Thursday, December 28, 2017

Roda Gigante

Kate Winslet: uma Ginny complexa e amoral
Algo pode ser menos sutil do que um salva-vidas tornar-se amante de uma mulher casada e infeliz? Talvez o fato de seu marido trabalhar como mecânico de um carrossel, emulando uma vida que só gira, sem sair do lugar? Se for para enumerar os lugares-comuns de “Roda Gigante”, o mais recente filme de Woody Allen, talvez seja possível preencher vários parágrafos (o personagem-narrador, a trilha sonora composta por clássicos de jazz, o garoto desajustado e, não por acaso, fascinado por cinema). Mas enumerar as obviedades de “Roda Gigante” é um exercício mal-humorado de quem prefere ignorar seus grandes atributos.

O maior deles: Kate Winslet. Desde o lançamento, a personagem Ginny tem sido seguidamente comparada à Blanche DuBois de Vivien Leigh, de “Uma rua chamada pecado”, ou à Jasmine de Cate Blanchett, de “Blue Jasmine”, do mesmo Woody Allen (e o que seria Jasmine senão uma homenagem/releitura da própria Blanche?). Complexa e amoral, Ginny é daquelas pedras brutas que uma atriz como Winslet recebe e transforma em uma personagem indefinível, um misto de fragilidade e astúcia com a qual é impossível não se identificar.

Azul de tristeza: as cores falam em "Roda Gigante"
 Imersa em um cotidiano duro e enfadonho, Ginny trabalha como garçonete em um restaurante na já decadente Coney Island, nos anos 1950. Casada pela segunda vez com Humpty, um sujeito bruto (Jim Belushi) que ganha a vida cuidando do carrossel do parque, Ginny é uma ex-atriz que nunca obteve sucesso, casou-se com um baterista a quem traiu e com quem teve seu único filho, o garoto Richie (Jack Gore), que tem a estranha compulsão de atear fogo em objetos, e gasta o tempo que deveria passar na escola... no cinema. O salva-vidas Mickey (Justin Timberlake) aparece na vida de Ginny e os dois passam a ter um caso, até que ele conhece a filha de Humpty, Carolina (Juno Temple), recém-separada de um gângster, e se apaixona por ela.


Carolina: a enteada
Queixando-se de uma enxaqueca que parece eterna, Ginny tem a expressão torturada pela culpa. Em um cortante monólogo, ela explica como a traição ao primeiro marido desencadeou a série de infortúnios que a jogaram naquele universo. Ou, pelo menos, o que parece ser a explicação lógica para ela de todas as suas mazelas. O texto de Allen, o desempenho de Winslet, a direção, a fotografia e a direção de arte criaram juntos, neste monólogo, uma das sequências mais agudas que uma atriz entregou aos espectadores de cinema nos últimos anos. Ginny laça o espectador de forma tão arrebatadora que não é um risco muito grande acreditar que a plateia torcerá junta, por ela, por mais amoral que ela possa parecer.

“Roda Gigante” é Kate Winslet, e isso não é demérito para o filme. Os demais atores parecem se resignar – ou, antes, se orgulhar – por estar gravitando no mesmo ecossistema daquele monumento de atriz. No entanto, “Roda Gigante” não é só Kate Winslet. É um filme atormentado de Allen, forjado no desencanto das relações humanas e na inexorável certeza de que toda história pode ter algo mais cruel do que um fim: a inércia de continuar.

O apartamento-vitrine, banhado em vermelho: tudo exposto, tudo oculto
As cores dizem muito no novo filme de Allen. A fotografia do parceiro habitual, Vittorio Storaro, sustenta-se quase todo o tempo em um tripé vermelho-azul-amarelo, tons facilmente identificáveis com momentos específicos. Quase sempre em alta saturação, as cores gritam sentimentos e é quase cortante a tristeza de Ginny em certos momentos banhados de azul. Fortemente ancorado no apartamento de Ginny e Humpty, “Roda Gigante” brinca com paradoxos: a casa envidraçada, praticamente uma vitrine dentro do decadente parque, esconde atos terríveis e sentimentos destrutivos. E é muito revelador do moto-contínuo da história que Ginny diga à enteada que o local, antes, costumava abrigar um show de aberrações.

Usando o cenário como mais um objeto de opressão para aquelas tristes figuras, Allen vale-se de planos longos nos quais as colunas, janelas e cortinas da casa marcam as distâncias e barreiras entre os membros daquela família disfuncional onde o pequeno incendiário parece a figura humana mais próxima do saudável.

“Roda Gigante” tem sido apontado como uma alegoria de Allen para sua própria situação afetivo-familiar, desde que assumiu um romance com a enteada Soon-Yi Previn, sua esposa desde 1997. Ainda que uma das falas de Ginny não pudesse ser mais explícita no sentido de acusar Humpty quanto aos reais sentimentos dele por Carolina, parece meio forçado enxergar na trama qualquer auto referência, inclusive porque relacionamentos, amores, traições, desilusões são temas recorrentes na obra de Allen. E enxergar Ginny como resposta misógina de Allen à ex-esposa Mia Farrow, além de forçado, parece incoerente, porque Ginny torna-se tão humana que é impossível não se identificar com ela.

“Roda Gigante” pode não estar à altura de obras-primas de Woody Allen, como “Noivo neurótico, noiva nervosa”, “Hannah e suas irmãs” ou “A era do rádio”, mas a colcha de sentimentos e situações tão cruelmente engendrados na vida de uma pessoa comum, entregue pelo desempenho tão magistral de Kate Winslet, vale cada um dos 101 minutos do filme.

1 comment:

Anonymous said...

Boa tarde.

Assumiu um romance com a enteada... Enteada ? Não era filha adotiva ?
Prá mim, e para muitos, esse 'assumir' tem outro nome, né, Caê Leãozinho ?
E o bicho está pegando pros lados do Woody novamente.
Agora, a filha. Verdadeira... Xiiii...
Triângulo amoroso em Coney Island. Anos 1950. Difícil acontecer algo assim ? Não, nem um pouco. New York, New York, logo ali !
Ainda mais com uma ex-atriz com ligações mafi... estranhas... Um salva vidas pegador, bonitão...
Barra pesada mas mais do mesmo.
Bom, esses dramas 'familiares' fico com o nosso Nelson Rodrigues e seus fantásticos diretores. Entregasse pro Neville d'Almeida, Braz Chediak, até pro Barretão ou Arnaldo Jabor, aí, a Kate Winslet era pule de dez para mais um Oscar ! Pensando bem, sei lá, The Academy é doida mesmo e em bunda de bebê, cabeças de juízes e de cineastas do quadro da Academia podem sair qualquer coisa. E, para falar a verdade, acertam mais que erram. A excelente atriz pode até levar mais uma estatueta mas o filme tá fraquinho, muito fraquinho... E com o Justin Timberlake, caramba...
Explico o que acho. Esqueçamos a competência de cada ator e centremos na beleza dos personagens. Foi o que mais me chamou atenção. Seu Woody pegou uma balzaquiana( atualmente, lobas de 40 entram) maravilhosa, uma gata maravilhosa e um rapaz bonitão. O marido da balzaquiana, claro, desleixado. Não sei se nos anos 1950 teríamos isso aí, tirando o marido desleixado( até hoje vemos), mas por tratar-se de uma ex-atriz americana( e elas são completas: cantam, dançam e interpretam, ou seja, são lindas de cara e boas de... desde desde. Naqueles anos, 'belas coxas', diria vovô), tá passa. 'Gatas', pela idade, existem desde que o mundo é mundo. Perto daqueles anos maravilhosos, o quadro de Edward Hopper, 'summer evening', 1947, dá uma dica mas Marilyn já estava na ativa. Ah, deixa disso, M.C. Politicamente correto, conversando com uma cinéfila ? Girlie Magazines e/ou Pin Ups ! E Playboy chegando em 1953. Só acho que o Justin não caiu bem. É jogada para pegar as meninas, hoje, balzaquianas, suas fãs de outrora. Tá. Grana para pagar advoratos. Mas chamasse um ator 'de fora', feio, cara braba - estilo rodriguiano -, voz e olhar mais 'predadores', e a Kate arrebentaria e mais um Oscar levaria ! Não vi química.
Hoje estou impossível !


M.C.