Vida longa a Gil!
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Em 1981, quando Gilberto Gil lançou o disco "Luar", pouco prestei atenção à faixa "Flora", dedicada à então jovem esposa do hoje ministro. Aquele disco teve muitas músicas de sucesso, como "Palco", "A gente precisa ver o luar", "Cores Vivas", "Se eu quiser falar com Deus" e "Lente do Amor", esta última tema de abertura do seriado "Amizade Colorida", da TV Globo. Um tremendo disco! O fato de eu não prestar tanta atenção a "Flora" talvez tenha tido relação com a maior divulgação das outras músicas. Ou também por outra razão: com apenas 11 anos, na época, eu talvez não tivesse mesmo sintonia com uma música de amor tão delicada, nem maturidade para entender o conteúdo e a profundidade daqueles versos.
No ano seguinte, Gil lançou o também admirável "Um Banda Um", que tem "Andar com Fé", "Metáfora", "Esotérico" e "Drão", uma das mais tocadas do disco, dedicada à ex-esposa de Gil, Sandra, conhecida entre amigos e familiares como Drão, corruptela de Sandrão. Nunca esqueci o comentário da minha mãe, naquela época. Antes, cumpre-se informar que minha mãe é de Touro. Do pouco que entendo de Astrologia, e entendo pouquíssimo, sei que os taurinos são o ápice do ciúme. Ela disse algo como: "Se eu fosse a mulher do Gil, mandava ele passear. Como é que faz uma música para a ex-mulher mais bonita do que a que fez para atual?"
Não contestei a opinião dela e acho até que vivi alguns anos concordando que "Drão" era mais bonita que "Flora". Até que um dia, ouvindo a gravação do show "Trem Azul", o último de Elis Regina, subitamente me vi tocada às lágrimas com "Flora", que Elis provavelmente gravaria no disco planejado para aquele 1982 fatal. Naquele momento, "Flora" revelou-se para mim e definitivamente contestei minha mãe (não que tenha dito isso para ela; ela provavelmente só saberá da minha discordância quando - e se - ler este post.)
"Flora" revela o amor maduro de Gil por uma mulher que se afigura a ele como a musa eterna. Olhando para a jovem, ele nela enxerga seu próprio futuro. Vislumbra a jovem como idosa e se vê ao seu lado, vivendo da sombra de sua maturidade, trocando mesmo de papel. No presente, o poeta é um homem vários anos mais velho que a amada e lhe transfere a condição de segurança e sabedoria. No futuro, ela é a árvore frondosa, sob cuja copa ele contempla a própria vida, multiplicada em frutos - sonhos, filhos - de uma existência conjunta, única, uma amálgama de dois seres. Como se já não existisse o velho e a jovem, nem o homem e a mulher, mas um único ser, unificado em uma realização comum, a materialização genuína do amor.
"Drão" é o hino de um amor transformado, a ode a uma relação localizada no passado, intensa e igualmente frutífera, mas que se sublimou em outro tipo de amor. Não por acaso, "Flora" é uma árvore, forte, plantada, fincada na vida do poeta, enquanto "Drão" recorre igualmente à idéia do grão, da geração da vida que, no entanto, tem que morrer para germinar, desprender-se da terra, tornar-se infinito, ganhar a amplidão do espaço para assim se realizar. "Drão" é, sim, uma declaração de amor de Gil a uma musa, mas de um amor que não é mais o amor que costumava ser, ou que se percebeu diferente ao longo do tempo, na descoberta de outras formas de amar, talvez mais intensas, ou mais perenes, ou mais completas.
Em "Flora", o poeta joga-se nas mãos da musa, coloca nela seu futuro e a crê para sempre. Em "Drão", Gil consola-se e consola a musa do fim de um amor que só poderia ter esse destino, mas que nem por isso deixou de ser amor.
Os poetas talvez saibam amar melhor que nós outros.
Veja as letras das duas canções, abaixo, e fique muito à vontade para dizer se concorda comigo, com minha mãe ou, na linha do que diria o próprio Gil, se "a complexidade do tema está justamente na contraposição das expressões diversas da manifestação amorosa".
Flora
(Gilberto Gil)
Imagino-te já idosa
Frondosa toda folhagem
Multiplicada a ramagem
De agora
Tendo tudo transcorrido
Flores e frutos da imagem
Com que faço essa viagem
Pelo reino do teu nome
Ô, Flora
Imagino-te jaqueira
Postada à beira da estrada
Velha, forte, farta, bela
Senhora
Pelo chão muitos caroços
Como que restos dos nossos
Próprios sonhos devorados
Pelo pássaro da aurora
Ô, Flora
Imagino-te futura
Ainda mais linda madura
Pura no sabor de amor
E de amora
Toda aquela luz acesa
Na doçura e na beleza
Terei sono com certeza
Debaixo da tua sombra
Ô, Flora
Drão
(Gilberto Gil)
Drão
O amor da gente é como um grão
Uma semente de ilusão
Tem que morrer pra germinar
Plantar n'algum lugar
Ressucitar do chão
Nossa semeadura
Quem poderá fazer
Aquele amor morrer
Nossa caminhadura
Dura caminhada
Pela estrada escura
Drão
Não pense na separação
Não despedace o coração
O verdadeiro amor é vão
Estende-se infinito
Imenso monolito
Nossa arquitetura
Quem poderá fazer
Aquele amor morrer
Nossa caminhada dura
Cama de tatame
Pela vida afora
Drão
Os meninos são todos sãos
Os pecados são todos meus
Deus sabe a minha confissão
Não há o que perdoar
Por isso mesmo é que há de haver
Há de haver mais compaixão
Quem poderá fazer
Aquele amor morrer
Se o amor é como um grão
Morre e nasce trigo
Vive, morre pão