A história era contada com tons de anedota: década de 1960,
mulher do interior, mãe de dois filhos e professora. Sempre que o marido
chegava para almoçar e ela estava atrasada no preparo da refeição, colocava
diversas panelas no fogo, tampadas e só com água, para dar a impressão de que a
comida estava em vias de ficar pronta. “Assim, ele olhava de longe e não
reclamava que eu ainda estava começando a fazer o almoço”, e não apenas os
interlocutores riam como a dita senhora reforçava a cena como conselho para as
moças mais jovens.
Adolescente, eu ouvia aquilo com um misto de incredulidade e tristeza. Aquela mulher, que fazia jornada tripla, precisava lançar mão de um simulacro bizarro para justificar seu atraso, como se ela estivesse em falta com a família, mesmo que o suposto atraso tivesse sido causado pelo trabalho na escola. Afinal, deixar que ela trabalhasse fora era uma enorme concessão do chefe da casa, já que suas funções prioritárias eram, de fato, cuidar da casa, dos filhos e, claro, do marido. Como se, de fato, aquele lugar fora de casa não fosse o seu lugar.
Sempre me lembro dessa história quando leio, ouço e assisto a notícias e análises políticas relativas ao início de um governo de esquerda. As frases “o PT vai ter que...” e “Lula precisa” estão na mesma chave do patriarcado escancarado da situação acima. “O PT vai ter que dar garantias de governabilidade”, “Lula precisa sinalizar ao mercado quem será seu ministro da Economia” etc.
Da mesma forma que o marido da professora nunca precisava justificar eventuais atrasos e ausências domésticas, governos capitaneados por homens brancos doutores ricos não precisam se explicar previamente. Lula, o operário, duas vezes presidente da república, nas duas vezes alçado ao cargo com o amparo de nomes chancelados pelo dito mercado, segue precisando e parece que precisará sempre se explicar.
Hábil negociador, forjado na atividade sindical, que historicamente sempre teve como primeira finalidade a melhoria financeira da vida do trabalhador (consumidor?), Lula segue sendo cobrado a se compor com as forças dominantes de sempre. É a mulher-mãe-professora negociando com o chefe da casa seu direito de trabalhar, ainda que para isso precise escamotear certas práticas do dia a dia. Quer trabalhar fora, pois que antes garanta minha refeição quente na hora devida.
Lula quer aumentar o salário mínimo acima da inflação? Pois
que antes garanta o equilíbrio fiscal. Lula quer incluir povos originários nas
tomadas de decisão? Pois que antes garanta condições para o agronegócio
continuar recebendo linhas de crédito vantajosas. É claro que, fora do ambiente
doméstico interiorano no qual panelas ferviam água para fazer parecer que
estava saindo o almoço, o governo de um país precisa de determinadas condições
ideais para que certas ações possam ser efetivadas.
O ponto central dessa reflexão é que essa necessidade constante de justificativas raramente é exigida de homens brancos ricos doutores, os preferidos de sempre do mercado e, por extensão, da chamada mídia hegemônica. Para eles, mulheres, pessoas LGBTQIA+, pessoas pretas, operários, pessoas com deficiências não pertencem ao lugar de poder que, séculos após séculos, tem sido ocupado pelos mesmos fidalgos de sempre.
A cada vez que um desses representantes de “minorias” ascender ao poder, a necessidade de explicação vai se instalar com a força de um poder inquisidor. E é importante que os porta-vozes dessa cobrança institucionalizada tenham consciência de que esse discurso brota carregado de ódio de classe, de machismo, de homofobia, de xenofobia. Cobrar de Lula o que não se cobra de um político “do mercado” é reafirmar que lugar de mulher é na cozinha.
1 comment:
Excelente!!!
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