A frase quase sempre soa como se um meteoro estivesse
prestes a cair sobre a minha cabeça. É um aviso angustiado, de medo, de ameaça
à espreita. “Cuidado, moça, sua bolsa está aberta!”
Geralmente, no metrô ou em algum outro lugar público. Já fiz
troça da frase. “Eu sei, não consigo pegar minhas coisas com ela fechada.” Já
fiz discurso. Já me resignei simplesmente e disse apenas “obrigada”.
Mas é uma frase que me incomoda, me irrita, cutuca minha
consciência, porque revela um pensamento de cunho pequeno-burguês. Uma neurose
pela qual o mundo conspira para tomar o que pertence a esse cidadão de bem.
Sim, a frase também pode ter simples cuidado com o outro, um
aviso bem-intencionado. Claro que pode. Mas seu cerne é essa certeza de que o
outro está a postos para tomar o que eu conquistei, com o meu suor.
São Paulo, trabalho não falta. Ainda que você passe três
horas do seu dia sacolejando em um vagão, ou no ônibus. Mas, final do mês,
salário na conta. Mexer na minha bolsa? Cuidado, moça, sua bolsa tá aberta.
Eu entendo o trabalhador que saiu do sertão e aqui encontrou
a chance de não morrer de fome, ainda que morra de cansaço um pouco por dia, e
de pressão alta um pouco por ano, e de câncer no pulmão, de vez.
Entendo que ele tenha essa neurose, essa frase automática,
esse grito de alerta incontido. Deus o livre levarem seu dinheiro, seu celular,
essas coisas que a gente custa tanto a conquistar.
Eu entendo que ele desenvolva um medo permanente de ser
roubado, e que enxergue na punição exemplar o único jeito de evitar esses larápios.
E se deixe seduzir pela ideia de se armar contra essa ameaça.
Causa e efeito: trabalhei, Deus me ajudou, venci. Calvinismo
puro. Vem aqui me roubar? Te recebo com bala, filho de um cão. É uma pena, mas
não tenho o direito de pedir para ele pensar em programas de inclusão.
Mas há o outro pequeno-burguês, apartamento de 70 metros
quadrados, varanda gourmet, financiado em 30 anos, sedã adquirido em consórcio,
60 parcelas, que vocifera contra a taxação de grandes fortunas.
(pausa para o riso)
Aquele que herdou propriedades e rala o mês inteiro,
administrando os dividendos da família enquanto falsifica uma carteirinha de
estudante porque o ingresso nessas novas arenas ficou bem mais caro que no
Pacaembu.
Esse pequeno-burguês não anda de metrô, portanto sua bolsa
raramente corre o risco se ficar aberta. Mas nem por isso ele sossega atrás do
sedã com vidro filmado, da grade do condomínio. Deus o livre roubarem suas
coisas.
Esse pequeno-burguês não encontra o pequeno-burguês alarmado
no metrô. Encontrava recentemente, nos aeroportos. Seu sobrinho encontrou
outros deles há algum tempo, na faculdade. Deus o livre, roubaram minhas
coisas.
Se o pequeno-burguês do metrô avisasse da bolsa aberta para
o pequeno-burguês do sedã, o pequeno-burguês do sedã olharia com medo para o
pequeno-burguês do metrô.
O medo do pequeno-burguês do metrô é de ladrão.
O medo do pequeno-burguês do sedã é de pobre.
1 comment:
Tão bom ler seus textos... parabéns!
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