Posicionei o celular na direção dele e perguntei se poderia
fotografá-lo. “Por que, você vai me bater?” Eu tinha acabado de sair do
trabalho, estava usando um vestido estampado, sandálias de salto e carregava a
bolsa em um ombro, a mochila com o notebook no outro. Penteada, levemente
maquiada, como sempre. Eu realmente devo parecer madame, ou executiva. Era até
natural que ele não me identificasse com o restante das pessoas que estava na
Avenida Paulista naquela hora, manifestando-se a favor da democracia, a maioria
vestindo vermelho. Mas era improvável que eu pudesse bater naquele homem de
talhe enorme. Eu, um metro e cinquenta e seis de altura.
Mas entendo. Sinal dos tempos, da animosidade como regra. “O
que é isso, companheiro?” Ele se desarmou, exibiu o cartaz que carregava e eu
fiz a foto. Ri com ele. Mas não tinha nada de graça naquele rir. Não, não é
sinal dos tempos coisa nenhuma, não é de agora, não é de hoje. Um homem negro
ter medo de alguém como eu, apenas pelos símbolos de bem-nascida que carrego, é
uma das histórias mais antigas deste país. Mais velha que esta, só se ele fosse
índio.
"Vai me bater?" |
Na hora, não relacionei o episódio a outro fato daqueles
mesmos dias. Eu estava treinando, na academia, e um professor me perguntou, em
voz baixa: “Você, que é petista, como está vendo tudo isso que está aí?” O tom
de voz dele, que é contrário ao atual governo federal, carregava uma intenção evidente:
não me expor naquele ambiente em que se contam nos dedos os eleitores de
esquerda. Habitualmente acuada, por ter vivido a maior parte da minha vida em locais
hostis à minha ideologia, respondi brevemente o que ele me perguntou e subi
para fazer uma aula. Enquanto pedalava ao som de um bate-estaca, uma ideia
martelava meu cérebro. Queria retomar a conversa e corrigi-lo quanto à minha
definição. Não sou petista.
Se você chegou até aqui, já estou feliz. Em uma sociedade na
qual muita gente mal lê placa de trânsito, atrair o leitor por três parágrafos é
vitória do escritor. Caso alinhe-se à direita, não se anime com a afirmação
acima. Caso seja “petralha”, “vermelho”, “bolivariano”, não abandone a leitura.
Eu sou de esquerda, desde a adolescência e nunca abandonei
meus ideais socialistas. Já escutei muita crítica e deboche, dizendo que o
socialismo não deu certo em lugar nenhum. Para todos, sempre dei a mesma
resposta. Acredito que o socialismo ainda não deu certo porque o ser humano
ainda não deu certo.
E acredito que está chegando um tempo em que a sociedade vá
perceber que a lei da selva já não nos serve, que o “cada um por si” cavou um
abismo profundo no qual estamos todos caindo, puxados pelo peso das florestas
desmatadas, da força das águas armazenadas em barragens débeis, das montanhas
de corpos de crianças famélicas, de refugiados cuspidos de suas terras, de
mulheres assassinadas por maridos violentos, de gays agredidos apenas porque são.
À beira do fim, após séculos de depuração, aprendendo muito mais pela dor que
pelo amor, tenho fé: o homem vai entender que só a solidariedade salva.
Pode ser que o regime de governo que vá emergir desse
pré-caos não se chame socialismo. É claro que a mácula sobre o nome pode ser incontornável,
pelos maus tratos que governos ditatoriais ou simplesmente incompetentes lhe
impuseram. Mas não me parece haver outra saída que não seja perceber o outro
como reflexo de si mesmo, de enxergar-se naquela criança com fome, naquele
imigrante, naquele homossexual, sob o risco de cairmos todos nesse mesmo
buraco.
Qual não foi minha surpresa, recentemente, quando descobri que um
pré-candidato à disputa presidencial dos Estados Unidos – Bernie Sanders, no
caso – tem amealhado simpatizantes entre parte do eleitorado, especialmente
jovens, ao tornar públicas suas posições que confrontam fortemente os ideais do
livre mercado, deslocando o foco de um eventual governo seu para as pessoas, em
vez de servir prioritariamente às instituições.
Teorizei um pouco sobre o “meu” ideal de sociedade por dois
motivos: para expor claramente meu lado (se tivesse tido tempo de conversar com
o personagem que abre este texto, ele entenderia que eu definitivamente não
queria bater nele) e para explicar ao meu professor da academia que não
concordo com tudo o que o atual governo petista fez. Isso inclui os erros
administrativos e a corrupção (isso é tão óbvio que escrevi e apaguei essa
menção algumas vezes, mas que fique, para registro). Mas também critico os
avanços ainda tímidos desse governo em numerosas questões sociais. Eu idealizo
um governo ainda mais destemido no enfrentamento a carteis, oligarquias,
violências cotidianas e preconceitos. Este, que está aí, com muitos erros, foi
o que mais se aproximou desse meu ideal.
Um motivo que não me impulsionou a esta “saída do
armário”: convencer quem quer que seja da minha opinião. Em toda minha vida, só
tive a pretensão de ajudar a formar o meu filho, porque sou responsável por isso
e o que parece certo para mim teria de direcionar essa influência. Neste ano, ele se torna eleitor e vejo, com indisfarçável orgulho, que não reproduz minhas ideias. Confronta muitas delas, pensa por si.
Nasci e me
criei em uma família de pensamento conservador. Amigos, vizinhos e a comunidade
em torno, formada pela chamada “classe média”, seguiam a mesma linha. Os parentes
votavam em massa na Arena, quando eu era criança. Professam essa ideologia até
hoje, e por mais que me entristeça ver algumas dessas pessoas engrossando coros
raivosos, sectários e preconceituosos, não vou ao embate contra eles. Primeiro,
e mais importante, pelo afeto que me une a vários deles. Mas também pelo respeito
que tenho à opinião de cada um. Como eu, são adultos e também tiveram as mesmas
oportunidades de se informar e de formar seus pensamentos.
Acho até certa ingenuidade quando vejo amigos de esquerda
alertando a massa que prega um regime de exceção, como intervenção militar, por
exemplo, sobre os perigos que isso possa representar para o cidadão comum. Acho
ingênuo porque, de fato, dificilmente essas pessoas (gente como eu, diga-se) serão
diretamente afetadas pelo governo. Qualquer governo. Quem tem casa, carro,
diploma, sítio, plano de saúde, passaporte etc. vive altos e baixos, aperta o cinto
hoje, gasta em outlet amanhã e, no mais, toca a vida.
É claro que alguns se ressentem mais de momentos econômicos
críticos como o atual e demonizam o governo, ainda que estejam patinando em
dívidas ou em falta de oportunidades de trabalho porque fizeram escolhas erradas,
ou gastaram demais e pouparam de menos. Mas raramente uma pessoa dessa classe vai
militar politicamente ou incentivar seus filhos a fazê-lo. Geralmente, vai
fugir de “confusão”, levando sua vida de “Ouro de tolo”, na certeza de que
político é tudo igual. Não é pela ameaça da supressão de direitos que alguém
vai alertá-los para o risco de um recrudescimento político e social. Nem por
isso, vou ironizar suas escolhas, chamá-los de ignorantes, vociferar contra o
que acreditam.
Manifestante não identificada na Avenida Paulista: não sei quem você é, mas você me representa |
Se é fácil fazer isso porque os laços que me unem a muitos
deles são os de afeto, não acho que seja impossível transportar a mesma tática
para os que eu pouco conheço. Porque, para além do discurso raivoso, das ideias
opostas ou simplesmente da aparência, pode ser que haja uma fagulha de diálogo.
Da mesma forma que o companheiro na Paulista percebeu que, atrás do meu jeito
de madame, havia ali alguém que, em grande medida, afinava o pensamento com o
dele.
Não vou terminar sem expressar mais claramente o que penso “de
tudo isso que está aí”. Mas vou fazê-lo com a ajuda do amigo Pablo Villaça, que
publicou ontem este texto. Depois de lê-lo, eu ansiei muito pelo abraço que
encerra a narrativa. Sintam-se, todos, abraçados.
8 comments:
Ótimos textos. O seu e o do Pablo.
Muito bom, parabéns pelo texto!
Amei o texto e me identifiquei, companheira. Abraços
Amei o texto e me identifiquei, companheira. Abraços
Um belo artigo que fiz publicar no face BRASIL SOBERANO. Parabéns dona Alessandra.
PS: sempre me considerei de "esquerda" (pessoa preocupada mais com o social e não com o capital) e quando me fazem reparos por isso, digo sempre: JESUS, por acaso pregou o capitalismo, ensinou que devemos acumular riquezas materiais OU ensinou-nos amar o próximo como a nós mesmos, a sermos solidários com os nossos semelhantes?
Muito obrigada, Adolfo, Silvana, Rosi e Tercio. É muito bom saber que não estou sozinha.
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