Era um final de tarde de sábado, abril, com certeza. A
rotina de sempre: adiantando refeições para a semana, as cinco bocas do fogão
emprestavam calor para panelas que cozinhavam arroz, feijão, legumes. Na panela
de pressão, uma carne em cubos se preparava para virar carne de panela.
Sempre que estou nesse ritmo multitarefas, em casa, recordo um
editorial da revista Claudia. Anos 1980, acho. Lembro bem que a editora era
Maria Cristina Gama Duarte, definindo um fogão com ocupação máxima como a
tradução da mulher contemporânea. Há que fazer muita coisa, e rápido, tudo ao
mesmo tempo. Não é a mesma coisa que fazer toda a comida na hora, servir-se direto
da panela, claro. Mas é isso ou lasanha congelada. Eleve-se o fogo, nas cinco
bocas, então.
Também não é a mesma coisa usar alho triturado, comprado em
potinhos, que descascar os dentes, picá-los ou amassá-los. Mas é isso ou mão
fedendo a alho. Abra-se o potinho que a carne já está no ponto para temperar. O
pote de plástico, aquele lacre, uma faca de ponta, a carne chiando na panela,
vai, rápido. Enfio a ponta da faca no minúsculo espaço entre o lacre e o pote,
forço para cima. Vai lacre, tampa, tudo de uma vez, até a ponta da faca parar
dentro da minha mão, fazendo um talhe naquela parte de pele mole, entre o dedão
e a palma.
Em casa, como sempre, só eu e meu filho, menos que um
adolescente, na época. Ao meu lado, na pia, ouve minha frase, ainda em tom
comedido. “Cortei a mão.” Abro a torneira, coloco a mão embaixo da água fria.
Sangue. Olho atenta para o corte. Um talhe relativamente profundo. Sangue.
Enfio de novo a mão embaixo da água. A pia vai se tingindo de rosa. Sangue. Desmaiei
pela primeira e única vez na vida.
Ato seguinte, estou deitada no chão da cozinha. O menino
grita, eu desperto.
O resto da história não tem nada de dramático. Pronto-socorro,
um ponto no corte, curativo, final de noite em paz. Os que ouviam a história,
nos dias seguintes, sempre faziam a mesma observação: “ah, eu também não posso
ver sangue que desmaio”. Errado. Não desmaiei porque vi sangue, nunca tive esse
tipo de reação. O processo mental que me levou ao ataque de ansiedade – esse,
sim, um velho conhecido, mas nunca antes concluído em desmaio – não foi uma
crise de hemofobia.
Lembro, nitidamente, do meu último pensamento antes de
desabar, sem nenhum glamour. “Cacete, vai acontecer comigo o mesmo que
aconteceu com Nena Daconte.”
Acho que já fazia mais de dez anos que eu tinha lido o conto
“O rastro do teu sangue na neve”, de Gabriel García Márquez, mas nunca deixei
de associar a ideia de “sangrar até morrer” a essa história, publicada no livro
“Doze contos peregrinos”. O idílio de um jovem casal, em lua de mel pela
França, termina de forma trágica, por conta de um corte no dedo, provocado pelo
espinho de uma rosa. Não foi o sangue na pia, foi a evocação do rastro de
sangue na neve, terminando em morte, que me fez desmaiar.
Aqueles que têm o hábito de fruir a arte costumam
identificar-se com filmes, livros e letras de música, repetindo que tal obra
parecer ter sido feita para eles. Tenho outra tese. Gente dessa estirpe – os que
amam a arte – por vezes parecem moldar sua personalidade para se parecer com os
personagens dessas obras.
Será que gosto tanto da letra de “Dona”, de Sá &
Guarabyra, porque ela evoca uma mulher que se parece comigo ou será que me
forjei como alguém para quem “não há pedras no caminho, não há ondas no mar,
não há vento ou tempestade que impeçam de voar”? Será que me enxergo tanto em “Ruby
Tuesday”, dos Rolling Stones, ou teria eu me moldado para ser uma mulher livre,
“porque esse é o único jeito de ser”?
Não, não acho provável que eu tenha me cortado de propósito
para emular Nena Daconte. Mas também não nego que aquele corte na mão, por dias
seguidos, criou a confortável ilusão de que enfrentei a Mamba Negra, de Kill
Bill, em um duelo de facas. A julgar pelo corte mínimo, venci.
Vivica A. Fox e Uma Thurman, na cena da luta de facas, em Kill Bill volume 1 |
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