Thursday, April 05, 2018

Dois cigarros: a transitoriedade de tudo

O primeiro romance do jornalista e escritor Flavio Gomes


Homens de meia idade costumam ser crianças crescidas, e por isso mesmo respondem à voz de comando de uma mulher com obediência canina. Talvez por serem de uma geração acostumada aos mimos de mães e avós zelosas e onipresentes, de alguma ou de várias formas parecem buscar essa segurança opressora vida afora. Da mesma forma que o instinto do cachorro faz com que ele aceite as ordens do dono porque vai receber comida depois, o homem entrado em anos recebe os desígnios da mulher em busca da recompensa carnal que ela eventualmente irá a ele destinar.

Dois cigarros, primeiro romance do jornalista e escritor Flavio Gomes, tem um protagonista sem nome consciente dessa condição. O livro, em primeira pessoa, é um relato de um homem de quarenta e poucos anos para uma mulher mais jovem. A relação comandante-comandado fica evidente logo nas primeiras páginas, que relatam uma viagem do casal a uma hipotética cidade do interior de Minas Gerais.

A jovem guia todos os passos da dupla, determina a dinâmica entre eles, escolhe dos passeios ao cardápio, passando pelas roupas dos dois. Ele obedece e se cala, como o cão que senta, deita, rola, vai buscar a bolinha, volta com a bolinha, abana o rabo porque sabe que, depois, vai ganhar ração.
Gomes, no lançamento do livro, em São Paulo
Só que a moça, além de altiva, é errática. Entra e sai da vida do tiozinho solitário sem aviso. Como tudo, aliás. Na vida dele. Na vida, apenas. Cada vez que volta, surge a bordo de ordens e mistérios. O domínio que exerce sobre o pobre macho pode lembrar o perfil da mulher desalmada de “Travessuras da menina má”, de Mario Vargas-Llosa. Mas, enquanto o protagonista do escritor peruano é um pobre diabo revestido de autocomiseração, o arquiteto errante de Flavio Gomes é um ser resignado. Não há nada de grandioso em sua existência – nem os prazeres, nem as danações.

Mas, se as autoimagens dos dois protagonistas são bastante diferentes, as visões que ambos têm das mulheres de seu desejo são totalmente opostas. O peruano ressentido parece sempre disposto a julgar o comportamento da “menina má”, inclusive como forma de reforçar sua própria miséria. O arquiteto/barqueiro/garçom de Flavio Gomes tem arroubos de raiva e desprezo pela jovem que o domina ao nível da paranoia, mas nunca a julga e, ainda que a ligação entre ambos seja carnal, o romance jamais resvala na descrição dos encontros físicos entre ambos. Elegância? Mistério? Algum pudor?

Não. Porque não é essa ligação física o que move a história. Um inesperado plot twist coloca Dois cigarros na trilha de uma narrativa em vários tempos, e é muito mais a vida daquele pobre diabo que passa a interessar o leitor. Costurada como um labirinto cujos caminhos, de alguma forma, irão se encontrar, a trama equilibra eventos frenéticos e divagações existencialistas de forma instigante, saborosa. Flavio Gomes tem um dos melhores textos do jornalismo esportivo brasileiro há quase trinta anos. Não é de se espantar que tenha trazido sua prosa altamente coloquial para o formato romance, legando ao público uma história sobre amor que é também sobre a vida, ou sobre a transitoriedade de tudo, inclusive dos sentimentos.

Desavisado, ou mal-intencionado, um leitor crítico poderia questionar: por que ele está contando para a mulher uma história que ela mesma viveu? Insignificante, resignado, blasé, aquele homem de meia idade nunca havia falado de sua (s) vida (s) para ninguém, nem para ela. Contar a história dela era uma forma de dar significado à existência banal dele. A narrativa o colocou no controle, porque todo homem de meia idade é uma criança crescida, mas grita por dentro a necessidade de ser pelo menos um pouco macho alfa.

Sobre o livro, lançado pela Gulliver, acesse aqui

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