Thursday, July 17, 2014

Samba session

Maria Rita e a banda "na diagnonal" (Foto Camila Camargo)
 

Nesta semana, Maria Rita retoma em Santos a turnê “Coração a batucar”, show que assisti em maio, em São Paulo. No momento em que vi o palco do Citibank Hall, minutos antes da estreia paulistana, tive a impressão de que faltava alguma coisa. Os instrumentos estavam todos dispostos no lado esquerdo, em duas fileiras. À frente, o baixo de Alberto Continentino, a guitarra de Davi Moraes e os teclados de Ranieri Oliveira. Atrás, a bateria de Wallace Santos e a percussão de Marcelinho Moreira e André Siqueira. No lado direito, o vácuo. Sendo um show de samba, ocorreu-me uma associação esdrúxula. “Parece o recuo da bateria”. Assim que Maria Rita entrou no palco, pelo lado direito, a dúvida se dissipou e ficou claro que aquele vácuo tinha sido idealizado para a movimentação da cantora. Ao longo do espetáculo, quem se dissipou foi essa certeza. Chegaremos lá.

É certo que “Coração a Batucar” é um espetáculo de samba, baseado no disco homônimo lançado em março. Das treze faixas que compõem o CD, apenas três não estão no show. O primeiro disco inteiramente dedicado ao samba da cantora (Samba Meu, de 2007) cede outras sete canções. Completam o espetáculo duas músicas de Gonzaguinha (“Comportamento geral” e “E vamos à luta”), duas músicas do álbum Elo (“Coração a batucar” e “Coração em desalinho”), uma do álbum de estreia (“Cara valente”) e uma do espetáculo Redescobrir (“Ladeira da Preguiça”). No bis, outro samba ainda não gravado em CD (“Do fundo do nosso quintal”). É um show de samba, mas não é só isso.

Quando lançou o CD, no início do ano, Maria Rita surpreendeu com a atmosfera escolhida. Na capa, ela surge vestida de preto, olhando de frente para a plateia, com uns olhos pintados também em tons escuros. Nada de lantejoulas ou guias coloridas. Nada de velas ou de confete e serpentina. Nada de samba? A sonoridade, no CD, é sofisticada, com fortíssima presença dos teclados em praticamente todas as faixas, além de um papel de destaque também para a guitarra. É, definitivamente, uma roda de samba, e também uma jam session. Quem escutasse o CD e fosse direto para o show esperaria uma jam session que, aos poucos, fosse se tornando uma roda de samba como, de certa forma, é o CD. E Maria Rita puxou o tapete sob nossos pés, abrindo o show com a última música do álbum (“É corpo, é alma, é religião”), uma animada celebração ao próprio samba.

Tática para animar o público, provavelmente, reforçada pela segunda música do espetáculo (“Cara valente”), um dos maiores sucessos de Maria Rita, daqueles que a plateia canta junto. Não parece muito difícil para ela envolver o público. O novo CD tem pouco mais de quatro meses na praça (considerando o lançamento virtual, que veio antes) e é impressionante ouvir o coro acompanhando a cantora em praticamente todas as músicas. Maria Rita hoje é uma cantora que literalmente arrasta multidões. Ela hoje desfruta de uma plateia devotada, que parece segui-la quase messianicamente. Mas Maria Rita não passa recibo disso. Fala bem menos com o público do que o fazia no show “Redescobrir”. “Eu gosto mesmo é de cantar”, disse no show de estreia em São Paulo, e pôs-se a guiar a plateia por um caminho cujas pistas estavam dadas no CD e que me fez desconstruir a ideia de que aquele vácuo, do lado direito, era “só” para ela se movimentar.

O ponto de inflexão do espetáculo chega de mansinho, com uma música aparentemente “menor” do CD. “Bola pra frente” é uma canção composta por Xandi de Pilares e Bernini. Tem uma estrutura simples, com uma melodia que se repete nas quatro primeiras estrofes, utilizando a mesma lógica para as quatro estrofes seguintes. Deságua em um refrão curto, de ritmo marcado, lembrando a tradição dos antigos jongos africanos que ajudaram a moldar o samba. Pois é essa estrutura simples, algo repetitiva, que permitiu à roda de samba transmutar-se em jam session no espetáculo.


Maria Rita, no show Coração a Batucar (foto: Wesley Mesquita)

A repetição dos temas, em “Bola pra frente”, abriu caminho para que cada músico da banda expusesse de fora inapelável sua relevância no espetáculo e, então, a disposição dos instrumentos no palco fez muito mais sentido. O fato de estar “meio de lado” não era necessariamente para dar espaço para Maria Rita sambar (até porque ela sambou no palco inteiro, diga-se). Muito mais, na verdade, para dar a cada integrante daquela pequena escola de samba o mesmo peso que a própria cantora tinha no cenário. Uma disposição convencional, com os músicos no fundo do palco e a cantora à frente criaria uma condição de coadjuvantes que aqueles profissionais, definitivamente, não mereceriam.

Mas não foi só isso que “Bola pra frente” proporcionou ao show. A música inaugurou o capítulo mais engajado do espetáculo, enfileirando quatro músicas de cunho social, sendo duas delas de Gonzaguinha, oriundas da apresentação de Maria Rita no Rock in Rio do ano passado. No lançamento do novo disco e na estreia da turnê, a cantora explicou em entrevistas a opção por produzir um novo disco de samba, como tendo sido algo espontâneo, meio incontrolável. E não deixou de apontar que a veia social, ensaiada no show do Rock in Rio e presente em diversos momentos de sua trajetória profissional de onze anos, está latente e, em breve, deve render frutos.

Só que Maria Rita, ás vésperas de completar 37 anos, hoje é também uma artista madura e sabe onde pisa. Lançar um disco “político” em ano eleitoral, e dar de bandeja a oportunidade de ser lida como propaganda deste ou daquele? E dar munição para a selvageria de campanhas eleitorais cada vez mais desqualificadas? Não sei se ela fez esse cálculo. Se não fez, benza Deus. A intuição a protege, e tal merecimento não pode ser à toa. Mas, do mesmo jeito que entoou “Minha alma”, d’O Rappa, em meados da década passada, parecendo renovar o “Ouro de tolo” de Raul Seixas, ou que bradou “Menino” e cantou que “quem cala sobre teu corpo consente na tua morte” em plenos tempos de Amarildo desaparecido, Maria Rita dá seu recado político em “Coração a batucar”, que é alegre celebração ao samba, que é virtuosismo de músicos, que é dedo na ferida. Uma samba session, por que não?

Sunday, July 13, 2014

Sarriá, Mineirão, razão, coração

Algumas horas depois do 7 x 1 para a Alemanha, meu filho me perguntou se aquela derrota era pior que a desclassificação do Brasil na Copa de 1982, história que me marcou de forma decisiva e que mencionei a ele em várias ocasiões. No impacto da derrota desconcertante, não soube o que responder. Naquele mesmo dia, meu colega Thiago Alves me perguntou algo semelhante via Twitter. Nesse momento, eu cheguei à resposta, mas achei que valia a pena ir um pouco mais a fundo nela.

7 x 1 para a Alemanha: não foi jogo, foi massacre; em 1982, eu assisti a um jogo de futebol


Eu tinha 12 anos na Copa de 1982, a da Espanha, do Naranjito, da seleção extraordinária de Telê Santana, com Zico, Júnior, Falcão, Oscar, Éder e meu ídolo maior, Sócrates. Aquele ano produziu marcas tão profundas na minha vida que, algum tempo atrás, ao preparar uma apresentação para alunos de uma faculdade de Jornalismo, percebi que foi entre janeiro e dezembro de 1982 que não apenas me decidi por ser jornalista como fixei alguns dos valores mais importantes do meu caráter.

Na ordem, o ano de 1982 viveu três acontecimentos de repercussão nacional que me impactaram fortemente: a morte de Elis Regina, em janeiro, a Copa do Mundo, entre junho e julho, e a consolidação da Democracia Corintiana, coroada com o título do Campeonato Paulista pelo Corinthians, em dezembro. Cada um a seu modo, os eventos provocaram em mim a mesma sensação - de querer fazer parte - e a maneira de concretizar isso seria escolhendo uma profissão que pudesse me abrir caminhos entre assuntos tão díspares quanto a cultura e o esporte. Jornalismo, meu filho, é isso: é ser especialista em generalidades. O jornalista vai alargando seu conhecimento sobre tantos assuntos, de forma tão superficial, que chega ao final da carreira sabendo nada sobre todos os temas. Ao contrário dos médicos e advogados, que se aprofundam tanto sobre algo tão específico que se aposentam sabendo tudo sobre coisa nenhuma (essa comparação sempre me faz lembrar da piada do "especialista em direito". Te contei?)

Vínhamos de uma Copa na qual fomos "campeões morais", desclassificados por uma anfitriã que comprou sua presença na final por meio de suborno à seleção peruana. Tínhamos um time magnífico, um técnico genial, afeito ao toque de bola. Começamos com um jogo duro, contra a União Soviética, com Waldir Peres levando um frango, ganhando por 2 x 1 suado, e fomos evoluindo no desempenho, enfileirando duas goleadas (Escócia e Nova Zelândia), para desaguar em uma revanche aguardada e vencida com louvor sobre os argentinos. Eles eram o belzebu das nossas vidas. Passamos por eles, tirando o jovem Maradona de campo, enfezadinho, pronto, a Copa é nossa!

Paolo Rossi passa pelo lateral Júnior na partida que desclassificou o Brasil da Copa de 1982


Na minha cabeça de 12 anos, o pior já tinha passado, a Itália era um pedregulho a ser retirado do caminho, depois de transpor a montanha argentina. Não acho que seja pretensão imaginar que a própria seleção brasileira imbuiu-se desse espírito. Em nenhum momento o time do Brasil menosprezou a Itália, mas manteve-se fiel a seu toque mágico de bola, e talvez tenha cometido seu grande pecado ao ver em Paolo Rossi um jogador comum, o que era plenamente aceitável, posto que esse meu pesadelo eterno, esse delírio dos infernos, esse carcamano sem coração não tinha feito nada na Copa até então. Nada, zero, vácuo. Nenhum gol. E precisávamos só de um empate. 1 x 0. Gol de Rossi. Zico empata, 1 x 1. 2 x 1. Gol de Rossi. Falcão empata, 2 x 2. Aos trinta do segundo tempo, o golpe final, certeiro. 3 x 2. Gol de Rossi. E assim acabou.

Mas foi um jogo, uma disputa, um placar apertado. Os 7 x 1 na semifinal da Copa de 2014 foi um vareio, uma surra, uma demonstração de força inequívoca. Ou uma demonstração de fraqueza absoluta?

No aspecto esportivo, a derrota da seleção brasileira para a alemã, no Mineirão, foi muitas vezes pior que a chamada tragédia do Sarriá.

Mas a goleada história deste ano me pegou com 44 anos, um filho, contas a pagar, compromissos profissionais diversos a cumprir, os treinos de mais uma maratona daqui três meses. Aos doze anos, eu tinha a escola e a Copa. Acabou Copa, meu mundo caiu. A razão me mostra, por todos os ângulos, que o Mineirão foi uma derrota muito pior. O coração me lembra que o Sarriá, que nem existe mais, nunca vai sair da minha cabeça. Maldito Paolo Rossi...