Tuesday, July 13, 2010

Cuca legal


O primeiro parágrafo deste post é uma confissão púbica. Quando consegui meu primeiro emprego, fui trabalhar em um local que mantinha o péssimo hábito de cancelar minhas folgas de maneira muito arbitrária. Sempre fui dedicada, CDF de dar nos nervos, mas uma hora me enchi e resolvi parar com a brincadeira. Ligavam do jornal, eu atendia e dizia, simplesmente: “Sinto muito, ela não está, não sei a que horas volta.” Se me perguntassem quem estava falando, respondia impávida: “É a mãe dela, pode deixar, eu dou o recado.” O segredo manteve-se enterrado por tantos anos por uma razão desconcertante de tão simples – minha voz é idêntica à da minha mãe. Nunca pretendi ou precisei imitar a voz da minha mãe. São iguais, apenas isso.

Isto posto, marco desde já minha posição em relação àqueles que se referem a Maria Rita como uma “imitadora de Elis Regina”. Genética, minha gente. A voz da filha é igual à da mãe, como igual é seu sorriso que deixa ver tanto dentes quanto gengiva, e espreme os olhinhos a ponto de virarem dois risquinhos chineses acima das bochechas protuberantes. Já escrevi sobre Maria Rita neste post, quando ela lançou o terceiro CD, Samba meu. Na época, não fiquei tão encantada com o disco, como havia ficado com os dois primeiros, mas depois fui vencendo o preconceito e curti muito várias faixas daquele disco. Nesta segunda-feira, fui ver Maria Rita pela primeira vez em carne e osso, em um espetáculo “íntimo e intimista”, como ela mesma definiu, no Tom Jazz.

Flashback rápido. Em 1980, eu era leitora por tabela da revista Claudia, comprada mensalmente pela minha mãe. A revista (quem se lembra?) tinha um encarte fixo, em papel jornal, com notas curtas, tipo notícia mesmo, sem a profundidade das matérias sobre comportamento, moda e beleza, que formavam a piéce de resistance da publicação. Notas, por exemplo, sobre espetáculos. Lembro de ler sobre “Saudade do Brasil”, espetáculo da Elis em cartaz, na época, no Canecão, Rio de Janeiro. O texto era mais ou menos assim: “Além de ver o show, você pode beber uma cerveja e beliscar batatinhas fritas enquanto isso.” Achei um descalabro: como alguém pode mastigar uma porção de fritas engorduradas enquanto Elis Regina canta “Conversando no bar”?! Respirar no mesmo recinto já é quase uma afronta, quanto mais comer e beber enquanto o milagre se processa ali, na sua frente. Enfim, nunca gostei de lugares onde se canta, se toca e se come ao mesmo tempo. Música, para mim, não é pano de fundo, é centro das atenções. O Tom Jazz é uma casa onde se canta, se bebe, se come e se toca, tudo ao mesmo tempo. Sempre vou preferir teatros, mas não nego a vantagem de estar em um local com essa configuração “intimista”: a mulher fica logo ali, a poucos passos de distância. Quem quiser comer e beber, paciência. Eu fui para ouvir. Oh, boy... E como ouvi.

Acústica excelente e músicos idem. Tiago Costa no teclado, Sylvinho Mazzuca no contrabaixo e Cuca Teixeira na bateria, aquele formato jeans-e-camiseta que Maria Rita vestiu nos primeiros shows e discos. E que este figurino fique apenas no sentido figurado, porque a moça está glamourosa que só ela, sequinha dentro de um vestido reto, curto e justo de paetê grená, cabelão poderoso. A sensação de pocket show termina ao primeiro acorde. O som dos três instrumentos preenche a casa de shows como uma massa musculosa de timbres bem definidos. E quando Maria Rita surge, sem alarde, o quarto instrumento se instala e a jam session começa. Músicos, meio brincando, meio dizendo a verdade, às vezes caçoam de cantores, chamando-os de canários, como se fosse mais fácil “apenas” moldar a voz à melodia do que dedilhar cordas, ou espalmar as mãos em acordes virtuosos sobre o teclado. Que isso valha para certa classe de cantores, mas não para músicos-cantores como é Maria Rita.

Eu imaginava que ela tinha essa característica, tive a certeza vendo-a ao vivo. “Há canções e há momentos, eu não sei como explicar, em que a voz é um instrumento que eu não posso controlar”, canta Milton Nascimento em “Canções e momentos”. Maria Rita, cantora, é a quarta instrumentista do grupo. Canários reproduzem a melodia, instrumentistas não se contentam. Reinventam. Por isso é tão recompensador ouvir Maria Rita cantar músicas que outros já gravaram. Ela subverte um rock em balada, transforma foxtrot em jazz. Foi o que fez, neste show, com “Só de você”, de Rita Lee, gravada com participação especial de César Camargo Mariano, pai de Maria Rita, no já longínquo ano de 1982. Maria Rita pegou a canção, confabulou com os colegas músicos e fez da deliciosa baladinha pop um jazz poderoso.

Foi na mesma linha com “A história de Lily Braun”, do espetacular LP “O grande circo místico”, gravada originalmente por Gal Costa, naquele mesmo período, início dos anos 1980. Neste caso, a releitura transcende a própria música. Maria Rita parece subir uma montanha enquanto canta a saga da cantora de cabaré que arrebata um fã. O fascínio, o flerte, a conquista, a paixão, a Lily Braun de Maria Rita vai subindo ao céu enquanto se consuma o encantamento com o homem dos seus sonhos. Mas eis que a cantora da história sucumbe ao pedido de casamento, abdicando do palco, da trupe, da turnê. Neste momento, Maria Rita vai além da interpretação afinada e irrepreensível de Gal. Ela – e seus músicos, claro – depois de atingirem o céu com a paixão de Lyly Braun, parecem começar a descer uma ladeira imaginária. “Nunca mais romance, nunca mais cinema, nunca mais drink no dancing, nunca mais cheese, nunca uma espelunca, uma rosa nunca, nunca mais feliz”. Cantora, instrumentista, atriz. Maria Rita contou e viveu a história de Lily Braun, transpirando na voz e na expressão corporal o contraste de sentimentos da personagem.

Maria Rita conta que escolheu o repertório deste espetáculo com base em “músicas que gosta de cantar”. Termina com sua interpretação arrebatadora de “Minha alma”, d´O Rappa, que já defini outras vezes como “o ouro de não-tolo do século 21”. Raul Seixas nos deu “O ouro de tolo” na época do milagre, um retrato da classe média acomodada com seus valores de pequeno burguês. O Rappa desnudou o inconformismo diante dos valores segregacionistas da elite que se esconde atrás das grades do condomínio. Maria Rita termina o show com esta canção-manifesto, entregue ao esforço vocal que impôs à música com sua interpretação intensa. Termina extenuada, para depois voltar e arrematar com “Encontros e despedidas”, de Milton e Fernando Brandt, e mais uma vez, “Cara valente”, do hermano Marcelo Camelo.




Quando Milton Nascimento deu “Encontros e despedidas” para Simone gravar, em 1982, senti o gesto como uma invasão. Ora, Simone parece ser uma pessoa doce, uma cidadã engajada, uma mulher de enorme valor. Mas, perdão, “Encontros e despedidas” evidentemente era uma canção feita para Elis. Milton sempre disse isso. Compôs a vida inteira para Elis, antes que ela gravasse sua primeira música, “Canção do sal”, continuou compondo por muitos anos, e seguiu pensando na voz dela, para suas canções, mesmo depois que ela morreu. Ao ouvir “Encontros e despedidas” na voz de Simone, pela primeira vez, levei um choque. Nunca deixei de ouvir esta e várias outras músicas pensando como ficariam na voz de Elis. Durante algum tempo, tive um sentimento ambíguo por Elis Regina. Amava devotadamente sua obra, mas não conseguia absorver sua morte, precoce, sofrida, estúpida, evitável, chocante. Elis, como observou a própria Gal Costa, certa vez, era capaz de vivenciar a emoção de suas músicas de uma forma quase incompreensível até mesmo para cantoras. Quem a viu cantar “Atrás da porta”, aos prantos, sabe do que estou falando. Cantava, chorava, sofria verdadeiramente com a letra, e não saía do tom! Elis não cantava apenas, Elis sentia as canções.

Por isso, nesta segunda-feira, vendo Maria Rita segura, altiva, absoluta em uma carreira que é dela, não de sua mãe, tive a sensação de que Elis estaria satisfeita. Porque é impossível pensar que ela cantava que queria “a esperança de óculos, e meu filho de cuca legal”, sem ter certeza de que ela não só cantava, mas vibrava intimamente por isso. Aquela cantora-instrumentista-atriz que eu vi no palco do Tom Jazz é a filha de cuca legal com que uma mãe pode sonhar.

29 comments:

Carolinaxis said...

Lindo post!

Antonio C R Colucci said...

Fantastico e merecido! Parabéns!

Colucci
@antoniocolucci

Anonymous said...

Vi o tweet da MR, e entrei pra ler... Muito bom! Adorei!

Beijos,
@fabianacunha

Amanda Estévez said...

que emoçao.

@AmandaEstevez

Carol said...

Cheguei até este blog através do twitter da Maria Rita. Adorei.

Muito, muito bom.

@tacaroline.

Davina said...

this is it!!

Mari said...

Fiquei arrepiada do começo ao fim... excelente texto! excelente homenagem!!

Alessandra said...

Alessandra inspirou o show e expirou o texto.Ponto. Perfeito!

Zezezen24. said...

Em verdade, em verdade...Vos digo que está absolutamente correto, e eu AMEI!! Bjins BHZ

Caricaturas Urbanoides said...

hummm gostei do texto, mas não posso deixar de falar sobre o comentário da Simone. Sim, encontros e despedidas poderia ser gravado por Elis, ficaria bonito? Sim, Elis arrebenta, mas Simone não faz nem um pouco feio..
Bem, não sou fã dessa musica.. acho a letra bonita, mas a melodia chata..enfim..Cada uma tem a sua qualidade e sua imperfeição.

Bjs

Wilck Camilo said...

Perfeito o post, isso precisava sair na globo (risos) muito lindo, Maria Rita essa mulher é merecedora.

Lusiane said...

Bonito texto! Sincero, delicado, sensível e bonito...

Quem assistiu Maria Rita no inicio dos tempos sabe bem do que tu estás falando!

É isso, tudo já foi dito!

Parabéns

Anonymous said...

@ricanacarato23 seguindo orientação da cantora (musa) entrei no link e realmente o post é ótimo!!!
parabens

Mah said...

Como nao concordar?

Sincero e perfeito..

Carol Costa said...

Caracaaaaa....arrepiada até agora!!!

Não consegui ser contemporânea de Elis (INFELIZMENTE), mas sou da Rita...e sou muito feliz por isso!!!!

Obrigada por nos contemplar com tamanha beleza de post!!!

Grande abraço!!!

Carol Costa said...
This comment has been removed by the author.
Anonymous said...

Gostei do texto, obrigado por nos fazer sentir o gostinho q foi ver a Maria Rita de perto.

@cauepina

Camilla said...

Materializou em palavras o sentimento de vários brasileiros.

Eu tb nao vi Elis, mas sou eternamente grata por poder ver Maria Rita: um ser humano simples e intenso que nos transmite em cançoes amor, inquietação, paz e outros.

Celso Vedovato said...

Ainda bem que a Sra. Alessandra Alves está escrevendo menos neste Blog, pois os adjetivos para os textos vão tornando-se repetitivos. Desta vez não posso deixar de escrever que este texto está brilhante, não "falso brilhante", brilhante de reluzente, com é a obra de Elis, como é Maria Rita.
Deixo um presente:
http://www.youtube.com/watch?v=dd8XlnYMpkw
Grande abraço

Giz said...

Alessandra, seu post me deixou com uma vontade de ouvir Elis e Maria Rita. Já estava com saudades do seu texto...

Anonymous said...

-como alguém pode mastigar uma porção de fritas engorduradas enquanto Elis Regina canta “Conversando no bar”?! Respirar no mesmo recinto já é quase uma afronta, quanto mais comer e beber enquanto o milagre se processa ali, na sua frente.
-Música, para mim, não é pano de fundo, é centro das atenções.

Que palavras inteligentes! Acho que umas das mais verdadeiras que ja li.
Um Abraço

Homero said...

Eu tive a felicidade de "seguir" a Elis, fui a muitos shows dela e curti todos LP's. Seu "post" é muito bonito e vc merece ser chamada de fã de Elis como poucos. Qto a MROFICIAL eu a sigo desde o dia que ela apareceu no twitter. Ela é uma mulher especial tal qual sua mãe. É genetica mesmo.
Homero

Ron Groo said...

Claro... A Genética pode explicar a semelhança da voz (incrível as vezes) e a criação da moça pode explicar o gosto por sambas jazzificados e/ou puros.

Mas - e sempre tem um - não explica a postura de palco (identica a da mãe em certos numeros), a "dança", a orientação de carreira (até o hábito de gravar novos compositores e velhos ícones da canção) A seqüencia de discos (canções inéditas, sambas de raiz, enfim...

Mas isto tira o valor de Maria Rita?
Para quem gosta de musica bem cantada e tocada não.
Quem dera todos os filhos de grandes artistas fizessem coisas tão boas quanto faz Simoninha e Max de Castro, filhos do grande Simonal, Jair Oliveira (não riam, o ex-Jairzinho é um compositor e arranjador de mão cheia), Léo Maia, filho do síndico Tim e claro: Maria Rita, filha da Pimentinha.

Desculpe alongar Alessandra, mas teu texto inspira.
Vou até ficar o dia todo cantando...:
"-A barca segue seu rumo lenta
Como quem já não
Quer mais chegar
Como quem se acostumou
No canto das águas
Como quem já não
Quer mais voltar...

valéria mello said...

Assisti um pedacinho de um show da Maria Rita na Feira do Livro de Ribeirão, mas foi meio truncado, estava chovendo, nem deu pra ficar até o fim.
Realmente uma cantora como ela merece ser apreciada em um lugar onde só a sua voz possa reinar.

Adorei seu texto!

Anonymous said...

Alessandra,
Eu morei dois anos em Londres e, quando estava numa indecisão gigantesca se voltava ou não, fui a um show da Maria Rita, no Barbican, uma casa de shows pra 'gente grande' de Londres. Vendo aquela mulher de perto cantando o samba como se fosse fácil (ela tinha acabado de lançar 'SAmba Meu', decidi que algo bom estava acontecendo em terras tupiniquins e, um mês depois, voltei ao Brasil. Cá estou, até hoje, apaixonado pela MR e pelo Brasil.
Seu texto está lindo! Sou jornalista como você e a sua sensibilidade - que faz ta falta na nossa profissão - é coisa rara! Emocionante. Parabéns!

@MarcioSouza28

Anonymous said...

Brou, lágrimas nos meus olhos!
Texto maravilhoso, e lembrei de algo importante: estão faltando digitalizar as músicas delas no Celular!

Gustavo Alves

Unknown said...

Parabéns pelas palavras, Alessandra.
Cheguei ao texto através do tweet da Maria Rita.
E concordo em gênero, nº e grau!
E para mim, uma canção foi capaz de traduzir e sintetizar todo esse sentimento que vc expressou sobre o show: Conceição dos coqueiros.
Bjs
Fabi

Álvaro Vinícius de Souza Coêlho "Degas" said...

Ela é linda. Mais do que a mãe, em minha modesta opinião masculina.

E é genial, quase tanto quanto a mãe, em minha modesta opinião de platéia.

E é um alento que exista Maria Rita num mundo de pagode, arsocha e sertanejo, em minha modesta opinião de ser Inteligente.

Unknown said...

Parabens Alessandra, lindo texto de muita sensibilidade !!!
Parabens do titio Nicolau