Friday, September 13, 2019

No Coração do Mundo



Quando Stanley Kubrick resolveu filmar seu primeiro longa-metragem, em 1953, optou por uma história de guerra ambientada na selva. Classificado pelo próprio diretor como um trabalho amador, Medo e Desejo foi renegado por Kubrick. Dois anos depois, de volta aos longas, o diretor nova-iorquino seguiu o conselho de um amigo e dirigiu A morte passou por perto, história de um lutador de box que se envolve com o mundo dos gângsters de Nova York. Por trás do conselho estava uma senha: aborde um mundo que você conhece e parte de seus problemas estará resolvida. A familiaridade de Kubrick com o cenário do segundo longa ajudou a alavancar sua carreira, mas nem por isso ele se tornou um diretor capaz apenas de fazer filmes de gângster em Nova York. Kubrick transitou por gêneros tão diversos quanto filme de guerra, romance, ficção científica e drama psicológico que até hoje, vinte anos depois de sua morte, vez por outra ainda se aponta um ou outro diretor como possível herdeiro do norte-americano – e isso quer dizer: fulano sabe dirigir qualquer gênero.

Gabriel Martins e Maurílio Martins apresentaram seu primeiro longa-metragem em 2019, No Coração do Mundo. Como Kubrick, que antes de lançar o primeiro longa também dirigiu alguns curtas, Gabriel e Maurílio iniciaram carreira nesse formato, com a diferença de já terem mais de dez anos de experiência. Assistir a No Coração do Mundo, conhecendo a obra dos dois diretores, é se reencontrar com o mesmo ambiente e com alguns personagens que já transitaram por outros filmes, especialmente os curtas Contagem (2010) e Dona Sônia Pediu uma Arma para Seu Vizinho Alcides (2011). Contagem não é só nome de filme: é a cidade da região metropolitana de Belo Horizonte onde os dois diretores cresceram. Como Kubrick, à vontade filmando Nova York, Gabriel e Maurílio movem-se com desenvoltura em Contagem e essa familiaridade transparece no filme. O que não quer dizer que serão para sempre cineastas circunscritos à cidade natal, crivada de carências, nem que sua obra tenha de espelhar essa precariedade. Aliás, No Coração do Mundo, mesmo sendo o primeiro longa, parece anunciar que ambos já não cabem em qualquer rótulo que junte as palavras “cineasta” e “periferia”.

Selma (Grace Passô), em cena que homenageia Carlos Reichenbach


No Coração do Mundo é um western urbano e a presença do rap Texas, do MC Papo, logo no início, parece não deixar dúvidas quanto à intenção do filme em ser reconhecido como um faroeste da periferia. Não tão rápido. No Coração do Mundo também é romance e várias situações, estrategicamente engendradas como poderosos alívios cômicos, permitiriam, sem exagero, identificar ali traços de comédia romântica. Não só. No Coração do Mundo também é drama, suspense, ação, em camadas sobrepostas que denotam não apenas a evidente cinefilia de seus autores, como a evolução de seu fazer cinematográfico. Pois, se Contagem e Dona Sônia estão ali, de alguma forma (ou de várias), a forma final do longa é uma evolução evidente dos cineastas que maravilharam o diretor Carlos Reichenbach quando surgiram no Festival de Brasília de 2009.

Carlão está no filme, homenageado como nome de escola. Lá atrás, na gênese da dupla, o diretor veterano assistiu a Contagem em Brasília e, impactado com o trabalho dos dois jovens, escreveu um artigo em seu blog intitulado “Fez-se a luz em Contagem”. À época, Carlão exalou encantamento em ver, pela primeira vez, um filme rodado em câmera digital que a ele parecia feito em película. De lá para cá, os dois jovens mineiros aperfeiçoaram sua linguagem cinematográfica e sua técnica. A ambientação da periferia está lá, o hábil processo de criação de empatia com aqueles personagens está lá. Mas estão também o rigor no corte preciso – apenas quando essencial – e a obstinação pelo plano, a ponto de construir várias cenas em planos longos e passagens desafiadoras em planos sequência que vão sinalizando, ao longo do filme, que Gabriel e Maurílio cresceram. E, cineastas adultos que são, sabem-se aptos a aumentar o volume, a velocidade e a tensão da trama a ponto de produzirem sequências de ação irrepreensíveis, coroando o filme com um desfecho calcado em movimento e violência, elementos abundantes naquela Contagem que tanto conhecem, ali usados como matéria-prima de uma narrativa coesa.

Maurílio Martins (à esquerda) e Gabriel Martins

 Sim, Gabriel e Maurílio cresceram – em um universo pontuado por mulheres fortes. Na periferia, cineastas filmam em locação menos por influência de John Ford e mais por falta de recursos. Mulheres tornam-se fortes menos por serem arianas com ascendente em Leão e mais pela premência de criar filhos, sustentar a casa, cuidar de pais idosos, muitas vezes sozinhas. As mulheres de No Coração do Mundo são diligentes e estão sempre em movimento: Selma (Grace Passô) dirige (e como dirige!) seu ou qualquer outro automóvel. Rose (Bárbara Colen) planeja uma mudança de vida tornando-se motorista de Uber. Ana (Kelly Crifer) circula o dia inteiro como cobradora de ônibus, e ainda que a vida pareça prendê-la em um feroz carrossel que nada tem de música infantil, ela se move. Os homens, sem exceção, surgem letárgicos.

Ainda que No Coração do Mundo não se apresente como um filme essencialmente feminista, ele se torna o retrato de uma comunidade que vive à margem de uma capital de estado, formada por famílias marcadas pela carência e pela falta de horizonte (belo ou não). E essas famílias, quase sempre, são guiadas por mulheres. No Coração do Mundo é um agudo retrato de um lugar e de um tempo em que as mulheres continuam sendo “o crioulo do mundo”, como cantou John Lennon. Esse mundo Gabriel e Maurílio conhecem bem, e o primeiro longa deles deixa isso muito claro.

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