“Eu não nasci no samba, mas o samba nasceu em mim...”. O
primeiro verso da canção “É corpo, é alma, é religião”, de Arlindo Cruz, Rogê e
Arlindo Neto, define a minha relação com o ritmo que é um dos mais fortes
símbolos brasileiros. Sou uma branquela de classe média, nascida e criada na
Zona Norte de São Paulo. Tinha, na infância, uma remota ligação com o Carnaval
pela frequência às matinês do Acre Clube, também na região. Eu adorava aquela
bagunça, muito mais para juntar confetes e jogar para cima do que propriamente
pela música.
Mas o jogo começou a virar a favor do samba quando descobri
os desfiles das escolas. Desde muito pequena, eu adorava assistir àquela
maratona pela TV e suportava com valentia as piadas recorrentes sobre “ver a
Mangueira entrar” na casa da família, em Mairiporã, onde passávamos o feriado.
E, desde cedo, fui capturada por duas escolas de samba, uma em São Paulo e
outra no Rio. A carioca era justamente a Mangueira. A de São Paulo, “meu
Vai-Vai no Bixiga”, como diz a música que abre este post, gravada pela cantoraMaria Rita.
No ano passado, vivi uma das maiores emoções da vida ao
assistir ao desfile do Vai-Vai, que homenageou Elis Regina e conquistou o
campeonato. Contei a história neste post.
No texto, eu comentava que tinha enorme vontade de desfilar,
mas que havia me retraído porque não conhecia ninguém da escola e não queria
simplesmente chegar, comprar uma fantasia e me convidar para a festa. Isso me
parecia invasivo com uma comunidade de 86 anos que é uma das maiores
referências do samba de São Paulo. Frescura minha? Talvez, mas eu respeito instituições.
Poucas semanas após o Carnaval de 2015, começou a frequentar
minha academia um rapaz muito simpático que ia todos os dias treinar com uma
camiseta do Vai-Vai. Depois de alguns dias daquele desfile de estampas,
perguntei diretamente: “você é da escola?”
E assim conheci Leandrinho Amêndola, um dos responsáveis na
diretoria pelo barracão do Vai-Vai, que não fica no Bixiga, mas perto do
Sambódromo do Anhembi. Contei para ele sobre minha emoção no desfile anterior e
de como gostaria de ter desfilado. “Não seja por isso, no ano que vez você vai.”
Eu e Leandrinho Amêndola |
No segundo semestre de 2015, comecei a frequentar a quadra
do Vai-Vai no Bixiga. O enredo já havia sido divulgado e as fantasias para o
desfile foram apresentadas em um domingo de chuva torrencial. Não tive muita
dificuldade para escolher a ala Forte Conceito, chefiada pela Sueli de Souza.
Não foi exatamente a fantasia que me cativou, embora fosse muito bonita, mas o
sorriso largo da Sueli. E foi uma surpresa descobrir que ela, tão risonha, era
irmã do Mestre Tadeu, o sempre sério maestro da bateria Pegada de Macaco do
Vai-Vai há 43 anos.
Meu filho Gabriel, Sueli e eu, no dia em que me tornei componente da ala Forte Conceito |
Escolhida a fantasia, ganhei minha camiseta de componente –
que equivale a um ingresso para os ensaios, pagos por quem vai apenas assistir.
E passei a frequentar o Vai-Vai todos os domingos, para ensaiar o samba e a
formação da escola. Além dos ensaios no Bixiga, que também eram realizados às
terças e quintas na época mais próxima ao Carnaval, houve três ensaios
técnicos no Sambódromo, algo fundamental para ir acertando a evolução,
especialmente para nós, do Vai-Vai, que temos uma quadra muito pequena e
ensaiamos na rua. Conheci alguns componentes da ala e, aos poucos, fui me
familiarizando com aquela atmosfera. Definitivamente, eu não me sentia mais
como alguém “de fora” e, a cada ensaio, ao repetir o verso “sou raça, sou raiz,
há tantos carnavais, je suis Vai-Vai”, as palavras ganhavam mais legitimidade
para mim.
Faltando alguns dias para o desfile, comecei a sentir uma
espécie de crise de abstinência antecipada. “Meu Deus, o Carnaval está chegando
e isso tudo vai acabar.” Passei a desejar que o tempo passasse mais
lentamente, para aproveitar melhor aqueles últimos ensaios, ouvir de perto a
bateria, simplesmente estar ali.
Na concentração, minutos antes de entrar na passarela do samba |
Tudo isso se revelou algo muito menor quando o intérprete Wander
Pires começou o “esquenta” do Vai-Vai e, da concentração, eu comecei a enxergar
nossos carros alegóricos, posicionados para entrar na passarela. A massa cantava
o esquenta (“Vem novamente a disputa, meu povo à luta, Vai-Vai”). Na sequência,
a cantora Didi Gomes fez a introdução, entoando um trecho de La Vie em Rose, em
alusão ao enredo da escola em 2016, a França. O cavaquinho chamou a melodia, os
violões entraram, e mergulhamos no refrão que abre o samba deste ano. “Mon
amour, a voz do povo é quem diz, sou raça, sou raiz, há tantos Carnavais...”.
Não era mais emoção, era euforia. Eu não tinha só que cantar
e dançar diante do público. Eu passava a ser parte da escola, e me tornava
responsável por ajudar a construir suas notas. A escola avançava na avenida e
nós, na concentração. A faixa que define o início da passarela pareceu para mim
como a cortina do palco. Eu não me sentia mais foliã ou torcedora do Vai-Vai.
Ali, éramos todos artistas, aquela era nossa peça. Ultrapassei a faixa.
Estreei.
A luz, meus amigos, é forte, o que faz da passarela um lugar
quente, muito quente. Tem que cantar – harmonia é feita disso: a escola cantou
o samba em uma única voz? Tem que dançar, sorrir e se movimentar. Os gestos
coreografados nos ensaios não serviram todos na nossa fantasia, que era imensa,
com um costeiro enorme e um chapéu que apertava a cabeça com a força de muitas
enxaquecas. Tem que observar a ala da frente, para respeitar a evolução. Tem muita
gente, e gente muito perto da pista, e é possível interagir com o público, que
canta junto, faz coração com as mãos, pula e chora.
E tem a hora que a ala passa pela bateria, e todo o resto
parece sumir no ar, com a ressonância das batidas preenchendo toda a paisagem
sonora. E quando se sai dessa massa de batuque, você escuta novamente a sua voz
e, melhor ainda, escuta a voz da arquibancada repetindo seu refrão. O corpo
cansa, a fantasia pesa, o suor escorre, e ainda assim, você sente pena quando
enxerga a outra faixa, a do fim da passarela. O show vai terminar.
Entrei na dispersão e levei um susto, vendo alguns componentes
chorando. Cheguei a pensar que a escola tinha tido problemas. Logo saí e liguei
para minha mãe, que tinha visto o desfile pela TV e, eufórica, disse que tinha
sido lindo, perfeito. Entendi o choro dos colegas. Era o mesmo que eu vertia,
agora, ao perceber que meu show tinha sido um sucesso.
No momento em que
escrevo, terça-feira de Carnaval, já sei que o Vai-Vai não conquistou o
bicampeonato, ficando atrás da campeã Império da Casa Verde, da Acadêmicos do
Tatuapé e da Mocidade Alegre. Assim que acabou o desfile, escrevi uma mensagem
para a Sueli:
“Minha querida chefe, estou triste com o resultado, mas nada
vai apagar a emoção de ter desfilado pelo meu Vai-Vai e de fazer parte da
família Forte Conceito, com muito orgulho.”
O Vai-Vai buscará sua 16ª estrela no ano que vem, e
continuará buscando novos títulos nos próximos anos. E eu vou com ele, porque
agora eu sou e me sinto parte dessa instituição, legitimamente. Je suis Vai-Vai.