Wednesday, May 01, 2019

Senna e a bandeira


Você aí se preocupando com a inflação de 6% ao ano talvez não saiba, ou não se lembre, que o índice quase atingiu 80% em 1986. E esse número absurdo para os dias de hoje já foi um avanço na comparação com o ano anterior, quando a inflação chegou a estapafúrdios 242% ao ano. 1986 começou com um dos choques heterodoxos realizados na segunda metade da década, com o objetivo de debelar a inflação, o Plano Cruzado. Não deu certo. Em 1987, o índice ultrapassaria os 360%. A economia do Brasil naquele tempo era uma vergonha.
É certo que o noticiário, em 1986, foi dominado pela economia no início do ano, mas chegou ao final do primeiro semestre tomado pelo interesse na Copa do Mundo, realizada pela segunda vez no México. Nada muito diferente do que já acontecia antes, a cada quatro anos, e voltou a acontecer depois, e sempre. No comando da seleção brasileira, o mesmo Telê Santana tido como arquiteto do futebol-arte derrotado na Copa de 1982. Era evidente que a seleção brasileira que se apresentou no México não inspirava a mesma esperança de quatro anos antes, mas não era fora de propósito renovar a crença e sonhar com um título que já não vinha para o Brasil havia 16 anos.
No dia 21 de junho de 1986, um sábado, a seleção brasileira entrou em campo para disputar as quartas-de-final contra o time da França, que tinha como principal expoente o jogador Michel Platini, no ocaso de uma bela carreira em clubes, mas sem um título mundial pela seleção de seu país (que, por sinal, só viria em 1998). No tempo regulamentar daquele jogo no estádio Jalisco, 1 x 1. Na disputa de pênaltis, o Brasil saiu derrotado, 4 x 3. Dito assim, parece um jogo qualquer. Não foi. Drama, pênalti perdido durante a partida pelo atacante Zico, que saiu como o grande vilão do Brasil na derrota. Para aumentar a sensação de tragédia, no pênalti cobrado pelo francês Bellone, a bola maliciosamente bate na trave, atinge as costas do goleiro brasileiro Carlos e entra para o gol. Quatro anos depois da derrota no Sarriá, quando o Brasil foi eliminado pela Itália de Paolo Rossi, nova frustração para a torcida. O país cuja economia era uma vergonha passava vergonha também no futebol.
Poucas vezes a expressão “nada como um dia após o outro” fez tanto sentido. No domingo, 22 de junho, aconteceria o GP dos Estados Unidos da temporada de Fórmula 1, no circuito de rua de Detroit, sétima prova daquele campeonato. Uma semana antes, vitória do inglês Nigel Mansell no GP do Canadá. A torcida estava com os olhos voltados para Jalisco e poucos devem ter atentado para o fato de que Ayrton Senna havia marcado a pole position para a corrida estadunidense. Foi a 11ª pole de sua carreira. Logo atrás dele, a dupla da Williams, com Mansell à frente de Nelson Piquet. O francês Alain Prost, que desembarcou em Detroit como líder do campeonato, largava apenas em sétimo.
Logo no início da prova, Senna perderia a liderança para Mansell, recuperando a ponta na oitava volta, quando o inglês começou a enfrentar problemas com os freios. O brasileiro começou a abrir vantagem para os demais, quando foi obrigado a fazer um pit stop por conta de um pneu furado, na 13ª volta. Lá na frente, a liderança sobrava para dois franceses, consecutivamente. Primeiro, com René Arnoux, que se manteve na ponta por apenas três voltas, sendo obrigado a também ir aos boxes para trocar pneus. Depois, com Jacques Laffite. Senna, nessa altura, fazia uma bela corrida de recuperação, passando Michele Alboreto, Stefan Johansson, Arnoux e Prost. Na volta 31, Senna passa Mansell e é beneficiado pela parada de Laffite nos boxes. Nessa altura, o brasileiro já estava em segundo, atrás do compatriota Piquet, e voltou a ser beneficiado por mais uma ida do líder ao box. Com uma parada longa demais, Piquet voltou à pista disposto a recuperar posições, mas acabou batendo e abandonando na volta 42.
Enquanto isso, Senna mantinha a liderança segura na prova, mantendo-se em primeiro da 39ª volta à bandeirada. Depois do acidente de Piquet, praticamente só franceses alternaram-se nas posições que davam direito ao pódio. Arnoux, que também acabaria saindo da prova por acidente, Laffite, terminando em segundo e conquistando o último pódio de sua carreira, e Prost, que se debateu com problemas nos freios mas, ainda assim, garantiu o terceiro lugar. Senna chegava à sua quarta vitória, a segunda no ano, mas o GP dos EUA de 1986 ficaria marcado na memória do público brasileiro menos por essas estatísticas e mais, muito mais, por um gesto de Senna.
Ao garantir a vitória, já na volta de desaceleração, Senna diminui a velocidade, para o carro próximo a um guard rail e faz um gesto para alguém que assistia à corrida. Um homem se aproxima e entrega ao piloto uma pequena bandeira do Brasil, daquelas feitas em plástico, com uma pequena haste. Bandeira de parada militar, eu definiria. Ele terminou a volta segurando e agitando a bandeira, assumindo, depois, que o gesto era uma forma de compensar a frustração do público brasileiro pela derrota no dia anterior. Caiu bem. Caiu muito bem.
A comparação da bandeira de Detroit com os artefatos utilizados por populares e estudantes em parada militar não foi à toa. Em 1986, o Brasil vivia o segundo ano após o fim da ditadura militar. Durante vinte e um anos, o governo federal sempre procurou associar os símbolos nacionais aos feitos do próprio Estado. Usar verde e amarelo na década de 1970, para o brasileiro médio, era uma forma de expressar patriotismo. Não faltavam oportunidades para isso, mas a apoteose era mesmo o 7 de setembro, quando até fitinhas nas “cores do Brasil” eram distribuídas para serem amarradas nas antenas dos rádios dos carros. Para uma geração como a minha, que cresceu no período, a associação da bandeira do Brasil com o governo militar era direta e, em um determinado momento, começou a se tornar repulsiva.
De quatro em quatro anos, era como se a seleção brasileira de futebol se apoderasse do verde e amarelo. Depois do “Brasil que vai pra frente” e traz a Jules Rimet definitivamente, uma cacetada após a outra. Em 1974, perdemos o rumo no carrossel holandês. Em 1978, a farsa que deu o título à seleção argentina, no bojo de uma ditadura militar ainda mais recrudescida. 1982 e o grande trauma do futebol-arte que deu em nada. Enquanto isso, o Brasil ia se afundando na “carestia”, desconstruindo o mito de que aquele governo, que nos livrara da ameaça comunista, era o mais competente para garantir uma vida tranquila à população. Os donos da bandeira – governo e seleção brasileira de futebol – estavam por baixo. Empunhá-la era quase um escárnio.
Ao empunhar a bandeira pela primeira vez, naquele 22 de junho, caprichosamente à frente de dois franceses, Senna não apenas vingou a derrota do dia anterior, mas reabilitou um símbolo nacional. No lugar de um governo autoritário que progressivamente passou a desagradar a maioria da população ou de jogadores incompetentes, um jovem bem nascido e obstinado pela vitória. Um Brasil que dá certo e dá orgulho. Uma bola dentro, provavelmente surgida da espontaneidade, e depois largamente utilizada como forma de reafirmar a condição de grande herói do povo brasileiro, que Senna exerceu dali para frente, até sua morte.
De 1986 para frente, agitar ou empunhar uma bandeira do Brasil tornou-se algo natural e esperado nas vitórias de Senna. No pódio do GP do Brasil de 1991, sua primeira vitória em casa, aquela da sexta marcha, o piloto carrega um bandeira grande, com haste, e exacerba na expressão da dor até para erguê-la, reafirmando a missão de literalmente carregar o Brasil nos ombros. Em 1992, acossado pela ameaça de impeachment, o ex-presidente Fernando Collor jogou a sorte com o apoio popular e suplicou que o brasileiro o apoiasse no domingo seguinte, saindo às ruas de verde e amarelo. A população respondeu com roupas pretas. Perdeu, playboy. Naquele ano, Senna até poderia estar lascado, correndo atrás de uma Williams inalcançável, mas o verde-amarelo era dele.
Reza a lenda que, dentro do FW 16 que levou Senna ao encontro da morte, repousava uma bandeira da Áustria, homenagem póstuma do brasileiro ao companheiro Roland Ratzenberger, morto no dia anterior. Teria sido bonito. Dois meses depois, quando a seleção brasileira de futebol finalmente voltou a ser campeã, 24 anos depois do “pra frente Brasil”, vários jogadores enrolaram-se em bandeiras brasileiras. As referências a Senna foram evidentes, inclusive com uma faixa exibida por jogadores ainda em campo, na qual se lia: “Senna…aceleramos juntos, o tetra é nosso”. Mais do que homenagear o herói morto, a seleção parecia pedir licença para retomar o símbolo para si. Vinte anos depois, sem títulos na Fórmula 1 há vinte e três anos, sem títulos no futebol há doze, com uma insatisfação pelo país cada vez mais evidente, por motivos diversos, a bandeira respira com esperança de voltar à moda. Vai que é tua, Neymar?
Texto publicado pela primeira vez em maio de 2014.

2 comments:

Susan said...

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Não será com certeza um assunto de sua responsabilidade - nem este o lugar mais adequado, mas no twitter não tive sucesso - mas poderá eventualmente reencaminhar isto aos ITs do podcast F1naBandNewsFM? É que com o feed que está no site da Band não há meio de conseguir subscrever o podcast e ja vai no #04... Será que eles podem verificar? é que nem o helpdesk do agregador que uso (PlayerFM) conseguem obter o mesmo...
Antecipadamente grato...

João Carlos Costa
@jccosta64