This is Us – Isto são os Estados Unidos?
(Este texto contém spoilers da série.)
Comecei a assistir à série This is Us quando ela já era um
sucesso e não demorou meio episódio para eu me encantar com ela. A estrutura da
narrativa, desconstruída no tempo, trazia uma história banal. Uma família
norte-americana encarando alegrias e tragédias em diversos períodos do passado
e no presente, avançando no futuro depois de algumas temporadas.
O nome da série imediatamente me remeteu ao filme “Nós”, de
2019, dirigido por Jordan Peele e que, no original, chama-se “Us”. O trocadilho
em inglês não funciona em português, mas a relação me pareceu posta: da mesma
forma que Peele pretendia fazer uma alegoria do país em seu filme de horror (Us
= United States), os criadores de This is Us deviam querer dizer alguma coisa
com essa menção tão explícita no nome da série.
This is Us, em português, traduz-se como “isto somos nós”,
mas em inglês pode sugerir também “isto são os Estados Unidos”, e desde o
começo eu assisti à série procurando pistas dessa suposta alegoria.
A família Pearson
O lar da família Pearson é a cidade de Pittsburgh, na
Pensilvânia, estado que corresponde a uma das treze colônias que deram origem
ao país. Pearson é sobrenome de origem inglesa, anglo-saxônica. Jack Pearson, o
patriarca da família, nesse contexto seria também uma alegoria dos primeiros
colonizadores.
No entanto, a família Pearson como a conhecemos só se forma
pela união de Jack com Rebecca Malone. Malone é sobrenome de origem irlandesa,
uma das principais correntes imigratórias na formação do povo norte-americano.
Dessa forma, a gênese da família Pearson se assemelha muito à origem do povo
norte-americano, inicialmente formado por colonizadores ingleses, mas logo
miscigenado a imigrantes que chegavam ao país, sobretudo, em busca de trabalho.
Pearson + Malone = ingleses + irlandeses
KKK
Outro detalhe que me chamou a atenção foi a escolha dos
nomes dos trigêmeos, filhos de Jack e Rebecca: Kevin, Katherine (Kate) e Kyle.
KKK... Kyle não sobrevive. No hospital, quando convence Rebecca a adotar o bebê
negro abandonado na mesma noite em que seus filhos nasceram, Jack entende a
coincidência como uma espécie de chamado. Mas a ideia de “reposição” está
latente, tanto que o bebê segue sendo chamado de Kyle até que Rebecca, ao
conhecer o pai biológico do bebê, decide mudar o nome para Randall.
Kevin, Kate e Randall
Aquela família só não teve uma trinca de filhos KKK porque
chegou a ela um novo membro, que pode até ter exercido um papel de substituto
no início (como o povo negro escravizado substituiu a mão de obra imigrante em
diversos contextos). Mas Randall se impõe naquele lar como indivíduo, com outra
história pregressa. Talvez, por essa escolha, a série queira instigar uma
reflexão: teriam os Estados Unidos se tornado uma grande Ku Klux Klan se não
tivessem que se haver com indivíduos diferentes de seus colonizadores brancos e
primeiros imigrantes, também brancos?
Miguel: quem é esse
cara?
Na mesma linha da “reposição” de pessoas, um dos personagens
mais emblemáticos e, ainda assim, de importância apenas latente até o apagar
das luzes da série é Miguel. A série já está avançada em sua narrativa quando
descobrimos que Miguel, atual marido de Rebecca, era o melhor amigo de Jack. De
origem hispânica, Miguel soa sempre meio escanteado na dinâmica dos Pearson,
tem poucas falas, e a criação de antipatia ao personagem parece meticulosamente
criada pelos autores.
(Aqui, vou fazer um breve parêntesis para deixar claro que
parte dessa antipatia da audiência me parece originada no fato de que, segundo
essas pessoas, Miguel teria traído o amigo morto ao se envolver com a viúva, um
conceito que, já de princípio, baseia-se no machismo, como se Rebecca não
tivesse, ela mesma, desejos e motivações próprias, sendo mero objeto de uma disputa
desleal entre um homem morto e seu melhor amigo.)
Miguel, que precisou virar Mike
O elo mais forte entre a presença de Miguel na série e a
história norte-americana está no personagem como alegoria dos imigrantes de
origem hispânica. Reeditando basicamente a mesma saga de todos os imigrantes
que buscaram a “América” na esperança de trabalho e dignidade, a família de
Miguel chega aos Estados Unidos no século 20, período no qual as diversas linhagens
de imigrantes europeus já estão no país há várias gerações e são, portanto,
simplesmente americanos. Miguel busca aculturar-se, entra em conflito com a
própria família, precisa americanizar o nome para enfim conseguir uma chance de
emprego. Miguel não é apenas o homem que veio para tomar o lugar de Jack. É a
mão de obra mais barata que, no subconsciente americano, vem para roubar “nossos
empregos”.
O Oeste e o trem
Mais um detalhe que aproxima a família Pearson da história
norte-americana: a atração pelo Oeste. Em seu início de relacionamento, Rebecca
convence Jack a acompanhá-la em uma viagem a Los Angeles, na busca por uma
carreira na música. A tentativa foi frustrada, mas o apelo da Califórnia como
terra de oportunidades e de novos começos se consolida na geração seguinte,
quando Kevin tenta e consegue se estabelecer como ator em Hollywood. E, da
mesma forma que a busca por essa terra prometida tornou-se desilusão para
milhares de norte-americanos que trocaram o Leste e o Meio Oeste pela
Califórnia, encontrando apenas mais um lugar para trabalhar duro, também a maior
parte da família Pearson, em dado momento, abandona Los Angeles e se volta para
o local de origem.
Rebecca no trem
Nessa mesma linha de desbravamento do país, surge nas duas
histórias uma figura de importância capital – o trem. Da mesma forma que ele
foi fundamental para a consolidação dos Estados Unidos enquanto nação,
transportando pessoas, colheitas, ouro e tudo o mais, o trem surge como vínculo
fundamental entre Rebecca e sua própria história. Está na lembrança mais doce
da infância, em um dos primeiros momentos de consciência da doença que
desenvolve, e na sua despedida da vida, no penúltimo capítulo da série, que é, literalmente, conduzido em uma viagem de trem.
Não consigo respirar
O grande e mais forte elo entre os Pearson e a história
norte-americana parece estar em Randall. Cercado de amor desde o berço, o filho
adotivo experimentou diversas vezes o sentimento de não pertencer àquele
universo. Na audiência em que se definiria a guarda definitiva do bebê para a
família adotiva, um juiz (negro) prefere deixar o processo, para não decidir
sobre uma questão que ele achava inadequada. Por ele, Randall deveria ser
criado por uma família negra, para ter referenciais negros ao longo da vida.
Mas quantas são as famílias negras com recursos financeiros
para adotar crianças? Se a maioria dos muito pobres é formada por negros, não
parece lógico que crianças abandonadas terão melhores prognósticos com famílias
mais abastadas que, em sua maioria, são formadas por brancos? É essa lógica
cruel que parece guiar a juíza que decide pela guarda definitiva de Randall para
os Pearson.
Randall: uma alma sufocada
Ao longo da infância e da adolescência, Randall enfrenta
diversas situações permeadas pelo racismo estrutural e mesmo de ofensas
racistas. De fato, ele não tinha, em casa, uma referência para abordar essas
situações. Uma cena prosaica, vivida na piscina frequentada pela família,
demonstra como uma tarefa cotidiana – cuidar dos cabelos – poderia ter sido
facilitada se Randall tivesse essa referência. Randall estudou em uma boa
universidade, tornou-se um homem bem-sucedido muito provavelmente porque foi
acolhido por uma família de classe média com recursos para prover tudo isso.
Mas não deixou de sentir essa falta de pertencimento em tantos momentos da vida,
que poderia ter sido muito melhor se as mesmas condições que lhe foram dadas
pelos Pearsons estivessem presentes em sua família original. Só que essa
família, como tantas outras, precisou se haver com a pobreza, com a migração
forçada, com a marginalidade, com o desalento.
Na história pregressa de Randall, seu pai biológico,
William, migra de Memphis, no Tennessee, para Pittsburgh, exatamente como
fizeram muitas pessoas que foram escravizadas no Sul confederado, buscando
ambientes menos hostis nos estados do Norte. Randall só parece encontrar seu
eixo, e deixar de sofrer constantes crises de pânico, que o sufocavam, quando
reconstrói a ponte com suas origens.
Em certos momentos, a história de This is Us acolhe fatos
reais, como a pandemia e o assassinato de George Floyd, em Minneapolis, sufocado
pela polícia local. Aqui, as reações de sufocamento de Randall, presentes antes
mesmo do fato verídico se impor à ficção, podem parecer uma mórbida
coincidência, mas é mais lógico constatar que o personagem sufocado por seus
próprios sentimentos, ainda que cercado de amor e segurança, fosse uma metáfora
genérica do povo negro, vivenciando o racismo há várias gerações na América.
A cena final: um país que precisa se encarar
A história fictícia parece fazer uma leitura crítica da
própria condição do negro na sociedade norte-americana. Enquanto essa sociedade
não enxergar o povo negro como único, dono de uma identidade própria, com
necessidades e referências específicas e integrado à história do país, esse
grupo de pessoas continuará se sentindo – e sendo – sufocado. Nesse contexto, é
absolutamente emblemático que a última cena de This is Us mostre Jack e Randall
se olhando, como um convite a essa integração ainda a ser feita entre os povos
que habitam aquele país.