Sonia Braga começou a ganhar notoriedade no Brasil em 1968,
quando participou da montagem brasileira do musical “Hair”, que tinha como um
de seus temas a música “Age of Aquarius”. Nas peças de divulgação do longa “Aquarius”,
do diretor Kleber Mendonça Filho, não vi nenhuma indicação de que o nome da
obra faça algum tipo de homenagem ou referência ao início da carreira da atriz.
No filme, “Aquarius” é o nome do edifício onde a personagem de Sonia mora, e
centro do conflito em torno do qual a história foi construída.
Ainda que esta seja apenas uma coincidência, não é incorreto
dizer que “Aquarius”, o filme, é um estudo de personagem que dificilmente teria
a força que se traduz na tela sem a interpretação de Sonia Braga. O que, ao
mesmo tempo, não quer dizer que os elementos que alicerçam a obra sejam
desprezíveis nem ao menos acessórios. Começando pelo roteiro, escrito pelo
próprio diretor.
A história de “Aquarius” é muito simples: crítica de música
aposentada, Clara (Sonia Braga) mora em um pequeno edifício na avenida da praia, no Recife,
que é alvo de uma incorporadora imobiliária. Todos os demais proprietários já
venderam seus apartamentos, menos Clara, que não quer se mudar do local e
enfrenta, por isso, uma série de conflitos, com os donos dessa empresa, com sua
família, com outros antigos proprietários e com a estranha fauna que passa a
frequentar o prédio.
Como já havia feito em “O som ao redor”, seu excelente
primeiro longa de ficção, Mendonça estruturou o roteiro em três capítulos, oferecendo
ao espectador o (falso) conforto de dominar os três atos da obra. Volto ao
parêntesis depois. No primeiro capítulo, a personagem principal é apresentada,
começando com uma sequência ocorrida no passado, precisamente em 1980. E já é
admirável observar a reconstituição da época ali apresentada, mais um trunfo de
“Aquarius”.
Em uma festinha familiar, ali estão as garrafas de
refrigerante de vidro, as mulheres com blusas de ana-ruga (acho que esse tecido
caiu em extinção...), os meninos com shorts muito curtos, que os deixavam a
todos meio pernaltas. Com cabelos também muito curtos, Clara é logo mostrada
como alguém que sobreviveu a um câncer e a seu agressivo tratamento. É natural,
esperado e quase impossível não se identificar com aquela mulher que se mostra,
nos primeiros momentos, como uma resistente.
É também sintomático que o roteiro já circunde Clara, naquele
momento, de figuras que não farão parte da sua vida futura, o período que ocupa
a grande parte da história, dando pistas inequívocas de que o passado daquela mulher talvez seja seu maior patrimônio. A voz de Freddie Mercury, a canção de Altemar
Dutra, a citação a Elis Regina, a presença da tia e do marido: tudo isso serão
lembranças na vida da Clara sexagenária, que surge marcada pelo tempo, mas
ainda bela e vigorosa e, sobretudo, serena em sua nova vida de aposentada.
Outro detalhe fundador da personalidade de Clara é dado em
um breve diálogo da personagem com sua empregada, logo no início da história: a
relação de hierarquia, a estratificação social estão ali estabelecidas. Clara é
pequeno-burguesa e se beneficia do privilégio de ter alguém para servi-la, mas
a gentileza, quase doçura, com que se dirige à diligente Ladjane (Zoraide Coleto) mostra que
estamos diante de uma mulher que cultua a empatia, outro ponto a favor da
identificação do público com a protagonista.
O desempenho de Sonia Braga é magnífico em “Aquarius”.
Ponto. Mas, se o filme se torna uma daquelas referências nas quais não se
consegue imaginar outro ator para o papel, isso também é mérito da direção de
Mendonça e do ritmo que ele imprime às quase duas horas e meia de projeção. As referências à música são constantes no filme – e nem poderia ser
diferente, porque Clara é uma jornalista e crítica de música aposentada e
porque som e música já são referências da obra do diretor. Nesse sentido, se fosse uma peça
musical, “Aquarius” seria uma sinfonia que começa em intensidade pianíssimo e
termina em fortisíssimo (assim mesmo, cheio de “esses” e de fúria). Ainda que a cena de abertura do filme traga um grupo de jovens escutando música em volume alto no carro, o ruído externo desse começo parecerá silêncio perto do grito do ato final.
A direção de Mendonça é
a mão discreta e ao mesmo tempo segura que vai guiando Clara, seus companheiros
e fantasmas por uma narrativa que descreve aparentemente um conflito urbano
frequente nos dias atuais. Mas que, com um pouco de sensibilidade, pode estar
descrevendo o Brasil, e também retomo essa ideia no final.
Mendonça, evidentemente
um cinéfilo cheio de referências, imprime enorme variedade de linguagens em
“Aquarius”. É capaz de criar, com a mesma habilidade, planos abertos que situam
o espectador na Recife que acolhe a história e diálogos internos cheios de
tensão, como aquele que coloca os três filhos de Clara (Maeve Jinkings, Germano Melo e Pedro Queiroz) de um lado, a
mãe do outro, como em um ringue. Independentemente dos golpes eficientes dos
mais jovens, embasados em preocupações genuínas, o espectador naturalmente se
coloca do lado oposto, torcendo e quase tendo certeza de que a parte
aparentemente mais frágil da história levará os três oponentes às cordas, e os nocauteará com uma firmeza desconcertante.
Com essa mesma habilidade, o diretor apoia-se todo tempo em uma condução generosa, transparecendo não apenas a confiança nos
atores como também a aposta na criação coletiva. Essa busca de autenticidade chega a
criar trechos com evidente sintoma de improviso nos diálogos, como na
cena da conversa de um grupo de mulheres em um baile “de terceira idade”, filha
legítima do Neorealismo italiano, ou da Nouvelle Vague francesa. Esta, por
sinal, também parece legar à narrativa uma breve, mas poderosa sequência de
cortes secos, mostrando Clara sozinha em seu apartamento, como reforço à ideia
de que o fato de estar ali, sozinha, não significa letargia ou tédio, já que
seu espírito não se contém diante do conflito maior – e dos menores – com que
tem de lidar.
Chegando ao terceiro e instigante capítulo, “O câncer de
Clara”, o roteiro desconstrói o aparente controle do espectador sobre aquela
obra em três atos, e aqui retomo o parêntesis do início. No lugar de um
desfecho conformista e eventualmente esperado para a vida de uma mulher
sexagenária, a história vai ganhando uma tensão cada vez mais aguda. Prolongando
o suspense em perfeita tradição hitchcockiana, a trama se apoia em diversos
elementos que não apenas justificam como tornam praticamente inevitável o gesto
final da protagonista. E é digno de aplauso o recurso engendrado pelo
roteirista/diretor de contar sem mostrar, sugerir sem explicitar, um Polanski
pernambucano parindo um bebê demoníaco cheio de vida nauseante em plena praia
de Boa Viagem.
Protesto em Cannes: "Aquarius" tem lado |
Clara, a mulher aparentemente apegada ao passado, é
também a mente mais transgressora de toda a trama, seja pela maneira
como assimila as mudanças do mundo ou pela forma como lida com a própria
sexualidade e com a incompreensão estúpida ou ingênua sobre ela, dos homens que
a cercam. A assimilação do novo é extraordinariamente exposta na sequência em
que Clara explica a uma repórter como se relaciona às várias mídias de música
do presente. O semblante pouco inteligente da jovem jornalista deixa evidente
que ela não entendeu nada do contexto que a veterana colega expôs. Caberá à repórter um mero
esforço para enquadrar a antiga crítica em uma frase-manchete que certamente já
saiu escrita da redação, antes sequer de ser feita a entrevista.
Mas é no embate com o jovem administrador de empresas Diego (Humberto Carrão), o maior antagonista da trama, que Clara dá voz ao discurso
mais forte, resistente e contundente de “Aquarius”. Aquele velho edifício, que por força do
dinheiro vira literalmente uma suruba e ao mesmo tempo um ninho de evangélicos,
cabe como metáfora do Brasil atual, sempre e ainda dominado por oligarquias que
só enxergam seus próprios interesses, agindo de forma diametralmente oposta aos
gestos empáticos de Clara. Um autêntico câncer corrói “Aquarius” – o edifício e
o Brasil – e não deixa de ser melancolicamente tocante supor que “o país do
futuro” possa continuar sendo tão mais “casa grande & senzala” do que “era
de Aquarius” como, há quase 50 anos, a jovem Sonia Braga, nua em cima do palco,
ousou sonhar.