Sunday, November 06, 2022

A panela no fogo, Lula e a eterna cobrança

 


A história era contada com tons de anedota: década de 1960, mulher do interior, mãe de dois filhos e professora. Sempre que o marido chegava para almoçar e ela estava atrasada no preparo da refeição, colocava diversas panelas no fogo, tampadas e só com água, para dar a impressão de que a comida estava em vias de ficar pronta. “Assim, ele olhava de longe e não reclamava que eu ainda estava começando a fazer o almoço”, e não apenas os interlocutores riam como a dita senhora reforçava a cena como conselho para as moças mais jovens.

Adolescente, eu ouvia aquilo com um misto de incredulidade e tristeza. Aquela mulher, que fazia jornada tripla, precisava lançar mão de um simulacro bizarro para justificar seu atraso, como se ela estivesse em falta com a família, mesmo que o suposto atraso tivesse sido causado pelo trabalho na escola. Afinal, deixar que ela trabalhasse fora era uma enorme concessão do chefe da casa, já que suas funções prioritárias eram, de fato, cuidar da casa, dos filhos e, claro, do marido. Como se, de fato, aquele lugar fora de casa não fosse o seu lugar.

Sempre me lembro dessa história quando leio, ouço e assisto a notícias e análises políticas relativas ao início de um governo de esquerda. As frases “o PT vai ter que...” e “Lula precisa” estão na mesma chave do patriarcado escancarado da situação acima. “O PT vai ter que dar garantias de governabilidade”, “Lula precisa sinalizar ao mercado quem será seu ministro da Economia” etc.

Da mesma forma que o marido da professora nunca precisava justificar eventuais atrasos e ausências domésticas, governos capitaneados por homens brancos doutores ricos não precisam se explicar previamente. Lula, o operário, duas vezes presidente da república, nas duas vezes alçado ao cargo com o amparo de nomes chancelados pelo dito mercado, segue precisando e parece que precisará sempre se explicar.

Hábil negociador, forjado na atividade sindical, que historicamente sempre teve como primeira finalidade a melhoria financeira da vida do trabalhador (consumidor?), Lula segue sendo cobrado a se compor com as forças dominantes de sempre. É a mulher-mãe-professora negociando com o chefe da casa seu direito de trabalhar, ainda que para isso precise escamotear certas práticas do dia a dia. Quer trabalhar fora, pois que antes garanta minha refeição quente na hora devida.

 

Foto: Ricardo Stuckert

Lula quer aumentar o salário mínimo acima da inflação? Pois que antes garanta o equilíbrio fiscal. Lula quer incluir povos originários nas tomadas de decisão? Pois que antes garanta condições para o agronegócio continuar recebendo linhas de crédito vantajosas. É claro que, fora do ambiente doméstico interiorano no qual panelas ferviam água para fazer parecer que estava saindo o almoço, o governo de um país precisa de determinadas condições ideais para que certas ações possam ser efetivadas.

O ponto central dessa reflexão é que essa necessidade constante de justificativas raramente é exigida de homens brancos ricos doutores, os preferidos de sempre do mercado e, por extensão, da chamada mídia hegemônica. Para eles, mulheres, pessoas LGBTQIA+, pessoas pretas, operários, pessoas com deficiências não pertencem ao lugar de poder que, séculos após séculos, tem sido ocupado pelos mesmos fidalgos de sempre.

A cada vez que um desses representantes de “minorias” ascender ao poder, a necessidade de explicação vai se instalar com a força de um poder inquisidor. E é importante que os porta-vozes dessa cobrança institucionalizada tenham consciência de que esse discurso brota carregado de ódio de classe, de machismo, de homofobia, de xenofobia. Cobrar de Lula o que não se cobra de um político “do mercado” é reafirmar que lugar de mulher é na cozinha.

Monday, May 30, 2022

 

This is Us – Isto são os Estados Unidos?

 (Este texto contém spoilers da série.)

Comecei a assistir à série This is Us quando ela já era um sucesso e não demorou meio episódio para eu me encantar com ela. A estrutura da narrativa, desconstruída no tempo, trazia uma história banal. Uma família norte-americana encarando alegrias e tragédias em diversos períodos do passado e no presente, avançando no futuro depois de algumas temporadas.

O nome da série imediatamente me remeteu ao filme “Nós”, de 2019, dirigido por Jordan Peele e que, no original, chama-se “Us”. O trocadilho em inglês não funciona em português, mas a relação me pareceu posta: da mesma forma que Peele pretendia fazer uma alegoria do país em seu filme de horror (Us = United States), os criadores de This is Us deviam querer dizer alguma coisa com essa menção tão explícita no nome da série.

This is Us, em português, traduz-se como “isto somos nós”, mas em inglês pode sugerir também “isto são os Estados Unidos”, e desde o começo eu assisti à série procurando pistas dessa suposta alegoria.

 

A família Pearson

O lar da família Pearson é a cidade de Pittsburgh, na Pensilvânia, estado que corresponde a uma das treze colônias que deram origem ao país. Pearson é sobrenome de origem inglesa, anglo-saxônica. Jack Pearson, o patriarca da família, nesse contexto seria também uma alegoria dos primeiros colonizadores.

 

No entanto, a família Pearson como a conhecemos só se forma pela união de Jack com Rebecca Malone. Malone é sobrenome de origem irlandesa, uma das principais correntes imigratórias na formação do povo norte-americano. Dessa forma, a gênese da família Pearson se assemelha muito à origem do povo norte-americano, inicialmente formado por colonizadores ingleses, mas logo miscigenado a imigrantes que chegavam ao país, sobretudo, em busca de trabalho.

Pearson + Malone = ingleses + irlandeses

 KKK

Outro detalhe que me chamou a atenção foi a escolha dos nomes dos trigêmeos, filhos de Jack e Rebecca: Kevin, Katherine (Kate) e Kyle. KKK... Kyle não sobrevive. No hospital, quando convence Rebecca a adotar o bebê negro abandonado na mesma noite em que seus filhos nasceram, Jack entende a coincidência como uma espécie de chamado. Mas a ideia de “reposição” está latente, tanto que o bebê segue sendo chamado de Kyle até que Rebecca, ao conhecer o pai biológico do bebê, decide mudar o nome para Randall.

Kevin, Kate e Randall

Aquela família só não teve uma trinca de filhos KKK porque chegou a ela um novo membro, que pode até ter exercido um papel de substituto no início (como o povo negro escravizado substituiu a mão de obra imigrante em diversos contextos). Mas Randall se impõe naquele lar como indivíduo, com outra história pregressa. Talvez, por essa escolha, a série queira instigar uma reflexão: teriam os Estados Unidos se tornado uma grande Ku Klux Klan se não tivessem que se haver com indivíduos diferentes de seus colonizadores brancos e primeiros imigrantes, também brancos?

Miguel: quem é esse cara?

Na mesma linha da “reposição” de pessoas, um dos personagens mais emblemáticos e, ainda assim, de importância apenas latente até o apagar das luzes da série é Miguel. A série já está avançada em sua narrativa quando descobrimos que Miguel, atual marido de Rebecca, era o melhor amigo de Jack. De origem hispânica, Miguel soa sempre meio escanteado na dinâmica dos Pearson, tem poucas falas, e a criação de antipatia ao personagem parece meticulosamente criada pelos autores.

(Aqui, vou fazer um breve parêntesis para deixar claro que parte dessa antipatia da audiência me parece originada no fato de que, segundo essas pessoas, Miguel teria traído o amigo morto ao se envolver com a viúva, um conceito que, já de princípio, baseia-se no machismo, como se Rebecca não tivesse, ela mesma, desejos e motivações próprias, sendo mero objeto de uma disputa desleal entre um homem morto e seu melhor amigo.)

 

Miguel, que precisou virar Mike

O elo mais forte entre a presença de Miguel na série e a história norte-americana está no personagem como alegoria dos imigrantes de origem hispânica. Reeditando basicamente a mesma saga de todos os imigrantes que buscaram a “América” na esperança de trabalho e dignidade, a família de Miguel chega aos Estados Unidos no século 20, período no qual as diversas linhagens de imigrantes europeus já estão no país há várias gerações e são, portanto, simplesmente americanos. Miguel busca aculturar-se, entra em conflito com a própria família, precisa americanizar o nome para enfim conseguir uma chance de emprego. Miguel não é apenas o homem que veio para tomar o lugar de Jack. É a mão de obra mais barata que, no subconsciente americano, vem para roubar “nossos empregos”.

 O Oeste e o trem

Mais um detalhe que aproxima a família Pearson da história norte-americana: a atração pelo Oeste. Em seu início de relacionamento, Rebecca convence Jack a acompanhá-la em uma viagem a Los Angeles, na busca por uma carreira na música. A tentativa foi frustrada, mas o apelo da Califórnia como terra de oportunidades e de novos começos se consolida na geração seguinte, quando Kevin tenta e consegue se estabelecer como ator em Hollywood. E, da mesma forma que a busca por essa terra prometida tornou-se desilusão para milhares de norte-americanos que trocaram o Leste e o Meio Oeste pela Califórnia, encontrando apenas mais um lugar para trabalhar duro, também a maior parte da família Pearson, em dado momento, abandona Los Angeles e se volta para o local de origem.

Rebecca no trem

 Nessa mesma linha de desbravamento do país, surge nas duas histórias uma figura de importância capital – o trem. Da mesma forma que ele foi fundamental para a consolidação dos Estados Unidos enquanto nação, transportando pessoas, colheitas, ouro e tudo o mais, o trem surge como vínculo fundamental entre Rebecca e sua própria história. Está na lembrança mais doce da infância, em um dos primeiros momentos de consciência da doença que desenvolve, e na sua despedida da vida, no penúltimo capítulo da série, que é, literalmente, conduzido em uma viagem de trem.

 Não consigo respirar

 O grande e mais forte elo entre os Pearson e a história norte-americana parece estar em Randall. Cercado de amor desde o berço, o filho adotivo experimentou diversas vezes o sentimento de não pertencer àquele universo. Na audiência em que se definiria a guarda definitiva do bebê para a família adotiva, um juiz (negro) prefere deixar o processo, para não decidir sobre uma questão que ele achava inadequada. Por ele, Randall deveria ser criado por uma família negra, para ter referenciais negros ao longo da vida.

Mas quantas são as famílias negras com recursos financeiros para adotar crianças? Se a maioria dos muito pobres é formada por negros, não parece lógico que crianças abandonadas terão melhores prognósticos com famílias mais abastadas que, em sua maioria, são formadas por brancos? É essa lógica cruel que parece guiar a juíza que decide pela guarda definitiva de Randall para os Pearson.

 

Randall: uma alma sufocada

Ao longo da infância e da adolescência, Randall enfrenta diversas situações permeadas pelo racismo estrutural e mesmo de ofensas racistas. De fato, ele não tinha, em casa, uma referência para abordar essas situações. Uma cena prosaica, vivida na piscina frequentada pela família, demonstra como uma tarefa cotidiana – cuidar dos cabelos – poderia ter sido facilitada se Randall tivesse essa referência. Randall estudou em uma boa universidade, tornou-se um homem bem-sucedido muito provavelmente porque foi acolhido por uma família de classe média com recursos para prover tudo isso. Mas não deixou de sentir essa falta de pertencimento em tantos momentos da vida, que poderia ter sido muito melhor se as mesmas condições que lhe foram dadas pelos Pearsons estivessem presentes em sua família original. Só que essa família, como tantas outras, precisou se haver com a pobreza, com a migração forçada, com a marginalidade, com o desalento.

Na história pregressa de Randall, seu pai biológico, William, migra de Memphis, no Tennessee, para Pittsburgh, exatamente como fizeram muitas pessoas que foram escravizadas no Sul confederado, buscando ambientes menos hostis nos estados do Norte. Randall só parece encontrar seu eixo, e deixar de sofrer constantes crises de pânico, que o sufocavam, quando reconstrói a ponte com suas origens.

Em certos momentos, a história de This is Us acolhe fatos reais, como a pandemia e o assassinato de George Floyd, em Minneapolis, sufocado pela polícia local. Aqui, as reações de sufocamento de Randall, presentes antes mesmo do fato verídico se impor à ficção, podem parecer uma mórbida coincidência, mas é mais lógico constatar que o personagem sufocado por seus próprios sentimentos, ainda que cercado de amor e segurança, fosse uma metáfora genérica do povo negro, vivenciando o racismo há várias gerações na América.

A cena final: um país que precisa se encarar

 A história fictícia parece fazer uma leitura crítica da própria condição do negro na sociedade norte-americana. Enquanto essa sociedade não enxergar o povo negro como único, dono de uma identidade própria, com necessidades e referências específicas e integrado à história do país, esse grupo de pessoas continuará se sentindo – e sendo – sufocado. Nesse contexto, é absolutamente emblemático que a última cena de This is Us mostre Jack e Randall se olhando, como um convite a essa integração ainda a ser feita entre os povos que habitam aquele país.