorresse uma catástrofe e a Ford fosse soterrada, daqui alguns anos os escavadores chegariam às ruínas e teriam a certeza de que se tratava de uma fábrica de papel com uma imensa frota de veículos. A piada interna, repetida por várias gerações de funcionários da multinacional norte-americana, faz eco com uma das cenas da primeira parte do longa “Ford vs. Ferrari”, dirigido por James Mangold, na qual o personagem principal, vivido por Matt Damon, critica a burocracia da companhia.

Baseado na história por trás da criação de um dos carros de corrida mais famosos de todos os tempos, o Ford GT40, o filme é centrado na figura de Carroll Shelby (Damon), um ex-piloto que se notabilizou por vencer as 24 Horas de Le Mans, em 1959, e precisou abandonar as pistas por conta de um problema cardíaco. O filme mostra Shelby mantendo-se no universo automotivo, negociando carros e projetando novos modelos, até ser procurado por um executivo da Ford (Lee Iacocca, vivido por John Bernthal), para liderar a criação de um carro e de uma equipe que fossem capazes de vencer a então imbatível Ferrari em Le Mans. Shelby aceita a tarefa e insere o velho amigo Ken Miles (Christian Bale) no projeto.

Um dos desafios de transformar uma história real em filme convencional é a fidelidade aos fatos. Quem conhece a longa história de Shelby (a despeito do problema cardíaco, ele viveu até os 89 anos, morrendo em 2012), certamente vai encontrar incorreções no roteiro. O mesmo vale para Miles e, mais ainda, para a própria Ford Motor Company. Uma reunião na sede, retratada no início da trama (e mostrando o interior da companhia, com suas características paredes de madeira) dá a entender que os anos 1960 seriam a estreia da empresa no automobilismo de competição, o que não é verdade. Mas, como a música dos Paralamas do Sucesso já ensinou, “a vida não é filme”. E “Ford vs. Ferrari” é um filmão.

Literalmente, inclusive. Filmado em formato scope, preenche a tela com ação e velocidade, entregando seu cartão de visita enchendo os olhos dos fanáticos por gasolina com cenas de Shelby ao volante de um Aston Martin, na sua vitória em Le Mans. Introduzindo a fase pós-aposentadoria de Shelby e a intenção da Ford em investir no automobilismo, o filme mergulha em uma longa sequência de cenas que pouco tem a ver com o universo acelerado de seu início. Acentuando a burocracia da montadora, os interesses comerciais de seus executivos e os processos pouco éticos desse ambiente, “Ford vs. Ferrari” gasta pelo menos uma hora de seu tempo com poucas cenas de corrida.

Bale (Miles) e Jupe (Peter): relação pai e filho


Mas o que pode soar como defeito para amantes da velocidade é o tempo ideal para o projeto dirigido por Mangold continuar sendo um filmão. É nesse intervalo entre a Le Mans de Shelby, em 1959, e o desafio da trinca Shelby-Miles-Ford, no final dos anos 1960, que a história se aprofunda nas personalidades dos personagens. É aí que o filme laça de vez o espectador para o lado da dupla Damon-Bale. O Miles de Bale, por sinal, exagera em um sotaque indefinido entre o inglês e o matuto ianque (Miles, de fato, era inglês), mas transparece autenticidade ao mesclar certa brutalidade nas falas e nos gestos com uma quase doçura no trato com a esposa Mollie (Caitriona Balfe) e o filho Peter (Noah Jupe). O jovem Jupe, que já esteve em “Um lugar silencioso”, “Extraordinário” e “Suburbicon: Bem-vindos ao Paraíso”, parece crescer junto com seu personagem no filme, dividindo com Damon uma das cenas de maior força dramática, no final da história.

É também no espaço “sem corridas” que o roteiro introduz a Ferrari. A representação da marca italiana, de seu fundador Enzo e de todo o universo que cerca a mítica fábrica de Maranello passa longe de um eventual maniqueísmo Estados Unidos x Resto do Mundo. Pelo contrário: por sua essência, orgulho e amor ao esporte, Enzo Ferrari e sua trupe parecem bem mais próximos de Shelby e companhia do que o patético Henry Ford II (Tracy Letts), que afinal "não é Henry Ford", e que o amoral Leo Beebe (Josh Lucas), eleito como o grande antagonista do filme.

Remo Girone (à direita), como Enzo Ferrari: mais próximo de Shelby e Miles que Henry Ford II


Mas é na última parte do filme, quando os motores roncam, que “Ford vs. Ferrari” se torna o grande show desejado por todo fã de corrida. A largada “estilo Le Mans”, com os pilotos correndo a pé até seus carros, a sensação de velocidade, com muitas tomadas na altura do asfalto, a reprodução da disputa Ford x Ferrari na pista, a recriação dos boxes e camarotes, a montagem precisa, a trilha sonora em crescendo, a sequência de cenas diurnas, noturnas e a volta para a luz do dia colocam o espectador dentro do universo da mais famosa corrida de longa duração da história de uma forma que só o longa “Le Mans”, protagonizado por Steve McQueen em 1971, havia conseguido fazer. Mas, convenhamos, com personagens e com uma história muito mais envolventes.

Ao final de 2h32 de projeção, a conclusão de “Ford vs. Ferrari” surge quase como lamento. Esse filmão no formato, na criação dos personagens, na condução da história mostra-se também um filme grande em sua duração, mas não arrastado. Carregado nas tintas em alguns estereótipos e situações, o filme de Mangold, no entanto, é cirúrgico em mostrar que grandes corporações entram em competições esportivas por um único propósito: aumentar suas vendas. Permanecem no negócio enquanto ele se mostrar eficiente para esse fim. Recolher as ferramentas e fechar a garagem são consequências que se relacionam muito mais aos cifrões perdidos que a corridas disputadas. Shelby, Miles e o GT40 ficaram na história da Ford e do automobilismo mundial. A Ford, bem, a Ford continua sendo uma montadora de veículos, mas a julgar pela transformação pela qual esse mercado atravessa, talvez no futuro ela esteja fabricando outros produtos. Tomara que não seja papel.