Sunday, January 08, 2017

Do fast food ao louva-a-deus

Os atores Hayley Squires e Dave Johns, em uma das cenas mais tocantes do longa "Eu, Daniel Blake"
Ir ao McDonald's, nos anos 1980, era um programa bacana para a classe média brasileira. Tão bacana que até os atendentes das lojas eram "diferenciados", apresentando-se nitidamente como estudantes que trabalhavam em um período e se qualificavam no outro. Ir ao McDonald's era o sonho de muita família pobre, mais ainda das crianças dessas famílias.

Um dia, como não era raro na nossa rotina, estávamos tomando um lanche no McDonald's de um shopping center de São Paulo quando um garoto de uns 11 ou 12 anos se aproximou da nossa mesa e pediu para meu pai lhe pagar um lanche. Ele pagou e o menino sentou em uma mesa próxima, devorando o sanduíche, as batatas e o refrigerante com uma mistura de urgência e deleite.

Não consegui terminar o meu lanche: comecei a chorar, sem controle. As lágrimas vinham em gotas de tristeza e orgulho, porque paradoxalmente eu chorava por existir alguém que não pudesse comprar um lanche e se humilhava a um desconhecido para conseguir matar a fome (e a vontade), e também por perceber que eu pertencia a uma família sensível àquela situação.

Há algumas horas, assistindo ao longa "Eu, Daniel Blake", uma cena reacendeu essa lembrança: uma das personagens centrais do filme está em uma situação de vulnerabilidade parecida e avança sobre um alimento de forma descontrolada, humilhando-se publicamente. Não fiz questão de conter o choro, que ali misturava minha sensibilidade pela situação, a lembrança do fast food e o encantamento que a arte produz em mim, ao enxergar a soma de talentos ali congregados.

A cena do McDonald's é antiga. A do filme, recente. Mas eu não precisaria assistir a esse excelente longa dirigido pelo inglês Ken Loach para lembrar que muita coisa não mudou nas últimas três décadas. É certo que o McDonald's deixou de ser um programa bacana para se fazer com a família e a rede, afinal, parece ter assumido o mesmo papel de provedora de comida ruim que se alastra no próprio país de origem.

Mas o contraste entre os que têm muito (eu, por exemplo) e os que têm quase nada segue escandaloso. Há alguns dias, em férias no Nordeste, eu esperava uma embarcação que me levaria a um passeio em alto-mar quando um garoto de uns 11 ou 12 anos se aproximou e me ofereceu uma peça de artesanato exótica. Feita com folhas de uma vegetação local, a escultura de um louva-a-deus atestava a destreza do menino. Provavelmente, arte aprendida com parentes mais velhos.

Aos seus pés, ele notou um pequeno pedaço de papel. Pegou do chão e reparou que se tratava da comanda do restaurante ao lado, que servia como "ponto de apoio" aos turistas. "Vamos pegar esse papel e pedir um almoço", falou entre risos ao colega da mesma idade. O tom de troça denotava a cena improvável: algo como eu convidar um amigo a comprar um jatinho ou uma Ferrari. Com a diferença que eu não preciso de um jatinho ou de uma Ferrari para não desmaiar de fome.

2 comments:

Anonymous said...

A humanidade quando corre nas veias, corte o peito e dói em meio a toda essa "desumanização"

Patricia Brito said...

ops corta o peito