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O Maksoud Plaza ainda não tinha descido todos os degraus rumo à decadência, apresentando-se como um hotel de razoável sofisticação naquele 1995. No ano anterior, por ocasião dos funerais de Ayrton Senna, alguns bacanas da Fórmula 1 haviam até se hospedado lá. Já não vivia o prestígio da década anterior, mas equilibrava-se na dignidade.
Cheguei ao saguão por volta das oito da manhã daquela segunda-feira, como solicitado. Anunciei-me na recepção e aguardei no lobby, ávida por ler o caderno de Esporte. Eu trabalhava na assessoria de imprensa da Ford, e tinha sido designada para acompanhar um documentarista inglês que estava produzindo um vídeo institucional para a empresa.
Naquele momento, no entanto, minha cabeça estava vários quilômetros longe dali, mais precisamente na cidade paulista de Ribeirão Preto onde, na véspera, o Corinthians havia conquistado um de seus mais saboroso títulos – o Paulista de 95, vencendo o Palmeiras na final. Por sorte, havia um exemplar da Folha de S. Paulo por ali, e me pus a reviver em texto o que tinha visto ao vivo, horas antes, pelas imagens da TV. A coluna de Juca Kfouri tinha um título bem sacado – “Ribeirão Preto (e branco)”. Li-a inteira e ia avançando pelo resto do noticiário enquanto o gringo não chegava.
Alguns dias antes, tudo o que me havia chegado era um fax, com o nome do sujeito, uma resumidíssima programação daquela semana e o horário em que eu deveria me colocar a postos. Ao ler o nome do homem, comecei a rir – Matt Ballard, que imediatamente me soou como “mete bala!”. Apesar de o nome sugerir cena de filme policial, sei lá por que, na minha mente, cristalizou-se a imagem de um homem velho, talvez pelo Mr. à frente do Matt, talvez por ele ser inglês e estar metido com direção de imagens. O fato é que eu esperei, no lobby do Maksoud, por uma figura que misturava Alfred Hitchcock com Hercule Poirot, o detetive da Agatha Christie. Para mim, Mr. Matt Ballard, assim designado no fax, seria baixote, gordo, careca, com um pincené e um cachimbo.
Por isso, não fiz menção de fechar o jornal quando um sujeito de uns 30 anos, alto, magro e com jeito de vocalista do Oasis surgiu à minha frente. “Are you Alessandra?”, perguntou-me, naturalmente carregando no sotaque ao pronunciar meu nome. Enquanto fechava o jornal e tentava fazer alguma conexão entre aquele quase roqueiro e a figura de Hitchcock-Poirot, ele estendeu a mão, apresentando-se como Matt Ballard, pedindo desculpas pelo atraso – era inglês, afinal – e me convidando a tomar o café da manhã. Declinei do convite, mas acompanhei-o ao restaurante, onde ele comeu pouco e rápido, demorando-se com deleite apenas no suco de laranja, admirando o copo e estalando a língua – “Natural! Suco natural! Estou adorando o Brazil!”.
Foi uma semana divertida. Saí do departamento de imprensa, onde atendia jornalistas o dia inteiro ou escrevia releases, para acompanhar locações nas fábricas da Ford, nos escritórios e até tomadas externas. Um motorista ficou à nossa disposição e minha função era basicamente servir de intérprete e eventualmente discutir alguma abordagem com um ou outro entrevistado. No primeiro compromisso, naquela mesma manhã, perguntei a Matt se ele gostava de futebol. “I love it!”, e se espantou em saber que eu também era fanática torcedora. Que, aliás, tinha comemorado um título do meu time na véspera. Matt me disse que não tinha a mesma sorte havia muitos anos, pois torcia pelo Aston Villa, uma espécie de Portuguesa da Inglaterra.
Eu, da minha parte, estava em estado de graça. Naquele ano, o Corinthians já tinha conquistado a Copa do Brasil, garantindo vaga na Libertadores do ano seguinte, e ainda presenteava a torcida com um título sobre o maior rival. Nos trajetos entre uma fábrica e outra, ou rumo à sede administrativa da Ford, falávamos de futebol o tempo inteiro, e eu descrevia em detalhes a saga do Corinthians naquele e em outros anos. Em dado momento, Matt sentenciou: “Pronto, você me convenceu. Daqui para frente, torço pelo Corinthians no Brasil.” O que eu achei muito natural. “O nome homenageia um time inglês. Você, sendo inglês, só pode mesmo virar corintiano.”
Um dia, depois de uma tarde de entrevistas na sede, Matt vira-se, curioso, e me fala sobre um diálogo, travado com um outro funcionário, palmeirense doente. “Sabe, Alessandra, o fulano me falou que corintiano é tudo maloqueiro e sofredor. O que significa isso?” Não passei recibo, embora tenha sentido ímpetos de esganar o fulaninho com minha faixa novinha de campeã. “Liga, não, Matt. Maloqueiro é o cara alegre, popular, que se dá bem com todo mundo. E sofredor é o torcedor fiel, como somos nós, corintianos.”
No dia seguinte, tadinho, o inglês andava pelos corredores da Ford batendo no peito e dizendo, para quem puxasse papo, em bom e arretadíssimo português com sotaque britânico: “Eu, maloquêro, sofredor!”. A experiência ainda rendeu uma cena digna de nota. Na véspera de encerramos o trabalho, passando por uma avenida da zona Sul, o motorista que chama a atenção. “Dá uma olhada nessa Cherokee.” Quando virei, vi que era Marcelinho Carioca dirigindo o jipão e não tive dúvidas. Escancarei a janela e comecei a gritar, mais maloqueiramente impossível, enquanto o motorista buzinava. Marcelinho notou a balbúrdia, fez um aceno, quase tive um troço. Matt, ao meu lado, divertiu-se com minha radical manifestação de fanatismo, não achando nada estranho, já que eu o havia familiarizado com os nomes de alguns jogadores, e Marcelinho era o rei alvi-negro naqueles tempos.
Nunca mais soube nada de Matt Ballard, mas sempre mantive o hábito de procurar o Aston Villa na tabela do Campeonato Inglês. Está em oitavo, atualmente. Está bem melhor o Matt do que eu, mas deixa pra lá.