Não sei dizer quantas
epifanias e catarses o cinema, a música, o teatro e a literatura já produziram
na minha vida. Todas, de alguma forma, me recolocaram no trilho da sanidade
mental, embora eu muitas vezes só tenha percebido isso muitos anos depois. Eu
achava graça por ter chorado tanto em “Dumbo”, na cena em que o filhote de
elefante é separado da mãe, e só depois associei aquele choro como uma resposta
elaborada ao ciúme que o nascimento do meu irmão gerou em mim.
Às portas da adolescência, fui assistir ao musical “Aí vem o
dilúvio” e fiquei obcecada pela peça, em especial por uma cena na qual os
personagens formavam casais que tinham por missão repovoar a Terra. “Bela noite
sem sono...” era um dos versos da canção e, novamente, apenas muitos anos
depois eu entendi que a sensualidade delicada daquele momento explicou a mim a
ebulição de hormônios que eu experimentava – e estranhava. E me pacificou.
Nunca deixou de ser assim. “Cem Anos de Solidão”,“Central do
Brasil”, um show extemporâneo dos Mutantes, “Pina”, “Ela”, para citar apenas
alguns. De fato, acho que nunca vivi um ano sem que alguma obra de arte fizesse
o favor de me colocar no prumo, ou me convulsionar a ponto de repensar as
escolhas e o rumo da minha vida. E sempre me sinto um pouco constrangida com
isso, porque entendo arte como entidade inútil, no sentido de ter fim em si
mesma. Utilizá-la para alguma coisa, ainda que em nível moral, mental,
espiritual, soa a mim como profanação.
E hoje essa tarefa coube ao filme “Ponto Zero”, do diretor José
Pedro Goulart.
Na sexta-feira passada, comentei brevemente com a minha mãe
que não conseguia pensar no estupro coletivo da garota carioca sem ter vontade
de chorar. Não era verdade. Cada vez que lia ou escutava algum fato relativo a
esse crime, eu não tinha vontade de chorar. Eu sentia angústia, raiva, nojo.
Mas lágrima nenhuma descia.
Sintomaticamente, desenvolvi em dois dias uma série de
reações físicas a esse conjunto de sentimentos. Uma crise de
alergia congestionou minhas vias aéreas superiores. A cabeça pesava e doía,
evoluindo durante o dia até virar enxaqueca. Crises de tosse irrompiam sem
aviso e me paralisavam a fala. Para coroar, uma afta do tamanho de uma couve-flor
deixou meu lábio com o indesejável aspecto de uma aplicação de botox assimétrica.
Fui ver “Ponto Zero” quase num voo às cegas, com
pouquíssimas referências. A beleza da cena de abertura vale pelo filme todo, e
sua retomada no final, ainda que não viesse carregada de simbolismo, seria
justificada plenamente apenas pela questão estética. Acho até que o filme
carrega demais nos simbolismos, alguns meio óbvios, como carros andando de
marcha à ré, mas nunca vou deixar de ser grata a ele, pela perturbadora sequência
de cenas sob a chuva que ocupa boa parte do trecho final.
Além de belíssimas, e de incluir uma dos meus maiores
objetos de fascínio no cinema – planos-sequência – as cenas de chuva provocaram
uma reação física inequívoca em mim. Chorei. Não, o filme não era especialmente
triste, nem esta sequência, carregada de referências a morte e renascimento,
tinha algo de triste. Era um rito de passagem do personagem central, mas
funcionou como catarse genuína para mim. Três dias depois da notícia do estupro,
de pelejar com o peso da cabeça, com o incômodo da alergia, com a afta e com o
nó no peito, “Ponto Zero” parecia ter puxado a tampa do meu ralo. Chorei os
oito quilômetros que separam o cinema da minha casa. A cabeça não dói mais,
estou respirando bem, a afta drenou, aquela dor entre as costelas sumiu.
A arte foi o que de melhor nossa espécie medíocre produziu
neste planeta e vou continuar usando-a como tábua de salvação. Bom para mim.
Mas, e a menina?
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