Vida passada a limpo pelo crivo da arte |
“Na velhice, você se desprende de tudo. ” Surgindo como uma
espécie de consciência de si mesmo no autobiográfico “Poesia sem fim”, o
diretor chileno Alejandro Jodorowsky, aos 88 anos, verbaliza ao final de seu
mais recente longa algo que vai se tornando claro ao espectador durante os 128
minutos de filme. Aquele é um exercício catártico, de um homem apaziguado com seus dramas familiares, mas de um artista inquieto, em que pese a idade.
O conselho de desprendimento para o jovem artista, vivido
por Adam Jodorowsky (filho do diretor), parece seguido à risca na concepção do
filme. O velho diretor desprende-se inclusive do simulacro que habitualmente cerca
a obra de arte e, logo no início, Jodorowsky menino surge ao lado dos pais em
um bairro que não se pretende outra coisa que não cenário. O recurso vai se
repetir muitas vezes durante o filme, com homens vestidos de preto compondo ou
desconstruindo ambientes, sem cerimônia.
O jovem Alejandro (Jeremias Herkovits) e o diretor, enquanto consciência |
Como em seu longa anterior, “A Dança da Realidade”, primeira
parte dessa jornada autobiográfica, os pais do artista surgem em representações
alegóricas. O pai, vivido por outro filho do diretor, Brontis Jodorowsky, é um
tirano de inclinações nazistas, que oprime inclemente a vocação artística do
garoto. A mãe, uma iídiche mama típica, vivida pela extraordinária Pamela Flores,
canta dramaticamente todas as suas falas, como se estivesse em uma ópera eterna.
Já no início do filme, um elemento visual importante surge na tela: bicicletas,
e elas voltarão à história em momentos cruciais da narrativa.
A ruptura do jovem Alejandro com a família não poderia ser
mais literal. Ao ceifar a árvore no quintal da avó, ele se desprende de sua
genealogia e assume o risco de ser artista, abraçando uma vida que será, em
tudo, diferente da rotina familiar. A paleta de cores do filme acompanha a
mudança. Saem o marrom, o ocre e o vermelho envelhecido da casa paterna para
explodirem as cores vivas dos artistas e das obras que passam a circundar
Alejandro.
A presença dramática da mãe permanecerá relevante,
transformada na colossal mulher que se apresenta como a primeira relação amorosa
de Alejandro. Freud explica. E continuará explicando com a presença de espelhos
que se multiplicam na história, como no personagem Enrique Lihn (Leandro Taub),
quase um duplo do jovem poeta.
O espelho: presença recorrente em "Poesia sem fim" |
Com fotografia de Christopher Doyle, “Poesia sem fim” não se
pretende nunca naturalista. Se esta é uma história de vida passada a limpo, ela
chega pelo crivo da arte, como se saída mesmo da mente do artista, em cores por
vezes fortes e contrastantes, em outras, opacas e minimalistas. Os cenários e
as situações são surreais, os diálogos, muito mais idealizados do que realistas.
Cercado de uma trupe de artistas, de novo Alejandro se vê cercado de
bicicletas, como no cabide da casa de Enrique Lihn ou no passeio que leva o
grupo de volta ao bairro da infância do poeta.
O rescaldo da antiga residência revela objetos e lembranças
dos tempos da opressão paterna e da presença ostensiva da mãe. Entre eles, de
novo, a bicicleta, agora queimada, como símbolo da ruptura definitiva, um “rosebud”
às avessas. A cinta da mãe, presa a balões que a elevam para a liberdade do céu,
surge como homenagem àquela figura trágica que talvez tenha sido tão ou mais vítima
do jugo paterno que o jovem Alejandro. O ambiente do país, entregue a um
salvador da pátria fascista, típico das Américas, ancorado na perene luta
contra a corrupção, oferece o argumento definitivo para a partida do poeta.
Alejandro segue para a Europa, não sem antes confrontar-se
novamente com o pai, lutando literalmente com o velho tirano, depois de
quebrar... um espelho. Filme ou psicanálise? Freud na veia, de novo. “Ao não me
dar nada, você me deu tudo”, diz o filho já envelhecido para o pai, em uma
conciliação só possível pela arte. Poesia pura, “Poesia sem fim”.
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