Sunday, April 29, 2007

O rei está nu

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Demorei muito para postar qualquer coisa sobre ele talvez por coerência ao tempo que levei para entendê-lo. Ele esteve presente em toda minha infância, adolescência, cada um de seus discos chegava em casa assim que lançado. A partir de um certo período, passei a desprezá-lo. Em parte, por identificá-lo ao gosto musical dos meus pais. Há um tempo, e todo mundo sabe disso, que é imperativo desgostar do que gostam os pais, menos por gosto, mais por auto-afirmação juvenil. Mas muito da minha rejeição veio, também, de uma necessidade de sofisticação, de gostar só de música "boa".

Um belo dia, Caetano resolve gravar "Debaixo dos caracóis dos seus cabelos", e explica que aquela música tinha sido feita em homenagem a ele. Uau! Não era, então, uma música de amor inspirada por uma mulher? Era para o Caetano, remetendo à sua fase de exílio?! Confesso, comecei a me desarmar, por obra e graça da chancela de Caetano. Tolinha, foi quase como se eu ganhasse um alvará para poder gostar daquilo que, no fundo, gostava, e remetia à minha infância, e me aproximava do gosto dos meus pais.

Ele costuma dizer que "a experiência é um belo pente que a vida nos dá quando não temos mais cabelos", mas discordo. Os anos me deram a chance de compreender melhor esse rei, e de me compreender também, sobretudo. Ajudou, nesse (auto) conhecimento, a análise afiada desse outro cara aqui, um sujeito que só conheço da blogsofera mas por quem tenho enorme carinho e respeito. Se você quiser entender o rei (e você também) um pouco melhor, leia "Como dois e dois" e depois me diga.

Entender o rei, entender a si mesmo, entender o Brasil.

Em dado momento, percebi que eu ainda tinha cabelos e quis aproveitar o pente da vida para ir além do rei e conhecer seus súditos. Foi quando cheguei ao livro "Eu não sou cachorro, não", do escritor e pesquisador Paulo Cesar de Araújo. Poucas vezes um livro mudou tanto minha cabeça, na vida adulta. De maneira resumidíssima: o trabalho do Paulo Cesar aborda a música dita "cafona" dos anos 70 e mostra como ela foi tão ou mais perseguida pela censura do governo militar quanto a chamada MPB, e como a abordagem preconceituosa da mídia escondeu isso.

Dobrei uma esquina, enxerguei outro mundo, entendi melhor meu país, a imprensa do meu país, eu mesma.

Até que as duas coisas se juntaram e não poderia ser diferente: Paulo Cesar lançou uma biografia não-autorizada do rei. Na semana do lançamento, comprei um exemplar, que dei de presente de Natal para minha mãe. Logo depois, começou a pendenga. O rei não leu o livro, mas não gostou. Entrou com ação contra Paulo Cesar e a editora. Alegou que estava exposto demais no livro e que aquela história, a história da sua vida, é um patrimônio dele.

Na última sexta-feira, o rei venceu. Para evitar o processo, a editora e o autor concordaram em tirar o livro de circulação.

Gostaria de propor um debate e saber a opinião de vocês sobre o assunto. Dou a minha.

A notícia me entristeceu muito. Não conheço Paulo Cesar pessoalmente não li a biografia ainda, mas considero a ação do rei uma agressão em duas partes.

Primeira parte: censura. Não tem outro nome para o ato de se tirar qualquer coisa de circulação que não seja ofensiva, caluniosa, difamatória. E o detalhe abjeto da alegação do rei e de seus advogados versa exatamente sobre isso: não há nenhuma mentira no livro, nunca se contestou informação de qualquer natureza na obra.

Segunda parte: ganância. O rei se acha prejudicado porque alguém está contando a SUA história e ganhando dinheiro com isso. Ele, o mesmo rei que está há quarenta anos invadindo nossas casas com o disco do ano, com o especial do ano, com a viuvez do ano. Sua gravadora faturou oceanos de dinheiro com seus LPs, revistas de fofocas e celebridades jogaram litros e litros de tinta em papel para estampar notícias sobre ele, a emissora de TV faturou um monte com anunciantes que se estapearam para patrocinar seu programa natalino. E o Brasil vendo e consumindo tudo. Só o Paulo Cesar pagou o pato.

Não, rei, essa história deixou de ser só sua há várias décadas. É minha, da minha família, de cada família, de todo o Brasil. Sinto muito, mas você não tem direito a essa pretendida privacidade. Você se locupleta há quarenta anos da fama. Tudo tem seu preço. Quem quer anonimato vira bancário ou contador. Você escolheu ser o cantor mais famoso do Brasil.

Tuesday, April 24, 2007

These foolish detalhes

Tenho ensaiado há alguns dias um post sobre Billie Holiday, porque de fato é bem estranho falar de cantoras de jazz dando a primazia para Dinah Washington, depois discorrendo sobre Ella Fitzgerald e nem uma palavra mencionar sobre Billie, aliás Eleanor Fagan, Lady Day, talvez a maior cantora de jazz da história. Mas empaquei e conheço esses eventos, não adianta forçar, uma hora sai, assim, from the clear blue sky. Claro, porque isto é um blog diletante e não um veículo formal de comunicação. Fosse séria a coisa, com inspiração ou não, saía o texto, sob o olhar atento do chicote do editor.

Anyway, na busca de um fio condutor para Billie, lancei mão de alguns de seus LPs. Não deu liga para escrever só sobre ela, mas ouvindo a manjada “These foolish things”, fiz uma ponte entre essas sophisticated ladies de outrora e nosso rei eterno, que fez aniversário na semana passada e justamente por ouvir uma de suas músicas mais conhecidas pelo rádio, me ocorreu esta conexão esdrúxula. Ladies and gentlemen, abstraiam-se um instante da atmosfera enfumaçada do café novaiorquino que tem nos abrigado. Vamos, sim, falar de Roberto Carlos.

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Dos gregos para cá, é tudo cópia. Costumo dizer essa frase nos debates que cercam propriedade intelectual, pirataria, compartilhamento de obras culturais etc. É claro que se trata de uma provocação, não acredito de verdade que a humanidade não tenha produzido nada de original da Antigüidade até hoje. Mas me incomoda muito a pretensão de alguns grupos, seja de artistas ou de “gestores” da indústria cultural, de se imaginarem detentores de algo tão original que todo o resto do planeta tenha de pagar centavo por centavo, e caro, para fruir essa obra de arte, seja ela música ou qualquer outra manifestação artística.

Sim, produzimos uma enormidade de obras artísticas, mas vamos ser honestos: tantos livros, peças, filmes, músicas, no fundo, são variações dos mesmos temas – amores românticos, felizes ou miseravelmente frustrados, debulhados em grãos de regozijo, comunhão e plenitude ou de solidão, traição, ausência, separação. Também falamos de cobiça, de inveja, de humilhação, de injustiças e mazelas sociais. Ontem, hoje e sempre.

Penélope tecia o véu à espera de Ulisses, Rapunzel trançava metros de cabelo à espera do príncipe encantado, Julieta esperava Romeu no balcão, a Santinha desejava o Filho do Diabo na novela das seis de Benedito Ruy Barbosa. Certa vez, ouvi uma definição do que era uma novela, não me lembro o autor, simplesmente genial: "Novela são dois querendo transar e um monte de gente pra atrapalhar". Ao fim e ao cabo, em novela mas também nos romances, nos filmes, nas músicas, é disso sempre que falamos.

Quantas vezes, ouvindo os sininhos melodiosos do amor ou sofrendo uma dor de cotovelo daquelas, você não escutou uma canção qualquer e pensou: “Puxa, parece que foi composta para mim...”? Não, aquele compositor não tem o dom de adivinhar sentimentos alheios. Nós, seres humanos, é que somos pouco (ou nada) originais.

É óbvio que o fato de serem todos frutos da mesma semente não fazem das obras produtos iguais. Depende de quem aduba, de como se aduba, com o que se aduba. Sinto de maneira evidente isso nos textos. Sou capaz de ler um livro inteiro que só contenha bobagens no cerne de sua mensagem, desde que seja bem escrito. Por outro lado, não passo da página dois de um livro de texto ruim, ainda que o tema seja de meu total interesse. A forma, muitas e muitas vezes, supera o conteúdo. Mas, cada vez mais me convenço, depende também da etiqueta colada do lado de fora da peça para que nós, consumidores de obras culturais, gostemos ou não da tal obra, antes mesmo de provar o sumo dessa fruta.

Sofisticados como somos, apreciadores de jazz, ficaremos com os olhos cheios d´água se ouvirmos Billie Holiday (ou Ella Fitzgerald, ou Frank Sinatra ou até Bryan Ferry) cantar “A cigarette that bares a lipstick’s traces/ An airline ticket to romantic places/ And still my heart has wings/ These foolish things remind me of you”.

Mas seremos capazes de mudar de estação se for Roberto Carlos dizendo “se um outro cabeludo aparecer na sua rua/ e isso lhe trouxer saudades minhas/ a culpa é/ o ronco barulhento do seu carro/ a velha calça desbotada ou coisa assim/ imediatamente você vai lembrar de mim”.

Porque, no fundo, sem fazer muito esforço para conectar ambas, sabemos logo que Holt Marvell, Jack Strachey e Harry Link, ao compor “These foolish things”, fizeram alguns anos antes o mesmo que Roberto e Erasmo: falaram de um amor acabado que deixa rastros no cotidiano do coração ferido. Só que um é chique, noir, cheio de um glamour nostálgico que, a bem da verdade, nem conhecemos, embora nos remeta a uma madrugada úmida, um casaco pesado, luvas, conhaque para um, esquentar a solidão e lembrar do vinho tinto para dois, de outros tempos.

O outro é o som do rádio da vizinha, no fim da manhã de domingo, aquele calor da peste, aquele cheiro de frango assado e molho de tomate apurando na panela, e esse programa da rádio América que não termina nunca, intercalando uma música do Rei com uma do Julio Iglesias, ai, socorro! Rápido, preciso de Billie Holiday, de Benny Goodman, de Count Basie...

...ainda que eu role na cama de vez em quando, tenha vontade de chorar e a certeza que “Eu sei que esses detalhes vão sumir na longa estrada/ Do tempo que transforma todo amor em quase nada/ Mas quase também é mais um detalhe/ Um grande amor não vai morrer assim/ Por isso, de vez em quando você vai lembrar de mim” tenha sido escrita por eles, inspirados por mim.

(Cheguei a procurar uma foto do Rei para ilustrar este post mas, eu, hein?! De repente ele me processa...)

Thursday, April 19, 2007

Tenho medo dessas coisas

Hoje, fui à academia com dois objetivos: fazer meu treino de esteira e tentar ver o gol que o argentino Messi marcou pelo Barcelona, ontem, pela Copa do Rey, contra o Getafe. Li, ontem mesmo, depois do jogo, que o gol tinha sido muito parecido com o que Maradona marcou pela Argentina, contra a Inglaterra, na Copa de 86. E foi mesmo.

Consegui ver o lance no Globo Esporte, que trouxe uma comparação muito bem feita dos dois gols, com aqueles recursos gráficos de que a Globo dispõe. Para quem não viu o gol do Messi ou não lembra do gol do Maradona, o resumo de ambos é o seguinte: o atacante avança pela lateral direita, supera diversos adversários (cinco, se não me engano, nos dois casos), dribla o goleiro e chuta para o gol.

Impressionante a semelhança. O diário argentino Olé, especializado em esportes, carrega habitualmente na dramaticidade de seus relatos, e não deixaria por menos desta vez. "Uma tarefa tão complicada que tiveram que passar 20 anos, nove meses e 26 dias até que alguém se atreveu a (quase) repetir o segundo gol de Diego Maradona contra a Inglaterra no México-86".



Lionel Messi não era nascido naquela época. Eu era, e bem grandinha já. Assisti ao jogo ao vivo, rendida à obra-prima de Maradona. Dois gols históricos os daquela partida. O primeiro, com a mão. A mão de Deus, diria Diego depois. O segundo, esse espanto. Torci pela Argentina na final contra a Alemanha, eu e esse meu coraçãozinho latino-americano, agarrado à honra de nunca, jamais ter visto uma seleção européia dar a volta olímpica nas terras do lado de cá do Atlântico.

Messi, microfones por todos os lados, evitou a comparação: "Diego é Diego. A jogada foi parecida, mas amanhã (hoje) o conto de fadas terá acabado. O importante é que a equipe conquistou um bom resultado para o jogo de volta", concluiu. O próprio Olé fez questão de dizer que alguém “quase” repetiu o feito. Na Argentina, nada é comparável a Diego Armando Maradona.

Gosto dele, apesar de arrogante. Gosto da autenticidade, da falta de hipocrisia que costuma envernizar figuras públicas. Fico triste por sua tendência auto-destrutiva. Lamento por vê-lo se decompondo fisicamente e mais ainda por tê-lo objeto de julgamentos de gente que parece não saber que todos, indistintamente, temos nossos telhados de vidro.

O futebol pode ser lindo e encantador, com gols como esses dois. Mas o futebol, afinal, é apenas a vida, com suas tantas dicotomias duelando às vezes silenciosas no quarto escuro de cada consciência. Dinheiro e fama, solidão e saudade. Sabe-se lá o que vai na alma de cada jogador apartado de sua casa, de sua família, de sua pátria, nadando em fortunas em terras de ninguém. Outro dia, ouvindo uma entrevista no rádio, uma situação desconcertante. O repórter conversa com um jogador brasileiro, atuando há um ano na Turquia. Em dado momento, o jornalista pergunta como se chama a cidade onde o atleta mora. Longo silêncio. Constrangido, o moço admite que não sabe o nome da cidade onde vive. Alguns, achando bárbaro o espetáculo, atirariam pedras, chamariam de ignorante para baixo. Eu acho triste, muito triste. Vejo nele, como em Maradona e em tantos outros, um menino pobre, correndo atrás da bola e, atrás dela, percorrendo o mundo, perdendo-se nele.

Maradona está, mais uma vez, internado. Sua saúde definha. De repente, um jovem que nem tinha nascido quando ele foi rei, parece reviver seus dias. Isso, para mim, tem cheiro de ciclo se fechando. Essas coisas me assustam. Tomara que não. Vida longa a Diego Maradona!

Sunday, April 15, 2007

Mack the knife

Você está triste, cansado, estressado, preocupado, irritado, com TPM, seu time perdeu? Não faça como sugere aquele adesivo colado no vidro traseiro de alguns carros. Não, não vá pescar. Ouça Ella Fitzgerald cantando “Mack the knife”, ao vivo, e todos os seus problemas terminarão.



Ella Jane Fitzgerald nasceu no estado norte-americano de Virginia, em 1917, mas muito pequena mudou-se com a mãe para Yonkers, no estado de Nova York. Além de afinada como poucas, tinha uma espantosa extensão vocal. Diz-se que alcançava três oitavas. Se você não sabe o que isso quer dizer, acredite, é uma voz elástica pra burro, que vai de um grave soturno a um agudo cristalino.

No post sobre Dinah Washington e em seus comentários posteriores, mencionamos que talvez o grande mal de Dinah, aliás Ruth Lee Jones, foi ter surgido em um período posterior à fase áurea do jazz, além de ser ligada a uma gravadora mais, digamos, “comercial” que “artística”. Pois com Ella, a história, nos dois aspectos, foi oposta.

Ella começou a cantar em 1935, aproveitando uma oportunidade do baterista e bandleader Chick Webb. Sua presença foi tão arrasadora que, alguns anos depois, a banda passou a se chamar apenas “Ella Fitzgerald and her famous orchestra”. Ella virou a bandleader. Já nos anos 1940, ela deixou a banda para fazer carreira solo. Foi quando começou a trabalhar regularmente com o produtor Norman Granz.

Esse nome, uma pedra fundamental na história do jazz, alguns anos depois criou aquele que seria talvez o mais importante selo do gênero – a Verve. Pois foi justamente pela Verve, e com produção de Granz, que Ella perpetrou esta que é considerada uma de suas mais marcantes, inspiradas e irretocáveis apresentações ao vivo.

Senhoras e senhores, sua atenção: com vocês, Ella Fitzgerald.

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A coisa toda aconteceu no dia 13 de fevereiro de 1960, dez anos menos um dia antes do meu nascimento (desculpem, não agüentei!). Norman Granz produzia regularmente espetáculos chamados “Jazz at the Philarmonic”, excursionando pela Europa e sempre com Ella como estrela principal. Naquele ano, Granz resolveu gravar o show de abertura da temporada, em Berlim, em um local para 12 mil pessoas. Sábia decisão.

O repertório do show era recheado de peças tradicionais do jazz, como “The lady is a tramp”, “Summertime”, “Too darn hot” e “The man I love”. A faixa “Mack the knife”, que acabou dando nome ao disco, é uma versão para o inglês de "Die Moritat von Mackie Messer", música de Kurt Weil com letra de Bertold Brecht para a famosa “Ópera dos três vinténs”.

Se ao ouvir a música você ficar com aquela sensação de que a conhece de algum lugar, é provável que conheça mesmo. A “Ópera dos Três Vinténs” é a base da “Ópera do Malandro”, musicada por Chico Buarque nos anos 1970 e a faixa de abertura, chamada “O Malando”, tem essa mesma melodia, vertida antes para o inglês como “Mack the knife”.

Fosse a história contemporânea, eu, com meu coração cada vez mais endurecido, acharia que era tudo armado, ensaiado previamente, para inglês (ou alemão) ver. Mas isso aconteceu em 1960, bem antes do show virar o business que se tornou e, além de tudo, Ella era mesmo capaz de fazer, de cara limpa, no improviso, a mágica que fez.

Logo na introdução, com sua voz simpática e naturalmente melodiosa, Ella anuncia que vai cantar uma música ouvida na véspera, que lhe pareceu muito popular. E ainda avisa: “Esperamos lembrar de todas as palavras” (“We hope we remember all the words”). Well, não lembrou. A gravação tem, ao todo, 4 minutos e 35 segundos. Antes de chegar a dois minutos (mais exatamente, depois de 1 minuto e 45 segundos), descontando a introdução e tudo, dá o branco.

Sem perder o ritmo ou a melodia, Ella dispara, como se fosse um verso da canção: “Oh, qual é a próxima estrofe dessa música, agora?/ É aquele que eu não sei...” (“Oh, what´s the next chorus to this song, now/ This is the one, now, I don´t know”). Sem pedir licença a Bertold Brecht, começa a enfiar um monte de frases e palavras na letra, enumerando, por exemplo, outros artistas que gravaram a canção, fazendo gracejos com os músicos e, claro, soltando um caprichado scat singing à la Louis Armstrong. Aliás, ela cita Armstrong duas vezes na gravação, algo muito natural para Ella, que gravou várias vezes com o músico e cantor. A platéia enlouquece. Aplauso em cena aberta, diriam no teatro.

Com aquela cumplicidade típica dos músicos, a banda sacou que estava presenciando um momento histórico. É nítido o “crescendo” que vão imprindo à execução os músicos Paul Smith, ao piano, Jim Hall, na guitarra, Wilfred Middlebrooks, no baixo e Gus Johnson, na bateria.

Encaminhando-se para o final da apresentação, Ella nitidamente se diverte com o improviso, chegando a cantar: “vai ser uma surpresa se essa gravação virar ‘Mack the knife’” (“it´s a surprise this tune comes ‘Mack the knife’”, porque, de fato, da letra original não havia ali quase nada. Finda a música, a audiência irrompe em estrepitosas palmas e Ella desaba em gostosa gargalhada. Resultado: Ella Fitzgerald ganhou o Grammy daquele ano por essa gravação. E estamos aqui, 47 anos depois, falando de um gênio que cantava como poucas, escolhia um repertório de primeira, divertia-se em sua profissão e, o que mais me encanta, encarava o imprevisto com talento e bom humor, rindo de si mesma.

Agora, clique aqui, ouça e diga se isso é ou não é um tremendo elixir contra o mau humor.

Friday, April 13, 2007

Nação Peter Pan

Errou, mas para mim Felipe Massa foi macho pacas depois do GP da Malásia. Lá no GPTotal, vai lá!

Wednesday, April 11, 2007

Bem que eu avisei...


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O papo sobre cantoras de jazz & blues estava tão bom que nem quis mudar de assunto. Resisti a comentar o GP da Malásia, até porque vou escrever na sexta sobre o tema, no GPTotal. Mas depois de ontem não dá para agüentar. O Manchester United venceu o Roma por 7 a 1. A notícia realmente não me abala. Tenho uma dívida de gratidão com o time inglês pelos serviços prestados em Tóquio, no final de 1999, mas só. E nada tenho a favor ou contra o Roma (aliás, há comentaristas que dizem "a" Roma... que seja).

Mas ontem, no jogo de volta das quartas-de-final da Copa dos Campeões da Europa, o Manchester humilhou o time italiano, fazendo 7 a 1. O que me agita é o nome do goleiro do Roma, este que ontem abaixou sete vezes para buscar a bola no fundo das redes. Doni.

Felizmente, tenho poucos cabelos brancos, característica genética talvez herdada do meu pai, que começou a ver o cabelo encanecer depois dos 40. Quando meu primeiro fio surgiu, bem na fronte, mas estrategicamente localizado abaixo da franja, dei a ele o nome de Doni. Nunca vi goleiro para dar mais susto na Fiel. Quando ameaçava, ops!, defendia o gol do Corinthians, Doni tinha o assustador hábito de rebater chutes adversários dentro da pequena área, aquilo que os narradores chamam de "bater roupa". Cada bola rebatida dessas, meu coração dava pulos.

Ao saber que Doni tinha sido contratado pelo Roma, tive certeza da decadência do império. "Os romanos que se cuidem...", lembro de ter pensado.

Taí.

Saturday, April 07, 2007

The Queen




O fato de gostar tanto de cantoras como Elis Regina, Rita Lee, Billie Holiday e Cássia Eller talvez seja revelador da minha própria personalidade. Sem julgamentos mas, convenhamos, são todas louquinhas. Há períodos em que escuto mais uma do que as outras. Por exemplo, não me atrai ouvir jazz ou blues em dias de sol. Nestes, prefiro cantoras brasileiras. Dias frios, nublados e/ou chuvosos, que venham Billie e suas congêneres. E se isso passou de idiossincrasia para você e pareceu loucura, não diga que não avisei.

Entre as cantoras de jazz e blues do século passado, talvez minha preferida seja Dinah Washington. Tenho consciência de que ela não é melhor que Billie ou que Ella Fitzgerald, mas é de interpretação que falo, e não de ser mais ou menos afinada, ou de ter melhor alcance, ou de escolher o melhor repertório. Interpretação é subjetivo: gosto ou não gosto e pronto.

Dinah nasceu em 1924, no Alabama, e como a maioria das cantoras negras de sua geração, começou a cantar em coros gospel. Conheci Dinah por meio da trilha sonora da minissérie “Anos Dourados”, talvez a melhor coisa que assisti na TV Globo em toda minha vida. Ela estava lá em ótima companhia, ao lado de Billy Eckstine, Maysa, Dolores Duran, Silvinha Teles, um timaço. A música cantada por ela, “What a difference a day makes”, não era a melhor da trilha, vim a saber depois que aquele momento, na verdade, estava longe de ser o seu melhor. Mas sua voz, ah, que voz! Me encantou ainda pela TV, e foi principalmente por ela que comprei o LP com Malu Mader e Felipe Camargo romanticamente estampados na capa.

Tempos depois, descobri um daqueles songbooks produzidos pela EmArcy, nos anos 1950, em que Dinah cantava Fats Waller. Oh, boy! Foi então que ouvi pela primeira vez sua gravação de “Ain´t Misbehavin´”, e de “Someone is rocking my dreamboat”, e de “Keepin´out of mischief now”. Tenho o bolachão até hoje, talvez por milagre, porque ele poderia tranquilamente ter furado.

Para quem não conhece, Dinah é uma daquelas cantoras que se ama ou se detesta. Você gosta de cantoras que gritam, que esticam notas com a coragem de quem pula no trapézio sem ter certeza de haver cama elástica embaixo? É dessas. Se você se irrita com algumas interpretações de Elis e a acha muito teatral, ou não gosta de seus improvisos, passe longe de Dinah.

A interpretação de Dinah talvez fosse mero reflexo de sua vida tempestuosa. Viveu apenas 39 anos, depois de nove casamentos e mais de vinte anos de carreira. O jeito como morreu não inspira originalidade para o time de alteradas lá de cima: a manjada combinação de anfetaminas e álcool (antes da grita geral, eu sei, eu sei: Cássia Eller não morreu de overdose, como a imprensa quis fazer crer, e Rita Lee, toc-toc-toc, não morreu). Mas as coincidências entre todas elas – vidas intensas e curtas, amores e drogas – as aproximam assustadoramente. Há duas histórias tão coincidentes, no entanto, que até hoje me espantam e parecem coisa armada.

Uma delas aproxima Dinah de Elis. Consta que The Queen, como era chamada no meio musical, certa vez foi à Europa. Estando em Londres, resolveu ir com um casal de amigos ao Lagoon, um jazz club onde se exibia a loira Helen Merrill, também norte-americana. Ao saber da presença de Queen Dee na platéia, Helen convidou a colega para uma canja. Dinah subiu ao palco em companhia de sua exuberância e da pianista Beryl Booker. Além de cantora trepidante, Dinah era uma musicista dos diabos, tocava piano desde a infância e eventualmente se aventurava em outros instrumentos também. Nessa noite, além de cantar e de fazer dueto com Booker ao teclado, ela também fez solos de contrabaixo e de trombone. Em resumo, eclipsou o show de Helen Merrill, fez a loira parecer mais sem graça que a gastronomia local. Terminado o fuzuê, o amigo que a acompanhava perguntou a Dinah se ela não sentia nenhum constrangimento. “Bem, a moça me convidou para subir ao palco e teve o que pediu”, teria sido a resposta.

No começo da década de 1980, a Globo realizou uma série de especiais musicais com grandes medalhões da MPB. O título do especial era o nome completo do artista. Quando foi produzido o programa “Maria da Graça Costa Penna Burgos”, o especial de Gal Costa, a baiana convidou Elis Regina para fazer com ela um dueto em “Amor até o fim”, música de Gilberto Gil gravada por Elis em 1974. O programa era feito nos moldes de um show, com platéia de convidados. As duas começaram a cantar. Lá pelo meio da música, Elis se pôs a improvisar com a letra. Não era inédito. Certa vez, cantando “Ladeira da Preguiça”, com o mesmo Gil, os dois imortalizaram um duelo de improvisos memorável. Só que a afinadíssima Gal não tinha o jogo de cintura, a rapidez de raciocínio de Elis, e a baixinha fez o que quis no restante do número. Dizem que, questionada sobre o suposto constrangimento, Elis teria se saído com uma resposta bem ao estilo de Dinah. “Ninguém mandou ela me convidar”.

Mas talvez a coincidência mais espantosa para mim seja a de Dinah com Rita Lee. Como a maioria daquelas cantoras dos anos 30/40, ela adotou um nome artístico. Não se chamava Dinah Washington. Seu nome verdadeiro era Ruth Lee Jones. Para quem não sabe, o nome inteiro de Rita Lee é exatamente Rita Lee Jones!

O que isso significa? Sei lá, acho que nada. Só sei que é uma baita coincidência e que adoro essas mulheres!