Nesta semana, Maria Rita retoma em Santos a turnê “Coração a
batucar”, show que assisti em maio, em São Paulo. No momento em que vi o palco
do Citibank Hall, minutos antes da estreia paulistana, tive a impressão de que
faltava alguma coisa. Os instrumentos estavam todos dispostos no lado esquerdo,
em duas fileiras. À frente, o baixo de Alberto Continentino, a guitarra de Davi Moraes e os teclados de Ranieri Oliveira. Atrás, a bateria de Wallace Santos e a percussão de Marcelinho Moreira e André Siqueira. No lado direito, o vácuo. Sendo um show de samba, ocorreu-me uma
associação esdrúxula. “Parece o recuo da bateria”. Assim que Maria Rita entrou
no palco, pelo lado direito, a dúvida se dissipou e ficou claro que aquele
vácuo tinha sido idealizado para a movimentação da cantora. Ao longo do
espetáculo, quem se dissipou foi essa certeza. Chegaremos lá.
É certo que “Coração a Batucar” é um espetáculo de samba,
baseado no disco homônimo lançado em março. Das treze faixas que compõem o CD,
apenas três não estão no show. O primeiro disco inteiramente dedicado ao samba
da cantora (Samba Meu, de 2007) cede outras sete canções. Completam o
espetáculo duas músicas de Gonzaguinha (“Comportamento
geral” e “E vamos à luta”), duas músicas do álbum Elo (“Coração a batucar” e “Coração
em desalinho”), uma do álbum de estreia (“Cara valente”) e uma do espetáculo
Redescobrir (“Ladeira da Preguiça”). No bis, outro samba ainda não gravado em
CD (“Do fundo do nosso quintal”). É um show de samba, mas não é só isso.
Quando lançou o CD, no início do ano, Maria Rita surpreendeu
com a atmosfera escolhida. Na capa, ela surge vestida de preto, olhando de
frente para a plateia, com uns olhos pintados também em tons escuros. Nada de
lantejoulas ou guias coloridas. Nada de velas ou de confete e serpentina. Nada
de samba? A sonoridade, no CD, é sofisticada, com fortíssima presença dos
teclados em praticamente todas as faixas, além de um papel de destaque também
para a guitarra. É, definitivamente, uma roda de samba, e também uma jam
session. Quem escutasse o CD e fosse direto para o show esperaria uma jam
session que, aos poucos, fosse se tornando uma roda de samba como, de certa
forma, é o CD. E Maria Rita puxou o tapete sob nossos pés, abrindo o show com a
última música do álbum (“É corpo, é alma, é religião”), uma animada celebração
ao próprio samba.
Tática para animar o público, provavelmente, reforçada pela
segunda música do espetáculo (“Cara valente”), um dos maiores sucessos de Maria
Rita, daqueles que a plateia canta junto. Não parece muito difícil para ela
envolver o público. O novo CD tem pouco mais de quatro meses na praça
(considerando o lançamento virtual, que veio antes) e é impressionante ouvir o
coro acompanhando a cantora em praticamente todas as músicas. Maria Rita hoje é
uma cantora que literalmente arrasta multidões. Ela hoje desfruta de uma
plateia devotada, que parece segui-la quase messianicamente. Mas Maria Rita não
passa recibo disso. Fala bem menos com o público do que o fazia no show
“Redescobrir”. “Eu gosto mesmo é de cantar”, disse no show de estreia em São
Paulo, e pôs-se a guiar a plateia por um caminho cujas pistas estavam dadas no
CD e que me fez desconstruir a ideia de que aquele vácuo, do lado direito, era
“só” para ela se movimentar.
O ponto de inflexão do espetáculo chega de mansinho, com uma
música aparentemente “menor” do CD. “Bola pra frente” é uma canção composta por
Xandi de Pilares e Bernini. Tem uma estrutura simples, com uma melodia que se
repete nas quatro primeiras estrofes, utilizando a mesma lógica para as quatro
estrofes seguintes. Deságua em um refrão curto, de ritmo marcado, lembrando a
tradição dos antigos jongos africanos que ajudaram a moldar o samba. Pois é
essa estrutura simples, algo repetitiva, que permitiu à roda de samba
transmutar-se em jam session no espetáculo.
Maria Rita, no show Coração a Batucar (foto: Wesley Mesquita) |
A repetição dos temas, em “Bola pra frente”, abriu caminho para que cada músico da banda expusesse de fora inapelável sua relevância no espetáculo e, então, a disposição dos instrumentos no palco fez muito mais sentido. O fato de estar “meio de lado” não era necessariamente para dar espaço para Maria Rita sambar (até porque ela sambou no palco inteiro, diga-se). Muito mais, na verdade, para dar a cada integrante daquela pequena escola de samba o mesmo peso que a própria cantora tinha no cenário. Uma disposição convencional, com os músicos no fundo do palco e a cantora à frente criaria uma condição de coadjuvantes que aqueles profissionais, definitivamente, não mereceriam.
Mas não foi só isso que “Bola pra frente” proporcionou ao
show. A música inaugurou o capítulo mais engajado do espetáculo, enfileirando
quatro músicas de cunho social, sendo duas delas de Gonzaguinha, oriundas da
apresentação de Maria Rita no Rock in Rio do ano passado. No lançamento do novo disco e na estreia da turnê, a cantora explicou
em entrevistas a opção por produzir um novo disco de samba, como tendo sido
algo espontâneo, meio incontrolável. E não deixou de apontar que a veia social,
ensaiada no show do Rock in Rio e presente em diversos momentos de sua
trajetória profissional de onze anos, está latente e, em breve, deve render
frutos.
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