Monday, April 16, 2018

Max, o adultescente



"Os 40 são os novos 30." Sempre que vejo alguém reivindicar juventude onde deveria haver maturidade, tento ser condescendente. Afinal, uma das marcas mais significativas das últimas décadas foi a grande mudança demográfica pela qual a sociedade tem passado: estamos ficando mais velhos. Antes, era preciso começar a trabalhar cedo, casar cedo, ter filhos cedo, porque raramente se iria além dos 50 anos. Hoje, chegando e ultrapassando os 80, a visão do tempo mudou. A linha de chegada avançou muitos quilômetros nessa longa estrada da vida, e o ser humano sabe que, com enorme probabilidade, não terá chegado à metade da sua existência quando fizer 40 anos. Sendo assim, o que dizer de alguém de 20?

O piloto holandês Max Verstappen tem 20 anos. Fez sua estreia na Fórmula 1 em março de 2015, quando tinha apenas 17. Ou seja, podia pilotar um carro da categoria mais importante do planeta, mas ainda não podia dirigir pelas ruas. Foi um assombro: em sua segunda corrida, já conquistou um sétimo lugar. Marcou pontos em outros nove GPs, demonstrando o arrojo típico dos grandes talentos. A bordo de um carro da Toro Rosso, Verstappen cumpria o papel de jovem promessa na equipe que é o time B da Red Bull. Chamou tanta atenção que, no ano seguinte, fez apenas quatro corridas pelo time original, sendo promovido à Red Bull a partir do GP da Espanha. Nessa primeira corrida, justificou a pressa dos patrões em assegurar seu passe, colocando-o fora dos olhos grandes da Ferrari, que parecia cortejar o garoto. Conquistou nessa mesma corrida sua primeira vitória, beneficiando-se da colisão entre os favoritos Lewis Hamilton e Nico Rosberg, da Mercedes.

Verstappen muito rapidamente virou uma estrela na Fórmula 1. Com duplo apelo - o talento e a juventude - amealhou uma torcida jovem militante em sua causa. A cada prova, essa verdadeira esquadra passou a atuar em bloco nas eleições de "piloto do dia" e o holandês vencia quase sem esforço a sondagem realizada no site da Fórmula 1. No ano da estreia pela Red Bull, Verstappen terminou em quinto no campeonato, confirmando a boa aposta da chefia, ainda que a Red Bull não tivesse o mesmo nível técnico das rivais Mercedes e Ferrari. Em 2017, no entanto, os erros do holandês começaram a se proliferar.

É certo que ele perdeu muitos pontos por quebras do carro e situações em que sua culpa seria nula ou pelo menos relativa. Mas também é evidente que Max deixou de somar pontos para si (e para a equipe), por excesso de arrojo, como no GP da Hungria, em que uma ultrapassagem forçada pelo holandês tirou da prova Daniel Ricciardo, seu companheiro de equipe. Mas nenhum erro anterior parece tão determinante quanto a sequência estabanada do GP da China de 2018. Verstappen beneficiou-se da estratégia - e da agilidade - da Red Bull, que chamou seus dois pilotos ao box na mesma volta e trocou-lhes os pneus no momento exato em que o Safety Car aproximava os outros carros na pista.


Só que Max, com excesso de arrojo e falta de paciência, forçou duas ultrapassagens. Primeiro, sobre Hamilton, saindo da pista e sendo ultrapassado pelo companheiro Ricciardo. Depois, sobre Sebastian Vettel, fazendo com que os dois pilotos rodassem e ele mesmo recebesse uma punição de dez segundos. Vettel terminou a prova em oitavo, Verstappen, em quinto, assistindo a uma exibição irretocável do companheiro australiano. Finda a prova, o jovem holandês foi imediatamente pedir desculpas ao alemão, que aceitou e elogiou o gesto de mea culpa.

Do ponto de vista esportivo, a série de manobras desastrosas talvez ajude Max a aprender com os erros. Com apenas 20 anos, Verstappen pode se tornar um multicampeão no futuro, claro. A título de comparação, vale lembrar que alguns campeões recentes da categoria já estavam lutando e vencendo seus primeiros títulos em suas quartas temporadas (Michael Schumacher, Fernando Alonso e Sebastian Vettel, especificamente). Hamilton, outro caso raro, foi campeão no segundo ano e lutou por ele no primeiro. Schumacher foi campeão, pela primeira vez, com 25 anos. Alonso, com 24 (o campeão mais jovem até então). Vettel, com 23 (batendo o recorde de Hamilton).

Todos eles, em seus inícios de carreira, cometeram erros em profusão. Normal, esperado até. Em sua quarta temporada na Fórmula 1, Verstappen já tem experiência o suficiente para não poder mais ser considerado uma promessa. Se perder corridas como a da China, por sua própria culpa, já não pode colocar o revés na conta da pouca idade.

Os erros na China não anulam o enorme talento de Verstappen nem inviabilizam seu futuro promissor. Mas o que parece chocante é acompanhar sua massa de torcedores-seguidores deixando de enxergar a culpa do piloto nas duas manobras desastrosas. No fundo, o choque se desfaz quando voltamos lá para o começo da história e lembramos que um ser humano adulto, hoje, parece ter salvo-conduto para continuar imaturo aos 20 anos. Passando a mão na cabeça desses jovens tão talentosos, voluntariosos e, em muitos casos, privilegiados, estamos criando uma imensa população de "adultescentes".

Thursday, April 05, 2018

Dois cigarros: a transitoriedade de tudo

O primeiro romance do jornalista e escritor Flavio Gomes


Homens de meia idade costumam ser crianças crescidas, e por isso mesmo respondem à voz de comando de uma mulher com obediência canina. Talvez por serem de uma geração acostumada aos mimos de mães e avós zelosas e onipresentes, de alguma ou de várias formas parecem buscar essa segurança opressora vida afora. Da mesma forma que o instinto do cachorro faz com que ele aceite as ordens do dono porque vai receber comida depois, o homem entrado em anos recebe os desígnios da mulher em busca da recompensa carnal que ela eventualmente irá a ele destinar.

Dois cigarros, primeiro romance do jornalista e escritor Flavio Gomes, tem um protagonista sem nome consciente dessa condição. O livro, em primeira pessoa, é um relato de um homem de quarenta e poucos anos para uma mulher mais jovem. A relação comandante-comandado fica evidente logo nas primeiras páginas, que relatam uma viagem do casal a uma hipotética cidade do interior de Minas Gerais.

A jovem guia todos os passos da dupla, determina a dinâmica entre eles, escolhe dos passeios ao cardápio, passando pelas roupas dos dois. Ele obedece e se cala, como o cão que senta, deita, rola, vai buscar a bolinha, volta com a bolinha, abana o rabo porque sabe que, depois, vai ganhar ração.
Gomes, no lançamento do livro, em São Paulo
Só que a moça, além de altiva, é errática. Entra e sai da vida do tiozinho solitário sem aviso. Como tudo, aliás. Na vida dele. Na vida, apenas. Cada vez que volta, surge a bordo de ordens e mistérios. O domínio que exerce sobre o pobre macho pode lembrar o perfil da mulher desalmada de “Travessuras da menina má”, de Mario Vargas-Llosa. Mas, enquanto o protagonista do escritor peruano é um pobre diabo revestido de autocomiseração, o arquiteto errante de Flavio Gomes é um ser resignado. Não há nada de grandioso em sua existência – nem os prazeres, nem as danações.

Mas, se as autoimagens dos dois protagonistas são bastante diferentes, as visões que ambos têm das mulheres de seu desejo são totalmente opostas. O peruano ressentido parece sempre disposto a julgar o comportamento da “menina má”, inclusive como forma de reforçar sua própria miséria. O arquiteto/barqueiro/garçom de Flavio Gomes tem arroubos de raiva e desprezo pela jovem que o domina ao nível da paranoia, mas nunca a julga e, ainda que a ligação entre ambos seja carnal, o romance jamais resvala na descrição dos encontros físicos entre ambos. Elegância? Mistério? Algum pudor?

Não. Porque não é essa ligação física o que move a história. Um inesperado plot twist coloca Dois cigarros na trilha de uma narrativa em vários tempos, e é muito mais a vida daquele pobre diabo que passa a interessar o leitor. Costurada como um labirinto cujos caminhos, de alguma forma, irão se encontrar, a trama equilibra eventos frenéticos e divagações existencialistas de forma instigante, saborosa. Flavio Gomes tem um dos melhores textos do jornalismo esportivo brasileiro há quase trinta anos. Não é de se espantar que tenha trazido sua prosa altamente coloquial para o formato romance, legando ao público uma história sobre amor que é também sobre a vida, ou sobre a transitoriedade de tudo, inclusive dos sentimentos.

Desavisado, ou mal-intencionado, um leitor crítico poderia questionar: por que ele está contando para a mulher uma história que ela mesma viveu? Insignificante, resignado, blasé, aquele homem de meia idade nunca havia falado de sua (s) vida (s) para ninguém, nem para ela. Contar a história dela era uma forma de dar significado à existência banal dele. A narrativa o colocou no controle, porque todo homem de meia idade é uma criança crescida, mas grita por dentro a necessidade de ser pelo menos um pouco macho alfa.

Sobre o livro, lançado pela Gulliver, acesse aqui

Wednesday, April 04, 2018

1968, o ano que terminou em abril*

Jim Clark e Graham Hill: a batalha que não houve
Enquanto você estourava champanhe, pulava sete ondas, comia lentilhas, guardava caroços de romã na carteira, ouvia a mesma história daquele tio pelo oitavo Réveillon seguido ou curava as bolhas ganhas na São Silvestre, a Fórmula 1 registrava quarenta anos da última vitória de Jim Clark, em Kyalami, tornando-se o escocês o maior vencedor da Fórmula 1 até então, com 25 vitórias, superando Juan Manuel Fangio. A informação pode soar estranha – corrida de Fórmula 1 no dia 1º de janeiro?
Sim, e a estranheza tende a aumentar quando se descobre que a segunda corrida daquele campeonato de 1968 só aconteceria mais de quatro meses depois. Outros tempos, sem o foco da Fórmula 1 ajustado no binômio negócios-espetáculo que passou a nortear os eventos esportivos nos últimos anos. A lógica era simples: escapar o quanto fosse possível do inverno. Assim, era natural ter uma corrida na África do Sul em janeiro, em pleno verão no hemisfério sul, e só retomar o calendário na primavera europeia.
Clark venceu a prova de abertura em 1º de janeiro. Quando a Fórmula 1 desembarcou na Europa, para o GP da Espanha, em 12 de maio, o então líder do campeonato e bicampeão da categoria (1963 e 1965) estava morto. Em 7 de abril daquele ano, Clark perderia a vida em uma etapa do Campeonato Europeu de Fórmula 2, em Hockenheim, na Alemanha. Outro aspecto que, à luz de quarenta anos passados, pode parecer sem sentido. Clark correndo de Fórmula 2 em 1968 seria o mesmo que Fernando Alonso disputando uma prova da GP2 atual. Mais ou menos.
Naquele tempo, era comum ter pilotos da Fórmula 1 disputando provas da Fórmula 2. Desta mesma corrida em Hockenheim, participaram, por exemplo, pilotos do quilate de Graham Hill, companheiro de Clark na Lotus, e também campeão do mundo, e Chris Amon. Não havia nada de extraordinário, portanto, nesse cruzamento de pilotos e categorias. Além do mais, a Fórmula 1 vivia seu longo período de hibernação.
Clark perdeu o controle de seu carro na sétima volta, entrou por um trecho da floresta e bateu de lado, violentamente, em uma árvore, na altura do cockpit, morte instantânea. A vitória do escocês na prova de abertura era um prenúncio da alta competitividade do Lotus 49, o modelo criado por Colin Chapman para aquela temporada. Ao lado de Clark, no pódio, aparecia seu companheiro Graham Hill logo na segunda posição.
Após a morte de Clark, Hill venceu as duas corridas seguintes, depois amargou uma sucessão de quebras em quatro provas consecutivas, voltando ao pódio mais três vezes na segunda metade do campeonato. Foi campeão com doze pontos de vantagem sobre Jackie Stewart. É claro que a chance de Clark ter vencido esse campeonato seria enorme. Era um piloto de 32 anos, no auge da forma, com um carro vencedor, gozando de prestígio e, mais do que isso, de amizade junto ao dono da equipe.
O ano da morte de Jim Clark, 1968, é considerado um marco da história contemporânea. Tendo morrido em abril, Clark ainda teve tempo de ouvir falar de algumas notícias que mudariam para sempre a face da política e da cultura mundial naquele ano: os primeiros protestos nos EUA contra a guerra do Vietnã, a viagem dos Beatles à Índia, onde se aproximaram da cultura oriental, o assassinato do líder Martin Luther King, três dias antes do acidente fatal com o escocês.
Mas Clark não viu, por exemplo, os estudantes franceses protestando contra o governo reacionário de Charles de Gaulle no famoso maio de 68, não soube do assassinato do senador Robert Kennedy, nem viu os tanques soviéticos invadindo a Tchecoslováquia depois da frustrada “Primavera de Praga”, nem o protesto anti-racista dos Panteras Negras durante os Jogos Olímpicos, no México. Tudo em 1968.
Isso para não mencionar fatos marcantes da história brasileira, que certamente não chegariam aos ouvidos de Clark, como a ação do movimento estudantil, o advento da Tropicália e o endurecimento da ditadura militar, culminando com o decreto do Ato Institucional número 5, o tristemente célebre AI-5.
O ano de 1968, cujos fatos chegam agora a seu 40º aniversário, significou um momento de rupturas múltiplas. Na ordem política, se por um lado a chamada sociedade civil começava a se mobilizar contra regimes autoritários, por outro, vários países viram recrudescer sistemas anti-democráticos. No âmbito social, floresceram como nunca antes os movimentos feministas, anti-racistas, a luta pela liberdade sexual.
E, ainda, no campo cultural, multiplicou-se o experimentalismo, a liberdade criativa, a utilização da arte como forma de protesto e engajamento sócio-político. Muito do que se plantou em 1968 continuou dando frutos nos anos seguintes, modificando drasticamente a política, os costumes, a vida no final do século 20. Por essa perenidade e prevalência nos tempos que se seguiram, 1968 foi chamado, pelo escritor Zuenir Ventura, em seu livro lançado em 1987, de “o ano que não terminou”.
Na Fórmula 1, não foi bem assim. A morte de Clark foi um golpe severo para a categoria, ainda que tenha acontecido em um período no qual, afinal de contas, morrer nas pistas não era um evento raro. Clark era uma das principais estrelas da Fórmula 1 naquele tempo, e galgava célere os degraus rumo ao posto de maior piloto da história.
Seu número de vitórias, 25 em 72 GPs disputados, coloca-o ainda hoje em sexto lugar entre os maiores vencedores da Fórmula 1, 40 anos após sua morte. Há quem diga que Clark abandonaria as pistas no final daquele ano, para se casar. Difícil imaginar que, com um terceiro título no currículo, e com a Lotus em seus melhores dias, o escocês abriria mão de tentar ser o maior de todos os tempos. Especular sobre os anos seguintes é temerário, mas não há grande chance de errar sobre o título de 1968.
Clark e Hill na mesma equipe, adversários históricos. Hill foi vice-campeão nas temporadas que consagraram Clark (1963 e 1965), roubou-lhe o título de 1962 e a vitória nas 500 Milhas de Indianápolis de 1966. À frente da concorrência, a Lotus dominaria amplamente aquele campeonato de 1968, com a promessa de uma disputa acirrada pelo título entre seus dois pilotos. Sobrou só Hill.
Aquela árvore, naquela pista alemã, naquela tarde de abril, na sétima volta encerrou o ano precocemente para a Fórmula 1. 1968 terminou ali.
*Coluna publicada originalmente em abril de 2008