Estou disfarçando, mas
não está fácil viver em um país em que uma moça é estuprada por 30 e um “ministro”
recebe um apologista do estupro.
Escrevi esta frase no Twitter, na tarde desta quinta-feira.
Algumas pessoas começaram a reproduzi-la, até que ela chegou a alguns
formadores de opinião da rede social, desses que têm dezenas de milhares de
seguidores, que também reproduziram. Muitas horas depois, continuo escutando o
sinal no celular, dando conta de que alguém a está curtindo ou compartilhando.
Não é ruim a sensação de perceber que não estou sozinha na minha indignação.
Mas o sentimento de empatia não preenche a tristeza que continuo sentindo com
tudo isso.
A um desses grandes formadores de opinião que reproduziram
minha frase, o neurocientista e professor Miguel Nicolelis, respondi com uma
pergunta direta: manifestar-se é pouco, indignar-se é pouco – o que fazer? Ele
respondeu que a saída é investir em educação com cidadania. Claro, a resposta
honesta a essa pergunta não pode supor uma ação cirúrgica pontual, que extirpe
a cultura do estupro da nossa sociedade. A mudança virá com o tempo. Mas, e até
lá?
Quando digo que não está fácil viver nessa sociedade, não
estou usando de retórica. Sou mulher e sinto ecos dessa cultura no meu dia.
Quando vou sozinha ao cinema e noto olhares de estranhamento pela minha
ausência de companhia. Quando dirijo meu carro sozinha, à noite, e me forço a
continuar olhando para a frente, impassível, porque o condutor do carro ao lado
acha que o fato de estar desacompanhada funciona como senha para eu ser
assediada.
Eu poderia continuar enumerando as situações desagradáveis
que uma mulher como eu enfrenta cotidianamente, e elas vão desde irrelevantes
dissabores, como o garçom que entrega a conta para meu filho de quinze anos, supondo
sempre que o homem da mesa vai pagar a despesa, até grandes inquietações de
ordem moral, como embotar minha própria sexualidade enquanto não tiver certeza
de que poderei expor isso para um interlocutor civilizado, que não vai me
classificar como vagabunda.
(Aliás, cabe aqui uma breve reflexão sobre o emprego das
palavras vagabundo e vagabunda, na nossa sociedade. Vagabundo é o homem que não
trabalha. Vagabunda, a mulher que transa com quem quiser, ou com qualquer um,
ou com muitos. O defeito, no homem, é não prover, pecado venial em sua
existência. O da mulher, fazer o que quiser do seu corpo, pecado mortal.)
Mas, na fila dos oprimidos, estou em penúltimo lugar. Sou
mulher, branca, com nível superior de escolaridade, tenho casa própria, carro,
dois aparelhos de TV em casa. Acho que são esses itens que definem um cidadão
de classe A no Brasil. Atrás, na fila da opressão, apenas os homens iguais a
mim. À nossa frente, os homens pobres, os homens pretos, os homens pretos e
pobres, as mulheres pobres, as mulheres pretas, as mulheres pretas e pobres.
Olham estranho para mim no cinema? O filme não ficará pior
nem melhor por isso. O macho alfa do carro ao lado está lançando olhares
lascivos em minha direção? Daqui a pouco, o farol abre. O garçom acha que meu
filho é o provedor? Ele está repetindo um gesto ancestral e, afinal, muitos
homens ainda fazem questão de pagar a conta, e algumas mulheres aceitam isso. O
cara se escandalizou com minha franqueza na abordagem? Valeria menos que um
cinema, com filme ruim.
Eu estou muito, mas muito menos vulnerável à violência de um
estupro que a moça da favela, isso é fato. Mas nem por isso vou me sentir menos
agredida do que me senti hoje. O fato de estar mais resguardada, na prática,
não me protege da agressão de saber que uma semelhante a mim foi violentada por
mais de trinta homens. Nem de encontrar opiniões que culpam a vítima pelo crime
que ela sofreu.
Regras para namorar minha filha: 1 - Eu não faço as regras, 2 - Você não faz as regras, 3 - Ela faz as regras, 4 - O corpo é dela, as regras são dela |
Na prática, o que posso apresentar como contribuição à
mudança dessa cultura do estupro? O fato de estar criando um jovem para que ele
respeite as mulheres como donas de seus corpos, e tudo o que isso significa em
termos de aproximação, abordagem e envolvimento? Sinceramente, isso é minha
obrigação como mãe.
Mas sinto que há algo positivo nascendo dessa tragédia que
hoje chegou a nós. Esta é uma causa política. Já há eventos programados para os
próximos dias, de protesto e discussão sobre a condição da mulher. Vá a algum
deles, engaje-se, manifeste-se. Acho que poucos brasileiros mentalmente sãos,
hoje, seriam capazes de afirmar que a nossa sociedade não naufragou. E a nossa
sociedade é essencialmente patriarcal, oligárquica, elitista. Despertar – e agir
– contra a cultura do estupro pode ser um começo para romper o monolítico
atraso moral do Brasil.
3 comments:
Excelente texto. A única ressalva, como havia lhe dito, é que na escala da opressão as pessoas trans* aqui no Brasil acabam sendo as que mais sofrem. Boa parte delas, acho que em torno de 90%, ou não conseguem trabalho ou são obrigadas a irem para a prostituição. E são vítimas de violência frequentemente. Inclusive quando não têm nome social respeitado.
Atualmente, a "cultura" do estupro existe sim, NA EUROPA
https://www.youtube.com/watch?v=qkw24H1e0fQ
E as FEMINISTAS de lá QUEREM QUE TUDO CONTINUE ASSIM!
https://www.youtube.com/watch?v=7RM67XCuw6U
Mal sabem elas que estão "cavando sua própria cova"
https://www.youtube.com/watch?v=l4nT1TcifIY
As FEMINISTAS aqui do Brasil estão fazendo esse alarme todo SÓ porque os acusados são homens ocidentais/brancos/heterossexuais.
De qualquer forma, o homem já nasce para ser "descartável", enquanto a mulher nasce para ser uma "semi-deusa":
https://www.youtube.com/watch?v=SN4eJhPUqUo
Sem palavras, Alê. Se eu usasse chapéu, o tiraria.
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