Se “viver é desenhar sem borracha”, como disse Millôr
Fernandes, a arte ignora esse fatalismo. Qualquer forma de narrativa, literária
ou audiovisual, permite contar o mesmo fato de maneiras diferentes, inclusive
movendo elementos que modifiquem essencialmente a própria história. O filme
sul-coreano “Certo agora, errado antes” faz isso de uma maneira desconcertante.
À primeira vista, é uma história de amor, ou de mera atração,
entre um consagrador diretor de filmes “de arte” e uma artista plástica
iniciante. Tudo o que dá errado na primeira parte do filme (“errado antes”)
transforma-se com o movimento de uma única peça – uma informação fundamental
sobre a vida do diretor. E é a segunda parte do filme, quando a história é
recontada acrescida dessa informação, que o filme se revela bem mais que uma
história de amor.
A simplicidade que o diretor Sang-soo Hong imprime a cada
cena logo parece deixar clara a intenção da obra: contar uma história. As cenas
são gravadas sempre com uma única câmera, muitas vezes fixa. O recurso do zoom,
que surge esporadicamente, pode soar anacrônico, quase pueril, lembrando o
movimento de câmera dos antigos filmes de lutas marciais. Aqui, no entanto, ele
parece empregado apenas para captar mais de perto a expressão facial dos
protagonistas e, aos poucos, vai deixando o espectador mais próximo daquela
história e mais íntimo daquelas pessoas.
Ao acrescentar a informação essencial à história, na segunda
parte (“certo agora”), Sang-soo Hong não apenas dá outro rumo à trama de
amor/atração entre o diretor e a artista plástica. Ele redimensiona ambos e, ao
fazer isso, propõe uma discussão que faz eco na própria arte.
Nesse momento, o personagem do
diretor humaniza-se, deixa de ser “o famoso diretor Ham Cheon-soo”, cultuado como
gênio, para ser apenas um ser humano sujeito a beber demais, e a falar demais,
e a dar vexame.
A artista plástica e o cineasta, no ateliê: discussão essencial |
Sob esse prisma, duas sequências deixam claro que a intenção
de Sang-soo Hong, ao contrário da primeira impressão, não era apenas contar uma
história de amor/atração, mas generosamente colocar a própria arte em discussão.
Os diálogos entre o diretor e a artista plástica, no ateliê dela, antes e
depois, revelam essa revisão. No segundo momento, é lapidar uma resposta da
moça à suposição de que sua pintura era uma forma de fugir da solidão. “Não,
quando eu quiser fazer isso, eu vou procurar um cara legal.”
A segunda passagem é a relação do diretor com um crítico
local, responsável pela mediação de uma palestra sobre a obra do cineasta. No
momento “errado” da história, o diretor sente-se agredido pelas perguntas do crítico,
nitidamente sentindo-se aviltado. Seu estado de espírito – preso ao pedestal –
parece agir contra uma interlocução franca e construtiva com quem quer que
seja. Na recontagem da história, despido da faceta de mito infalível, o diretor
surge relaxado e aparentemente feliz, em ver sua obra discutida e valorizada em
um ambiente de pessoas interessadas no que ele tem a dizer.
Depois de descer do pedestal, com a simples admissão de uma verdade essencial, ele parece tornar sua própria arte mais verdadeira e mais propícia a atrair, enlevar, agradar ou simplesmente provocar a reflexão em quem tiver contato com ela.A cena final, cercada de afeto e compreensão, faz a
ponte definitiva entre aquele casal improvável. Não seriam, afinal, suas vidas
distantes que os uniriam, mas a arte.
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