Sunday, March 27, 2016

Homens-objeto

O filme “A grande aposta” recebeu cinco indicações ao Oscar, incluindo melhor filme e diretor. Levou apenas o prêmio de melhor roteiro adaptado, o que não quer dizer que o filme seja ruim. Pelo contrário, achei “A grande aposta” superior a outros três concorrentes a melhor filme que vi neste ano – “O regresso”, “O quarto de Jack” e “Spotlight”, embora tenha gostado muito dos dois últimos.



Quando comentei que tinha adorado “A grande aposta”, nas redes sociais, algumas pessoas questionaram se eu não havia considerado o enredo “técnico demais”, por conta das exaustivas referências a termos do mercado financeiro. Bem, o filme propõe-se a contar de que maneira a bolha imobiliária dos Estados Unidos tornou-se uma enorme crise econômica mundial, não havia como escapar desses termos.

Mas acho que os roteiristas foram hábeis na tarefa de introduzi-los, primeiro com as repetições constantes de sua definição, cabíveis nos diálogos, e também com o recurso bem-humorado de utilizar celebridades como a cantora Selena Gomes para exemplificá-los. Ainda que não se entendam todos os meandros desse ambiente, é fácil deduzir a mensagem principal do filme: o mercado financeiro é uma selva.

Christian Bale, em "A grande aposta"


No entanto, não é impossível que eu tenha me abstraído da dificuldade de entender todo o discurso técnico por um detalhe prosaico: o filme tem um monte de atores bonitos e/ou charmosos, e em dado instante eu percebi que além de seguir a história, eu estava interessada em continuar vendo aquele desfile de espécimes masculinos. Não eram poucos: Christian Bale, Ryan Gosling, Brad Pitt (que é um fracasso retumbante em tentar parecer gordo e velho), além de nomes menos conhecidos, como Hamish Linklater (o problemático, porém engraçado, irmão de Julia Louis-Dreyfuss na série “New adventures of old Christine), e até alguns coadjuvantes como Max Greenfield e Billy Magnussen.

Não. Não eram poucos. Era praticamente um monopólio de homens na tela. E logo me lembrei de outros dois filmes, citados anteriormente, que praticamente só mostravam homens em ação: “O regresso” e “Spotlight”. Comentei isso com o amigo crítico e escritor Pablo Villaça, diretor do site Cinema em Cena, e ele apontou que a falta de representatividade das mulheres no cinema não é novidade, em vários aspectos. Um deles é a baixíssima quantidade de mulheres indicadas ao Oscar, ao longo da história, na comparação com homens, em todas as categorias, como mostra este texto (em inglês).

Brad, desista: você nunca fica feio


Também me chama a atenção o fato de que nem sempre as atrizes premiadas pela Academia estejam nas produções indicadas ou vencedoras dos principais prêmios (Melhor filme, especificamente). Este outro texto, também em inglês, quantificou isso, mostrando que, na história, apenas 40% das mulheres indicadas na categoria Melhor atriz estavam em produções indicadas a Melhor filme, contra 52% entre os homens.

Uma tentativa de justificar essa diferença poderia passar pela escolha dos temas. Ora, se vamos falar de mercado financeiro e o mercado financeiro é dominado por homens, é natural que tenhamos mais atores que atrizes. O mesmo se aplica para um filme que fale de uma tropa do exército deslocando-se em um ambiente inóspito. No entanto, praticamente qualquer história pode ser contada do ponto de vista das mulheres afetadas direta ou indiretamente por elas. E ainda: o mundo está cheio de histórias cujo protagonismo se concentra em mulheres ou em grupos de mulheres, e muitas dessas histórias esperam ser contadas.

Ryan Gosling: "ô, lá em casa..."


Mas, então, fiquei pensando que minha atitude contemplativa da beleza masculina, diante de um filme tão impregnado de testosterona, ainda que sério, talvez tenha sido uma pequena rebeldia. Querem nos impor machos brancos indômitos nas telas, relegando as mulheres a papéis menos que secundários? Não tem problema. Façamos deles homens-objeto, eventualmente desconsiderando o que estão falando, apenas para admirar seus dotes físicos. O gesto de desprezo intelectual não é muito diferente do que se tem feito regularmente com a figura feminina, na mídia, em geral. Mulheres seminuas têm ajudado a vender de cerveja a carro 0 km, sem precisarem abrir a boca. De preferência, não abrindo.

De fato, tenho visto crescer, nas redes sociais, uma postura frontalmente lasciva das mulheres em relação a atores, esportistas e celebridades, cultuando esses homens eventualmente mais pelo seu invólucro do que pelo que dizem e fazem. Eu mesma tenho seguidores dos dois gêneros que se atiçam com meus comentários ligeiramente maliciosos ou meramente contemplativos da beleza de pilotos de Fórmula 1, jogadores de futebol e artistas, como se eu emulasse um macho típico soltando um gracejo do gênero “ô, lá em casa...”.


Essa naturalidade em “coisificar” um homem talvez seja boa notícia, por refletir mais uma fronteira vencida pela mulher na sociedade. Mas não aplaca a sensação de baixa representatividade que esses mundos – do cinema, do esporte etc. – ainda nos impõem. Eu trocaria alguns suspiros motivados por músculos salientes, olhares sedutores e sorrisos marotos pela sensação de maior pertencimento a esses mundos. Basicamente porque a contemplação na tela do cinema ou na TV é mera idealização, mas a desvantagem feminina é real, palpável e cruel.

No comments: