Capa do LP Elis - Em pleno Verão, de 1970 |
No primeiro domingo deste ano, a cantora Maria Rita
apresentou o programa “Sai do chão”, na Rede Globo, recebendo vários
convidados. Ao cantar “Romaria” com ela, Sérgio Reis chorou. Mas o trecho do
programa que mais me impactou foi o dueto com Marcelo D2. Entre outras, a dupla
cantou o rap “Desabafo”, do próprio D2. Sou ignorante no gênero, não conhecia a
música. Quando soube que ela cantaria uma música com esse nome, confundi com um
antigo sucesso do Roberto Carlos (“por que me arrasto aos seus pés... porque me
dou tanto assim”). No dueto com o rapper, Maria Rita causou comoção entre seus
fãs ao entoar, em agudo rasgado, o refrão da música (“deixa, deixa eu dizer o
que penso dessa vida, preciso demais desabafar”). Sou ignorante em rap, mas
imediatamente percebi que conhecia aqueles versos. Fui pesquisar e descobri que
o trecho era um sampler da música “Deixa eu dizer”, gravada pela cantora
Claudia (hoje Cláudya), em 1973. E logo pensei em Elis Regina.
Sem falsidade. Não preciso de motivos para lembrar Elis. Ela
está na capinha do meu celular, em um ímã na minha geladeira, na estampa de uma
camiseta, junto com o nome do show/disco “Falso brilhante”. Foi, é e sempre será
meu maior ídolo. Ponto. A menção à cantora Claudia me fez lembrar de uma
passagem contada por uma testemunha ocular de um show de Elis, ainda nos tempos
da TV Record. Elis recebia convidados no programa que apresentava com Jair
Rodrigues, “O fino da Bossa”. Claudia foi cantar no programa e Elis a recebeu
de maneira no mínimo fria, como se duvidando da perenidade da carreira da
colega. De fato, hoje faz 33 anos que Elis morreu, gerações de amantes de MPB
nasceram depois disso e aprenderam a cultuar Elis pelas qualidades óbvias de
sua arte.
Não é preciso gastar muitas palavras para enumerar várias delas:
cantora superdotada, com enorme alcance vocal e afinação; intérprete
privilegiada, que conseguia carregar as músicas com a emoção precisa, a ponto
de cantar sorrindo ou chorando, sem perder o tom, uma verdadeira atriz da
música; artista musical completa, que se enquadrava no arranjo como um
instrumento da banda; produtora cultural em sentido amplo, concebendo, junto a
parceiros músicos, espetáculos e discos a partir de conceitos consistentes e,
em muitos casos, transgressores; isso sem contar na capacidade aguçada para
garimpar novos compositores e instigá-los na produção de letras e melodias que
traduziam sua própria visão, expectativas, ansiedades. É até óbvio que Elis tenha se eternizado
na memória cultural brasileira, sendo uma referência para jovens adultos que
nem sonhavam em nascer quando ela morreu, naquela manhã de 19 de janeiro de
1982.
Claudia (ou Cláudya) surgiu como um fenômeno naqueles anos
1960. Contemporânea de Elis, ganhou o Troféu Roquete Pinto (uma espécie de
Troféu Imprensa ou Melhores do Ano, à época) como cantora revelação. Se é
verdade que Elis baniu Claudia do programa “O fino da Bossa” por insegurança
não sei. Elis vaticinou que Claudia não duraria. Claudia continuou cantando.
Gravou mais de três dezenas de discos, interpretou Evita no teatro. Nunca
arrastou multidões, mas ficou no imaginário popular a ponto de ser sampleada
por um rapper já no século 21. Elis não durou em vida. Mas eternizou-se na
arte. Saber quem levou a melhor na eventual pendenga é discussão filosófica à qual não me aventuro.
Mas sempre me pego pensando que Elis Regina leva imensa
vantagem por estar cristalizada em nossas mentes e inconscientes como uma
mulher altiva de 36 anos. Gal e Bethânia, beirando os 70, ganharam peso e cabelos
brancos, enquanto Elis está lá, exuberante naquele macacão dourado de seu
último show, “O trem azul”. Gal gravou Michael Sullivan e Paulo Massadas.
Bethânia flertou com os sertanejos. E Elis lá, firme com Tom, Milton, Chico,
João Bosco & Aldir Blanc, Joyce, Ivan Lins.
Elis não vivenciou as Diretas Já, a democratização do
Brasil, a invasão dos importados, a privatização de bancos e concessionárias de
energia e de telefonia. Não viveu para comentar o Mensalão, o BBB, a glamourização
dos trios elétricos, o surgimento do “politicamente correto” e seu avesso em
programas de humor ou talk shows. Aliás, nem os talk shows ela conheceu. Não
viveu para assistir à ascensão de novas religiões, o beijo gay na novela, a
Copa do Mundo no Brasil, o nascimento do telefone celular ou das redes sociais.
Ai, que medo de imaginar Elis convertida a uma seita
bizarra, cantando músicas de qualidade questionável, defendendo posições retrógradas,
antagônicas com seu passado de indignação e dedo em riste contra gorilas
fardados. Por mais que eu pense que ela não faria nada disso, que diabos. Elis viva seria humana, não mito. Não viveria para consolidar perenemente minha imagem idealizada dela. Viveria, correria riscos, acertaria e erraria. Pensando assim, eu quase consigo imaginar que foi melhor, para a
imagem dela, ter se cristalizado no tempo como a cantora altiva de 36 anos,
embrulhada em um datado macacão dourado.
Mas a verdade é que eu trocaria esse mito por qualquer um
desses eventuais equívocos, só para que este dia 19 de janeiro não martelasse
na minha cabeça há 33 anos. Para que ela pudesse ter conhecido Zeca Baleiro. Ou Adriana Calcanhoto. Ou Arnaldo Antunes. Ou Nando Reis. Ou Jair Oliveira...
2 comments:
Ale, que texto lindo!
Elis está viva em todas as gerações. Eu ainda pequena cantava todas suas musicas. E logo já vou cantar para VV ��.
Parabéns.
Pensar isso de quem você ama assim é uma coisa, outra é descrever para gente muitas vezes menos complacente. E informada.
Eu, viúva, já pensei coisa semelhante sobre o Senna, hoje à beira de completar 55 anos. Teria sido ministro de alguma pasta? Dono de equipe? Piloto de Turismo? Comentarista da RG? Diretor esportivo? Não sei. Temo que virasse um Pelé. Que aliás, se tivesse morrido em 1971 talvez tivesse mais viúvas que Senna.
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