Damon (Shelby) e Bale (Miles): heróis na pista contra os monstros da burocracia |
Se ocorresse uma catástrofe e a Ford fosse soterrada, daqui
alguns anos os escavadores chegariam às ruínas e teriam a certeza de que se
tratava de uma fábrica de papel com uma imensa frota de veículos. A piada
interna, repetida por várias gerações de funcionários da multinacional
norte-americana, faz eco com uma das cenas da primeira parte do longa “Ford vs.
Ferrari”, dirigido por James Mangold, na qual o personagem principal, vivido
por Matt Damon, critica a burocracia da companhia.
Baseado na história por trás da criação de um dos carros de
corrida mais famosos de todos os tempos, o Ford GT40, o filme é centrado na
figura de Carroll Shelby (Damon), um ex-piloto que se notabilizou por vencer as
24 Horas de Le Mans, em 1959, e precisou abandonar as pistas por conta de um
problema cardíaco. O filme mostra Shelby mantendo-se no universo automotivo, negociando carros
e projetando novos modelos, até ser procurado por um executivo da Ford (Lee
Iacocca, vivido por John Bernthal), para liderar a criação de um carro e de uma
equipe que fossem capazes de vencer a então imbatível Ferrari em Le Mans.
Shelby aceita a tarefa e insere o velho amigo Ken Miles (Christian Bale) no
projeto.
Um dos desafios de transformar uma história real em filme convencional
é a fidelidade aos fatos. Quem conhece a longa história de Shelby (a despeito
do problema cardíaco, ele viveu até os 89 anos, morrendo em 2012), certamente
vai encontrar incorreções no roteiro. O mesmo vale para Miles e, mais ainda,
para a própria Ford Motor Company. Uma reunião na sede, retratada no início
da trama (e mostrando o interior da companhia, com suas características paredes
de madeira) dá a entender que os anos 1960 seriam a estreia da empresa no
automobilismo de competição, o que não é verdade. Mas, como a música dos
Paralamas do Sucesso já ensinou, “a vida não é filme”. E “Ford vs. Ferrari” é
um filmão.
Literalmente, inclusive. Filmado em formato scope, preenche
a tela com ação e velocidade, entregando seu cartão de visita enchendo os olhos dos fanáticos por gasolina com cenas de
Shelby ao volante de um Aston Martin, na sua vitória em Le Mans. Introduzindo a fase pós-aposentadoria de Shelby e a intenção da Ford em investir no automobilismo, o filme mergulha em uma longa sequência de cenas que pouco tem a ver com o universo acelerado de seu início. Acentuando a burocracia da montadora, os interesses comerciais de seus
executivos e os processos pouco éticos desse ambiente, “Ford vs. Ferrari” gasta
pelo menos uma hora de seu tempo com poucas cenas de corrida.
Bale (Miles) e Jupe (Peter): relação pai e filho |
Mas o que pode soar como defeito para amantes da velocidade
é o tempo ideal para o projeto dirigido por Mangold continuar sendo um filmão.
É nesse intervalo entre a Le Mans de Shelby, em 1959, e o desafio da trinca
Shelby-Miles-Ford, no final dos anos 1960, que a história se aprofunda nas
personalidades dos personagens. É aí que o filme laça de vez o espectador para
o lado da dupla Damon-Bale. O Miles de Bale, por sinal, exagera em um sotaque
indefinido entre o inglês e o matuto ianque (Miles, de fato, era inglês), mas
transparece autenticidade ao mesclar certa brutalidade nas falas e nos gestos
com uma quase doçura no trato com a esposa Mollie (Caitriona Balfe) e o filho
Peter (Noah Jupe). O jovem Jupe, que já esteve em “Um lugar silencioso”, “Extraordinário”
e “Suburbicon: Bem-vindos ao Paraíso”, parece crescer junto com seu personagem
no filme, dividindo com Damon uma das cenas de maior força dramática, no final
da história.
É também no espaço “sem corridas” que o roteiro introduz a
Ferrari. A representação da marca italiana, de seu fundador Enzo e de todo o universo
que cerca a mítica fábrica de Maranello passa longe de um eventual maniqueísmo Estados Unidos x Resto do Mundo. Pelo
contrário: por sua essência, orgulho e amor ao esporte, Enzo Ferrari e sua
trupe parecem bem mais próximos de Shelby e companhia do que o patético Henry
Ford II (Tracy Letts), que afinal "não é Henry Ford", e que o amoral Leo Beebe (Josh Lucas), eleito como o
grande antagonista do filme.
Remo Girone (à direita), como Enzo Ferrari: mais próximo de Shelby e Miles que Henry Ford II |
Mas é na última parte do filme, quando os motores roncam,
que “Ford vs. Ferrari” se torna o grande show desejado por todo fã de corrida.
A largada “estilo Le Mans”, com os pilotos correndo a pé até seus carros, a sensação
de velocidade, com muitas tomadas na altura do asfalto, a reprodução da disputa
Ford x Ferrari na pista, a recriação dos boxes e camarotes, a montagem precisa,
a trilha sonora em crescendo, a
sequência de cenas diurnas, noturnas e a volta para a luz do dia colocam o
espectador dentro do universo da mais famosa corrida de longa duração da
história de uma forma que só o longa “Le Mans”, protagonizado por Steve McQueen
em 1971, havia conseguido fazer. Mas, convenhamos, com personagens e com uma
história muito mais envolventes.
Ao final de 2h32 de projeção, a conclusão de “Ford vs.
Ferrari” surge quase como lamento. Esse filmão no formato, na criação dos
personagens, na condução da história mostra-se também um filme grande em sua
duração, mas não arrastado. Carregado nas tintas em alguns estereótipos e
situações, o filme de Mangold, no entanto, é cirúrgico em mostrar que grandes
corporações entram em competições esportivas por um único propósito: aumentar
suas vendas. Permanecem no negócio enquanto ele se mostrar eficiente para esse
fim. Recolher as ferramentas e fechar a garagem são consequências que se
relacionam muito mais aos cifrões perdidos que a corridas disputadas. Shelby, Miles
e o GT40 ficaram na história da Ford e do automobilismo mundial. A Ford, bem, a Ford continua sendo uma
montadora de veículos, mas a julgar pela transformação pela qual esse mercado
atravessa, talvez no futuro ela esteja fabricando outros produtos. Tomara que
não seja papel.
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