
Conheci Dinho Leme há cerca de quinze anos, quando eu trabalhava na editoria de Esporte da Folha de S. Paulo e ele era assessor de imprensa de alguns pilotos, entre eles, Rubens Barrichello. Assim que recebi os primeiros releases assinados por ele, perguntei a meu então editor, Flavio Gomes, se aquele Dinho Leme por acaso era o baterista dos Mutantes. “Ele mesmo, é irmão do Reginaldo.” Então conheci o Dinho pessoalmente, passei a cruzar com ele nas corridas, viramos chapas. Dinho trabalhava com Fátima Paiva, outra habitué dos autódromos. Uma noite, saímos para bater papo, eu, Luiz Alberto Pandini, então repórter do Jornal da Tarde, Dinho e Fátima, e só então, alguns meses depois de conhecê-lo, tive coragem de levar um vinil dos Mutantes para que ele autografasse. Era estranho fazer isso, não exatamente por constrangimento, mas porque eu não conseguia ver o Dinho como um Mutante, mas como um assessor de imprensa amigo, companheiro de pistas e salas de imprensa. “Mutantes e seus Cometas no País dos Baurets” ganhou a assinatura do baterista em uma das mesas do Ritz, barzinho bacana dos Jardins, em São Paulo. Ta lá na contracapa: “vinte anos depois, que barato”.
Trinta e cinco anos depois, um barato em meio. Dinho Leme está de volta aos Mutantes. Ou melhor, os Mutantes estão de volta. Em um dos primeiros posts deste blog, saudei a volta dos Mutantes às prateleiras, com seus CDs originais remasterizados. Poucos meses depois, os “velhos” resolveram se juntar de verdade, reeditando a formação quase original, para um show em Londres. Dinho acumulou as funções de assessor de imprensa com as de artista pé na estrada. Depois da Inglaterra, os Estados Unidos. E eu na fila para vê-lo pessoalmente, depois de quase dois anos de nosso último encontro. E finalmente aconteceu na última quarta-feira, em um almoço de quatro horas e exatas quatro garrafas de vinho. Reeditamos o encontro do Ritz, desta vez no Café Journal e acrescido da companhia de outro querido amigo, o também jornalista Luiz Fernando Ramos, o Ico, que como eu não tem idade para ter visto os Mutantes originais, mas com a sorte de ter presenciado a volta histórica do grupo em Londres. No dia seguinte, comentei com o Ico como essa conversa com o Dinho Leme baterista dos Mutantes foi diferente de todas as que tive com ele antes. Ico registrou o mesmo estranhamento no show do Barbican. Não parecia o Dinho que a gente conhece, era outro. Em suma, um mutante.
Algumas passagens deste almoço recente estão relatadas a seguir. A conversa não foi gravada, mas Dinho entendeu meu interesse de amiga jornalista e me brindou com histórias e reminiscências. Foi um daqueles encontros inesquecíveis e justamente por misturar tantos fatos e emoções, não relato com o viés frio de repórter que só observa. Sente-se, encha o copo e deixe o som rolar.
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Não pergunte datas para Dinho Leme. É mais fácil que um fã saiba precisar a ordem dos discos gravados pelos Mutantes, os anos das apresentações nos festivais do que esperar do baterista do grupo qualquer exatidão do gênero. Isso costuma acontecer também com os atletas e tem uma explicação lógica: para o fã, aquela apresentação, aquele jogo xis é um marco histórico; para o artista, ou o atleta, é como um dia a mais de trabalho. Você não se lembra de todos os seus dias no escritório, lembra? Então, não se meta a achar que o artista tem de lembrar.
Mas ele é capaz de lembrar a gênese de seu interesse por música. O pai. Tocava uma gaita complicadíssima em Rancharia, interior de São Paulo, onde Dinho, nascido em Campo Grande, cresceu. Menino, Dinho ouvia o pai tirar standards consagrados pela orquestra de Glen Miller em sua gaita. E ouvia discos do mesmo estilo em casa. A influência do pai se manifestou no primeiro instrumento escolhido, um de sopro – trompete. “Eu comia goiaba verde para ajudar a calejar o lábio.” Os primeiros discos comprados por conta própria eram sucessos da parada. Um, em especial, foi mais marcante – Earl Grant.
A afinidade com a bateria começou, veja só, com a Bossa Nova. Bateria tocada com escovinha, logo despontando os primeiros ídolos – Rubinho, do Zimbo Trio, e o carioca Edison Machado. Um salto no tempo. Final dos anos 60, começo dos 70, sei lá, Dinho não se liga em datas, lembra? A Rede Globo convida bateristas de várias idades e estilos diferentes para um especial.
O baterista dos Mutantes chega para a gravação e dá de cara com Edison Machado. A emoção de tocar com o ídolo logo perdeu terreno para a preocupação. Edison não estava bem, parecia alterado, não tocou legal. Acabado o programa, cada um para um lado, e Edison lá, meio caído, meio esquecido, bem mal. Dinho colocou-o no carro, cruzou o Rio de Janeiro de algum ponto longínquo da Zona Oeste, local da gravação, até a casa do velho mestre, na Zona Sul. Literalmente, carregou-o até chegar ao apartamento, deixou-o deitado e foi embora, ainda duvidando que tinha levado nos ombros Edison Machado, seu ídolo.
Outro salto no tempo. Dinho e o pai, litoral norte de São Paulo. Um mercadinho para abastecer a casa da praia. O vendeiro vai embrulhando mercadorias com jornais velhos e Dinho se vê diante de uma notícia bruta, ali no balcão. Morre Edison Machado. “Voltei com meu pai para Paúba, ele ia falando no carro, não consegui prestar atenção. Só lembrava no Edison Machado morto, e do dia que carreguei o cara até sua casa.”
Mas então, peraí, como foi que um admirador de Bossa Nova se tornou baterista do grupo de rock mais famoso da história do Brasil? Ah, mas aí vieram os bailes, e os Beatles. Antes de vir para São Paulo, Dinho começou a tocar em bailes no interior, já devidamente acomodado no fundo do palco, porque a história do trompete, nem com muita goiaba verde, foi para frente. E em baile, a gente sabe, toca-se de tudo. Quando chegou à capital, Dinho já tinha larga experiência em um repertório variado, por isso acabou escalado para acompanhar Ronnie Von, o “príncipe” daqueles anos 60 da TV Record. A ponte foi direta e curta: Ronnie foi quem “inventou” o nome Mutantes, inspirado em um livro de ficção científica que estava lendo na época e que ele achou bem interessante para o trio formado pelos dois irmãos Batista e por Rita Lee. Dinho não foi imediatamente incorporado ao grupo, tanto que não tocou na histórica apresentação dos Mutantes junto com Gilberto Gil, no III Festival da Record, com “Domingo no Parque”. Logo depois, no entanto, virou um mutante.
A volta dos Mutantes, apesar de festejada pelo público e badalada pela mídia, tem criado situações complicadas para Dinho, Arnaldo e Sergio. Porque falar da volta dos Mutantes passa forçosamente pelo fim dos Mutantes, pela saída de Rita Lee do grupo, pelas feridas abertas por tudo isso. Passa pelas recentes declarações desagradáveis de Rita Lee em relação ao revival, e remonta às tentativas anteriores, que não deram certo. Uma delas, inclusive, capitaneada pela própria Rita, que um dia ligou para Dinho, ficou cinqüenta minutos no telefone falando do projeto, que não rolou.
Dinho não se recusa a falar do tema, mas diz que, mais de trinta anos depois, de fato não sabe bem o que aconteceu. Rita passou anos dizendo que tinha sido expulsa dos Mutantes. Os Mutantes sempre negaram. Até que um dia, no presente vivíssimo dessa volta, Arnaldo disse que falou mesmo para ela sair, pegando Dinho e Sergio no contrapé durante uma das muitas entrevistas concedidas na época do lançamento do DVD. “Acho que foi briga de marido e mulher, apimentada por executivo de gravadora que já queria lançar a Rita como artista solo, e porque o grupo, uma hora, ia mesmo acabar.”
Acabou e acabou mesmo para Dinho. Ele ainda tocou em algumas produções, começou a virar produtor de eventos, lançou um jornal sobre automobilismo, tornou-se assessor de imprensa e nunca, nunca, nunca mais tocou bateria. A filha Joana, de 25 anos, nunca tinha visto Dinho tocar. Na trepidante volta dos Mutantes, a Câmara dos Vereadores de São Paulo, por iniciativa do vereador Carlos Giannazi, do Psol, homenageou Arnaldo, Sergio e Dinho pela relevância artística e histórica do grupo. O público foi tanto que uma sala não bastou para acomodar a multidão de seguidores. Fãs de outrora reverenciavam o trio, devidamente engravatado para a ocasião solene, enquanto uma concentração expressiva de jovens se aglomerava para conhecer os gurus ao vivo.
Sergio, o maior porta-voz do grupo e, no fundo, o curador da obra dos Mutantes, diz e repete que foi a concordância de Dinho Leme a responsável pela volta do grupo. Nas primeiras conversas, ainda reticente, Dinho alegava o longo afastamento da música como razão para continuar distante. Mas Sergio insistiu e chamou Dinho para tocar em sua casa, na Granja Viana (grande São Paulo). Na primeira vez, Dinho foi, achou legal, mas não quis tocar. “Por quê?” Sei lá, nada a ver. Voltou lá algumas vezes e resolveu encarar. “Tudo bem, eu topo, mas não sei até onde vou, vamos ver.” Sergio literalmente diz: “Quando o Dinho topou, eu senti que os Mutantes tinham voltado.”
Dinho não sabe explicar porque desta vez deu certo, e não das outras. “Mágica, agora tinha que ser, algo assim.” O assessor de imprensa voltou a praticar bateria. Com fones de ouvido, gasta horas estudando os arranjos, reinventando o fraseado da bateria, reconstituindo algumas coisas, criando outras. A bateria está no escritório, o mesmo de onde atende seus clientes pilotos, faz a assessoria de imprensa da Fórmula Truck e onde funciona a redação do anuário AutoMotor, que ele edita com o irmão Reginaldo Leme.
Joana nunca tinha visto o pai tocar, viu no mesmo dia da homenagem na Câmara dos Vereadores. Seu filho Tiê, de dois anos, gostou do brinquedo novo do avô. Subiu no banquinho e desceu o braço, com um estilo heavy metal que ninguém sabe de onde veio. Genes adormecidos, talvez.