É lamentável, embora não totalmente surpreendente, que “mãe!”,
o mais recente filme escrito e dirigido por Darren Aronofsky, tenha sido
recebido com vaias em sua estreia no Festival de Veneza. Também não surpreende
que o primeiro final de semana de exibição, nos Estados Unidos, tenha sido decepcionante
(arrecadou 7,5 milhões de dólares contra 60 milhões de “It – A Coisa”). “mãe!”
só será digerido e eventualmente admirado se o espectador compreender que praticamente
tudo o que está na tela é alegoria, não representação real. O que, convenhamos,
é um exercício pouco habitual para a maior parte das plateias.
A própria sinopse já revela o nonsense: o casal
formado por um poeta em bloqueio criativo (Javier Bardem) e sua esposa
(Jennifer Lawrence) mora em uma casa isolada que, certa noite, recebe a visita
de um homem desconhecido (Ed Harris). Mesmo sem saber de quem se trata, o poeta
convida o homem a pernoitar em sua casa para, na manhã seguinte, receber a
esposa desse estranho visitante (Michelle Pfeiffer). A relação entre os dois casais,
a chegada de dois filhos dos visitantes e eventos que incluem violência e morte
tencionam a relação entre o poeta e sua esposa, que se descobre grávida. O
desenrolar da gestação ocorre em paralelo à volta do poeta à ativa, e a
história se encaminha para seu desfecho com o nascimento do filho e o
lançamento do novo poema.
Ir além na descrição da história é impossível sem entregar
pontos-chave da trama, algo que só vai estar presente na segunda parte deste
texto, com alerta de spoilers. Também parece coerente certa decepção da plateia
em relação a “mãe!” partindo-se do trailer divulgado nas semanas anteriores ao
lançamento, que apresentava o filme como uma espécie de “O bebê de Rosemary”
revisitado. Os dois filmes, de fato, têm alguns pontos em comum, mas não a
ponto de “mãe!” poder ser considerado uma releitura do filme de Roman Polansky.
Do ponto de vista cinematográfico, “mãe!” oferece diversos
elementos que reforçam a capacidade criativa de Aronofsky, criador de “Cisne
Negro”, “O Lutador”, “Réquiem para um sonho”, entre outros. Estruturado quase
como uma peça de teatro, inclusive nas interpretações, o novo filme exala
claustrofobia em suas primeiras sequências. Imagens em primeiríssimo plano,
fechadas nos rostos dos personagens, acentuam a sensação de aprisionamento.
Praticamente sem trilha sonora em seus primeiros dois atos,
o filme tem design sonoro preciso, utilizando sons, como de objetos caindo ou
se quebrando (recorrentes no filme) como marcadores de ritmo e criadores de
tensão. À medida que o filme avança para seu segundo ato, os planos começam a
se tornar menos fechados e a câmera, mais ágil. A cena da briga entre os filhos
do casal Ed Harris-Michelle Pfeiffer injeta energia no ambiente sem abandonar o
caráter onírico que permeia praticamente todo o filme.
Não é à toa que os personagens sejam aqui descritos sem
nomes, já que é desta forma que eles se apresentam todo o tempo, algo que pode
ser visto como chave para a interpretação daquela história aparentemente sem
nexo. Nesse ambiente impessoal, no entanto, a composição dos dois personagens
centrais – o poeta e sua musa – é irrepreensível, tanto do ponto de vista de
interpretação quanto de direção. Mais que isso: o roteiro de Aronofsky oferece
todos os gatilhos para que o espectador rapidamente se identifique e entenda as
motivações de ambos, chegando ao final da história completamente envolvido por
aquele casal. Se – e somente se – entender a grande alegoria desfiada em
situações tão exóticas nos 121 minutos de filme.
Mãe! – uma
interpretação, com spoilers
"mãe!" é uma obra aberta como poucas têm surgido no cinema
norte-americano nos últimos tempos. A interpretação a seguir é uma
possibilidade, a partir de percepções subjetivas, e o define como uma alegoria do artista em seu processo criativo.
Mas parece evidente que o balaio de “mãe!” comporta múltiplas visões, que têm
se estendido por temas tão diversos quanto ecologia (a “mãe” feita por Lawrence
como representação do planeta Terra) a intolerância religiosa.
Em uma das primeiras cenas, o personagem de Javier
Bardem aparece segurando uma pedra, logo identificada como preciosa, pelo lugar
de destaque que ela passa a ocupar em um nicho da sua estante. Também nas
primeiras sequências, o filme introduz a figura da esposa do personagem,
Jennifer Lawrence, a todo instante definida por ele como sua “musa”.
Para além da relação de um casal, o filme ganha muito mais sentido se for percebido
como um momento na vida de um artista no qual ele se encontra em bloqueio
criativo e dialoga com suas referências e fantasmas. Sob essa perspectiva, tudo
o que se vê na tela é a mente desse artista debatendo-se com elementos
afetivos, sociais, sexuais, históricos, religiosos (o fogo, o inferno, a culpa,
o apocalipse, está tudo lá) – formadores de sua obra – e agarrando-se ao
aspecto aparentemente mais frágil, intocado e etéreo de todos – sua inspiração.
A personagem de Jennifer Lawrence não seria, sob essa perspectiva, a esposa do
poeta que dá à luz seu filho, mas a inspiração que lhe permite gerar e parir
novas obras.
Isolado do mundo, cultivando sua inspiração, o poeta sabe-se
impotente diante da prevalência de tudo que já habitou sua história. O homem
moribundo que lhe bate à porta (Ed Harris) surgiria como a figura do pai – o
seu próprio pai, ou ele mesmo, como pai/criador de sua obra. A morte iminente
do visitante, uma representação da finitude de sua existência.
A esposa desse homem (Michelle Pfeiffer), uma síntese de
figuras femininas, misturando a altivez de uma mãe dominadora com a
sensualidade de uma mulher plena, quase cruel. Enxergando o personagem de
Bardem como um artista/poeta, é quase lógico enxergar nessa visão a fragilidade
de um ser sensível diante de uma figura que transpareça, ao mesmo tempo, segurança
e provocação, ternura e luxúria.
Os filhos deste casal – Caim e Abel redivivos – o símbolo de
uma fraternidade que se autodestrói, podendo ser ao mesmo tempo a humanidade
condenada a seus flagelos, pelo pecado original, ou os produtos da mente do
poeta – seus escritos – duelando pela condição de obra-prima.
É quando se desprende dessa herança primária aprisionadora
que o poeta finalmente entrega-se à inspiração (sua musa) e se deixa fundir com
sua seiva. Fecundada, a musa sabe-se pronta a dar frutos (tanto que já não bebe
a poção amarelo-ouro que parece lhe servir como combustível). Grávida, ela
anuncia que o bebê se moveu em seu ventre. E o poeta confirma: são os primeiros
versos nascendo de sua pena. O filho-poema vai crescendo em ambiente de
aparente paz, ainda que a musa-inspiração se depare, vez ou outra, com sinais
inequívocos de que o ímpeto criativo brota por todos os poros daquela casa-cérebro,
que verte sangue pelas paredes.
Prestes a dar à luz, a musa surge em representação perfeita
de uma deusa grega – e não custa lembrar que o Olimpo contava com nove musas
entre suas divindades. Pressionado por sua editora e por seu público a divulgar
a nova obra, o poeta já não disfarça que talvez sinta tanto prazer e orgulho por
ter escrito o poema quanto por ser idolatrado. Não se furta a deixar que
invadam sua casa-mente para demonstrar sua admiração, sua idolatria, seu
fanatismo, sua cegueira. O bebê-poema que chega ao público cumprirá seu destino
quando for recebido, possuído, consumido pela horda insana.
À musa – produto de sua mente, criada para alimentá-lo com
um amor desmedido (em certo ponto, ela diz: “Você nunca me amou, você amava o
meu amor por você.”) – apenas sobrará o caminho de consumir-se no fogo da
culpa (cristã?) daquela mente. Ela lhe rendeu o diamante que ele lapidou e
transformou em novo poema. Mas ele continuará sangrando o desejo irrefreável de
produzir novamente. Para isso, criará em sua casa em escombros mais um
artifício para alimentar sua alma – outra musa.
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