Thursday, November 22, 2018

As viúvas: quem roubou de quem?

Viola Davis (Veronica): "mulher é o crioulo do mundo"

Em sua essência, “As viúvas”, novo longa-metragem dirigido por Steve McQueen, de “Doze anos de escravidão”, é um filme sobre um grande roubo. Circundando o tema principal, “As viúvas” às vezes tangencia e, em outras, mergulha tão fundo em tantos assuntos que talvez seja mais correto afirmar que se trata de um filme sobre racismo, machismo, violência doméstica, xenofobia, classismo, lugar de fala, corrupção e sororidade, tendo, como pano de fundo, os planos para um grande roubo, e o roubo em si.

Na sequência de abertura, “As viúvas” mostra os personagens Veronica (Viola Davis) e Harry Rawlings (Liam Neeson) se beijando, deitados na cama. A cena é cortada por sequências de homens fugindo em uma van, durante um roubo. Além das cenas de intimidade desse casal, a abertura também mostra sequências de outros três casais em seus cotidianos, deixando claro que aqueles eram os homens que seriam mortos durante uma operação criminosa, e elas, suas viúvas.

Ambientado em Chicago, o filme desenvolve a trama dessas mulheres no contexto de uma eleição municipal, que contrapõe os personagens Jack Mulligan (Colin Farell), sucessor político de seu pai, Tom Mulligan (Robert Duvall), e Jamal Manning (Brian Tyree Henry), que tenta ser o primeiro vereador negro eleito no distrito. Manning, que logo se mostra conectado a ações ilícitas, como evidencia sua relação com o sobrinho Jatemme (Daniel Kaluuya), pressiona Veronica após a morte do marido, que era o chefe do bando, exigindo que ela termine a tarefa não concluída pela quadrilha. Ameaçada, ela convoca as outras viúvas para cumprir a tarefa.

Viola Davis e Colin Farell

 Para contar essa história, com uma daquelas revelações surpreendentes quase no final, McQueen apoia-se em um roteiro, do qual é coautor, baseado no livro “Widows”, de Lynda La Plante. Transitando em dois mundos muito distintos – o dos brancos e o dos negros – o diretor diferencia esses universos por meio de símbolos visuais e sonoros inequívocos: o comitê espartano do candidato negro versus o equivalente luxuoso do político branco; o rap dos negros, o cool jazz dos brancos.

No entanto, para mostrar que aqueles universos aparentemente tão distantes conviviam praticamente na mesma vizinhança, McQueen lança mão de um plano sequência que registra uma viagem de carro, paradoxalmente conduzida pelo lado de fora do veículo. Enquanto se ouvem as vozes de Jack Mulligan e de sua assessora, de dentro do carro, a câmera passeia pelos bairros de Chicago, saindo do desprovido distrito pobre, habitat dos negros, para rapidamente chegar ao endereço elegante dos brancos, com suas casas sofisticadas, cercadas por grades.

É na personagem Veronica, no entanto, que reside a interseção dos dois mundos, como uma afronta àquela divisão. Veronica é uma mulher negra e rica, altiva em uma condição sócio-econômica que logo se revela frágil. Não tão frágil, no entanto, quanto seu próprio espírito, indelevelmente marcado por uma tragédia, revelada nos minutos finais do filme, cuja origem não foi outra senão o racismo. Há outro personagem, o reverendo Wheeler (Jon Michael Hill), um pastor negro protestante, que também transita entre os dois mundos. Em um sermão com frases como “Hoje, a ignorância é a normalidade, ou melhor, é a excelência”, Wheeler tem o salvo-conduto de ser reconhecido como um líder de espíritos, mentes e votos. Por isso, tem o respeito que Veronica não desfruta nem entre negros, muito menos junto aos brancos.

Basicamente, porque “a mulher é o crioulo do mundo”, como já cantava John Lennon. O que dizer, então, quando a mulher é negra? No contato com as viúvas que arregimenta para terminar o serviço dos maridos, Veronica se porta como chefe. Mas é notável que acabe funcionando como trampolim para a dignidade da jovem viúva Alice (Elizabeth Debicki), uma loira de origem polonesa e aparência frágil que apanhava do marido e era humilhada pela própria mãe. A primeira vez em que Alice consegue levantar a voz não se dá em uma discussão com o marido agressor, na conversa cercada de hipocrisia com a mãe ou nos encontros com o novo e egoísta namorado, mas com a mulher negra que a confronta, mostrando que os esforços de sororidade ainda precisam transpor muitas barreiras de racismo depositadas ao longo dos séculos.

Michelle Rodriguez e Elizabeth Debicki

Tão arraigada permanece a questão da cor da pele que Alice, já revestida de uma coragem provavelmente inédita em sua vida, não tem dificuldade para cumprir a tarefa de comprar armas de fogo para o grupo, provocando a empatia de uma típica mulher e mãe norte-americana. Fingindo-se uma esposa ameaçada pelo marido (sabemos onde ela se inspirou para compor a história), Alice sensibiliza a mulher acompanhada de sua filha a orientá-la sobre quais revólveres escolher. Diante da frase candidamente repetida pela menina (“Mamãe, você sempre diz que a arma é a melhor amiga de uma mulher”), o trio mostra que a sororidade, de fato, existe, mas prolifera melhor entre iguais no tom de pele.

Contudo, o filme de McQueen não se contém nas dualidades entre negros e brancos, inserindo-se nas sutilezas de confrontos de outras naturezas. Imersa em conceitos abertamente racistas e xenófobos, uma conversa entre o velho Tom Mulligan e seu filho Jack mostra que há embate também no aspecto geracional. “Não vamos perder esta cidade para pessoas que vieram para cá ilegais e que não param de ter filhos”, diz Tom a certa altura, diante da evidente falta de traquejo político do sucessor. No entanto, ainda que o conflito crie uma relação crispada de ressentimentos e frustrações, ele não parece pujante o suficiente para mobilizar revoluções, deixando claro que a cartilha continuará sendo seguida, menos por crença, e muito mais pela normalidade que oferece, algo que se reforça em uma pergunta do velho: “mudar as coisas para quê?”

É admirável que a história ainda consiga se debruçar sobre questões como a misoginia e até o lugar de fala. A máscara de brinquedo da filha de uma das personagens inspira as mulheres a transformarem suas vozes no momento crucial da tarefa. Estariam elas disfarçando suas identidades ou emprestando um tom masculino às próprias vozes, como busca desesperada por respeito? E como não se sensibilizar com o comício do candidato branco que chama ao palanque mulheres negras para dar testemunho de seus empreendimentos, facilitados por brancos, em um discurso proferido apenas e unicamente pelo homem branco da cena?

Agudo na construção de seus personagens e conflitos, “As viúvas” é um exemplar filme “de roubo”, mas, ao final, é impossível não ter a convicção de que aquelas mulheres (todas as mulheres?) foram e continuam sendo roubadas nos que lhes é mais caro: a dignidade.