É impossível ficar uma hora e cinquenta minutos escutando a
arte de Tom Jobim e Elis Regina e não sair com um sorriso no rosto. O
documentário “Elis & Tom – Só tinha de ser com você” traz imagens da
gravação do disco, lançado em 1974, bastidores dessa gravação, entrevistas
recentes com personagens desse álbum e muita música. Como poderia ser uma
experiência ruim ouvir “Águas de Março”, “Só tinha de ser com você”, “Pois é”,
“Chovendo na Roseira”, “Modinha”, “Por toda a minha vida” e outras? Ouvi-las em
ensaios, nas gravações, nas audições dos próprios artistas, ainda no estúdio,
em vídeos promocionais do disco é puro deleite. E quando se lembra que tudo,
absolutamente tudo ali exposto, é fruto de pura arte, sem recursos tecnológicos
que operam milagres para melhorar a qualidade do som, inclusive afinar vozes, o
deleite vira deslumbramento.
“Elis & Tom – Só tinha de ser com você”, no entanto,
persegue a confirmação de uma tese: a de
que Elis se tornou uma cantora mais contida, técnica e precisa após a gravação
desse disco. Além da tática “jornalismo declaratório” (se alguém disse, é
verdade), o filme também comprova tal tese com gravações de Elis anteriores ao
álbum gravado com Tom Jobim. Nelas, Elis aparece em performances grandiosas,
soltando a voz em arranjos exuberantes, com muitas cordas e metais.
Elis, de fato, surgiu assim para a grande mídia sudestina,
em 1964, quando se mudou de Porto Alegre para o Rio de Janeiro. Era a cantora
“hot” em um ambiente Bossa Nova incensado como “cool”. Era uma intérprete vibrante,
dramática, que agitava os braços enquanto vencia um festival, cantando
“Arrastão” e ganhando o apelido de “Hélice Regina”. Era a anfitriã de um
programa em horário nobre da mais importante emissora de TV da época. E, em que
pese chamar-se “O fino da Bossa”, a atração trazia Elis e seu colega Jair
Rodrigues embalados em sambas rasgados, em músicas de cunho social (“de protesto”),
em uma efervescência que pouco ou nada tinha a ver com a sofisticação dos
apartamentos refinados de Ipanema onde nasceu a Bossa Nova.
Elis, cantando Arrastão: Hélice Regina
A cantora continuou não sendo “cool” quando deu uma guinada,
no final dos anos 1960, e incluiu Roberto Carlos, Beatles e Tim Maia em seu
repertório, em uma fase de sua carreira que contou com a produção de Nelson
Motto. Elis, também não era contida nem minimalista quando comandou outra
atração de TV, ao lado de Ivan Lins, já no início dos anos 1970.
Mas nada foi como antes quando Elis encontrou em César
Camargo Mariano seu mais frequente parceiro na música. Foram nove anos de
conjunção musical (e casamento). O primeiro álbum dos dois juntos, em 1972, configurou
um importante ponto de virada da personalidade de Elis como cantora. Foi
naquele álbum, que contém a primeira gravação de “Águas de Março”, e também
“Atrás da Porta”, “Casa no Campo”, “Nada será como antes”, “Mucuripe”, entre
outras, que Elis despiu-se da grandiloquência dos arranjos e passou a entregar
interpretações muito mais precisas, contidas, diretas.
O disco de 1972: o ponto dessa virada
Pianista e arranjador, César concebeu para esse primeiro
trabalho dos dois um conceito musical que mesclava as sonoridades do samba e do
jazz, com uma densidade sonora que incluía Elis não como uma crooner, que
habitualmente se estimulava a cantar alto e forte para vencer com sua voz os
instrumentos. Ali, ela passa a ser uma integrante daquele grupo de músicos ao
seu redor. O que parece uma interpretação contida, quase minimalista de Elis, a
partir desse disco, é o resultado de um equilíbrio entre vozes – do piano, da
guitarra, do baixo, da bateria, de Elis.
O álbum seguinte, de 1973, que trouxe “Ladeira da Preguiça”,
“Meio de Campo”, “Oriente”, “É com esse que eu vou”, entre outras, tem uma
personalidade diferente do disco de 1972, mas continua seguindo a receita da
precisão, do equilíbrio, de uma interpretação contida, afinada e afiada.
Por isso, parece incorreta a tese de que “Hélice Regina”
tenha se tornado uma cantora mais sofisticada, precisa e “cool” apenas depois
de gravar com Tom. Antonio Carlos Jobim foi um compositor extraordinário.
Moderno, inventivo, revolucionário até. É correto dizer que, ao gravar com Tom,
em Los Angeles, Elis provavelmente buscava acoplar sua imagem ao prestígio que
o compositor brasileiro já tinha no exterior. Mas essa transmutação veio pelo
menos dois anos antes do histórico álbum Elis & Tom.
Afirmar que Elis tornou-se uma cantora mais refinada depois desse
disco é repetir a visão preconceituosa e elitista que classifica como música “de
bom gosto” apenas o que tem a chancela das eminências pardas da dita MPB.
Inclusive porque essa versão contida e minimalista da intérprete Elis Regina
não se manteve como sua única versão nos oito anos que se seguiram, até sua
morte, em 1982.
Dois anos depois de “Elis & Tom”, ela rasgava a voz em “Como
nossos pais” e “Gracias a la Vida”, e emulava novamente as cantoras do rádio,
como no início de carreira, em “Fascinação”, no também histórico “Falso
Brilhante”. Alguns anos mais tarde, Elis perfilava-se de novo ao lado de
orquestras exuberantes para soltar sua potência vocal em registros como “Cai
Dentro” e “Eu, hein, Rosa”, e duelava prazerosamente com Cauby Peixoto em “Bolero
de Satã”, qual uma nova versão de Angela Maria, uma de suas grandes
referências.
Cauby e Elis, 1979: soltando as vozes
Não bastasse o que veio depois de “Elis & Tom”, convém
parar para ouvir o que Elis produziu no Rio Grande do Sul, ainda adolescente,
quando foi lançada no mercado fonográfico como um genérico de Celly Campello.
Nos discos em que desempenhou esse papel, Elis já era capaz de interpretações
contidas e românticas, porque era o que se esperava de uma cantora cuja
aspiração maior deveria ser embalar o romance dos casaizinhos de sua geração.
Elis Regina amadureceu como artista, naturalmente, mas foi
sempre uma cantora incrivelmente versátil, que moldava sua voz e sua interpretação
ao momento que estava vivendo. Talvez, em 1974, quando se uniu a Tom, ela
passou a cantar aquilo que a turma do “bom gosto” esperava dela. O que não quer
dizer que ela não sabia fazer isso antes.