Viola Davis (Veronica): "mulher é o crioulo do mundo" |
Em sua essência, “As viúvas”, novo longa-metragem dirigido
por Steve McQueen, de “Doze anos de escravidão”, é um filme sobre um grande roubo.
Circundando o tema principal, “As viúvas” às vezes tangencia e, em outras,
mergulha tão fundo em tantos assuntos que talvez seja mais correto afirmar que
se trata de um filme sobre racismo, machismo, violência doméstica, xenofobia, classismo,
lugar de fala, corrupção e sororidade, tendo, como pano de fundo, os planos
para um grande roubo, e o roubo em si.
Na sequência de abertura, “As viúvas” mostra os personagens
Veronica (Viola Davis) e Harry Rawlings (Liam Neeson) se beijando, deitados na
cama. A cena é cortada por sequências de homens fugindo em uma van, durante um
roubo. Além das cenas de intimidade desse casal, a abertura também mostra
sequências de outros três casais em seus cotidianos, deixando claro que aqueles
eram os homens que seriam mortos durante uma operação criminosa, e elas, suas
viúvas.
Ambientado em Chicago, o filme desenvolve a trama dessas
mulheres no contexto de uma eleição municipal, que contrapõe os personagens
Jack Mulligan (Colin Farell), sucessor político de seu pai, Tom Mulligan
(Robert Duvall), e Jamal Manning (Brian Tyree Henry), que tenta ser o primeiro vereador
negro eleito no distrito. Manning, que logo se mostra conectado a ações
ilícitas, como evidencia sua relação com o sobrinho Jatemme (Daniel Kaluuya), pressiona
Veronica após a morte do marido, que era o chefe do bando, exigindo que ela termine
a tarefa não concluída pela quadrilha. Ameaçada, ela convoca as outras viúvas
para cumprir a tarefa.
Viola Davis e Colin Farell |
No entanto, para mostrar que aqueles universos aparentemente
tão distantes conviviam praticamente na mesma vizinhança, McQueen lança mão de
um plano sequência que registra uma viagem de carro, paradoxalmente conduzida
pelo lado de fora do veículo. Enquanto se ouvem as vozes de Jack Mulligan e de
sua assessora, de dentro do carro, a câmera passeia pelos bairros de Chicago,
saindo do desprovido distrito pobre, habitat dos negros, para rapidamente chegar ao
endereço elegante dos brancos, com suas casas sofisticadas, cercadas por
grades.
É na personagem Veronica, no entanto, que reside a interseção
dos dois mundos, como uma afronta àquela divisão. Veronica é uma mulher negra e
rica, altiva em uma condição sócio-econômica que logo se revela frágil. Não tão
frágil, no entanto, quanto seu próprio espírito, indelevelmente marcado por uma
tragédia, revelada nos minutos finais do filme, cuja origem não foi outra senão
o racismo. Há outro personagem, o reverendo Wheeler (Jon Michael Hill), um
pastor negro protestante, que também transita entre os dois mundos. Em um
sermão com frases como “Hoje, a ignorância é a normalidade, ou melhor, é a
excelência”, Wheeler tem o salvo-conduto de ser reconhecido como um líder de
espíritos, mentes e votos. Por isso, tem o respeito que Veronica não desfruta
nem entre negros, muito menos junto aos brancos.
Basicamente, porque “a mulher é o crioulo do mundo”, como já
cantava John Lennon. O que dizer, então, quando a mulher é negra? No contato
com as viúvas que arregimenta para terminar o serviço dos maridos, Veronica se
porta como chefe. Mas é notável que acabe funcionando como trampolim para a
dignidade da jovem viúva Alice (Elizabeth Debicki), uma loira de origem
polonesa e aparência frágil que apanhava do marido e era humilhada pela própria
mãe. A primeira vez em que Alice consegue levantar a voz não se dá em uma
discussão com o marido agressor, na conversa cercada de hipocrisia com a mãe ou
nos encontros com o novo e egoísta namorado, mas com a mulher negra que a
confronta, mostrando que os esforços de sororidade ainda precisam transpor
muitas barreiras de racismo depositadas ao longo dos séculos.
Michelle Rodriguez e Elizabeth Debicki |
Tão arraigada permanece a questão da cor da pele que Alice,
já revestida de uma coragem provavelmente inédita em sua vida, não tem
dificuldade para cumprir a tarefa de comprar armas de fogo para o grupo,
provocando a empatia de uma típica mulher e mãe norte-americana. Fingindo-se
uma esposa ameaçada pelo marido (sabemos onde ela se inspirou para compor a
história), Alice sensibiliza a mulher acompanhada de sua filha a orientá-la
sobre quais revólveres escolher. Diante da frase candidamente repetida pela
menina (“Mamãe, você sempre diz que a arma é a melhor amiga de uma mulher”), o
trio mostra que a sororidade, de fato, existe, mas prolifera melhor entre
iguais no tom de pele.
Contudo, o filme de McQueen não se contém nas dualidades
entre negros e brancos, inserindo-se nas sutilezas de confrontos de outras
naturezas. Imersa em conceitos abertamente racistas e xenófobos, uma conversa
entre o velho Tom Mulligan e seu filho Jack mostra que há embate também no
aspecto geracional. “Não vamos perder esta cidade para pessoas que vieram para
cá ilegais e que não param de ter filhos”, diz Tom a certa altura, diante da evidente
falta de traquejo político do sucessor. No entanto, ainda que o conflito crie
uma relação crispada de ressentimentos e frustrações, ele não parece pujante o
suficiente para mobilizar revoluções, deixando claro que a cartilha continuará
sendo seguida, menos por crença, e muito mais pela normalidade que oferece,
algo que se reforça em uma pergunta do velho: “mudar as coisas para quê?”
É admirável que a história ainda consiga se debruçar sobre
questões como a misoginia e até o lugar de fala. A máscara de brinquedo da
filha de uma das personagens inspira as mulheres a transformarem suas vozes no
momento crucial da tarefa. Estariam elas disfarçando suas identidades ou
emprestando um tom masculino às próprias vozes, como busca desesperada por
respeito? E como não se sensibilizar com o comício do candidato branco que
chama ao palanque mulheres negras para dar testemunho de seus empreendimentos,
facilitados por brancos, em um discurso proferido apenas e unicamente pelo homem
branco da cena?
Agudo na construção de seus personagens e conflitos, “As
viúvas” é um exemplar filme “de roubo”, mas, ao final, é impossível não ter a
convicção de que aquelas mulheres (todas as mulheres?) foram e continuam sendo
roubadas nos que lhes é mais caro: a dignidade.
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