Monday, March 10, 2014

Relato de um bagaço


O cinema no final da tarde de domingo está virando hábito. De verdade, prefiro o final da tarde ou a noite de sábado, ou o início da tarde de domingo. Esse é campeão. Enquanto uns lotam restaurantes, vou ao cinema em sessões menos concorridas. Mas meu filho anda com um tédio imenso das noites de domingo, antevendo o início da semana, a volta à escola. Preencher o horário com cinema tem sido um antídoto eficaz. Na tarde de sexta, leio no Twitter uma dica - quase súplica - do crítico Pablo Villaça: "se você for assistir a um único filme neste sinal de semana, veja 'Até o fim', com Robert Redford".

Ler as críticas do Pablo no Cinema em Cena é outro hábito dos últimos tempos e recomendo o site. (É bom ressaltar que meu apreço a esses textos começa no cinema, obviamente, mas se estende para a ideologia do crítico, que expressa pensamentos muito próximos aos meus e aos valores que tento transmitir para o meu filho. Para rotular, um pensamento de esquerda.)  Desenvolvi um método para essas leituras: abro a crítica e vejo a nota que ele deu. Se for alta, aposto no filme. Depois de visto, então leio a crítica inteira, para não influenciar a minha própria visão. Com a súplica via Twitter, nem fui conferir a nota. Programei "Até o fim" para fechar o final de semana. Fui com meu filho e convidei minha mãe. Gostei muito, Gabriel detestou, minha mãe não se recuperou do choque da primeira cena, ao ver o galã de sua juventude com o rosto vincado. Ou, para usar sua própria definição, transformado em um "bagaço".

Para saber mais sobre o filme, melhor ler aqui. A motivação deste texto é outra. A trajetória do personagem de Redford em "Até o fim" em inúmeros momentos me lembrou o livro "Relato de náufrago", de Gabriel García Márquez. O livro do vencedor do Nobel de 1982 é, na verdade, uma grande reportagem sobre um marinheiro que esteve dez dias à deriva numa balsa na região do Caribe. Há um contexto político na história verídica que traz implicações na vida do marinheiro e na publicação da própria reportagem e vale muito a leitura. Bem, meu filho não se chama Gabriel por outro motivo, então não estranhe quando eu recomendar qualquer livro de García-Márquez.

Algumas das cenas de "Até o fim" parecem a filmagem do texto do colombiano. Uma das passagens mais bonitas do filme mostra um cardume circundando o bote do personagem de Redford. No livro, diz-se o seguinte: "(...) Os peixes nadavam na superfície, o mar estava limpo e sereno. Havia tantos animais bonitos e tentadores à volta da embarcação que pensei que poderia agarrá-los aos punhados.".

Em determinado ponto do filme, o homem tenta pescar, de forma rudimentar, apenas com linha e algo que parece ser uma isca artificial. Tempos depois, sente a fisgada e começa a puxar a linha, na esperança de pegar um peixe. Quando o animal chega às suas mãos, é surpreendido por um peixe maior (talvez um tubarão?) que lhe arranca a presa. No livro, o náufrago consegue capturar um peixe com as próprias mãos, já que não dispunha nem de linha nem de isca. Destrincha o animal com a ajuda de uma chave que ficara em seu bolso, dá duas mordidas na carne crua e resolve guardar o resto, tentando lavar o que sobrou no peixe na água do mar. "(...) Distraidamente, agarrei-o pelo rabo e mergulhei uma vez por fora da borda. (...) Foi então que senti a invertida e o violento matraquear das mandíbulas do tubarão. (...) Voltei a puxar com todas as minhas forças, mas já não havia nada em minhas mãos. O tubarão levara minha presa."

O livro também descreve a aproximação metódica de tubarões, sempre à mesma hora do dia, como se a fazer companhia macabra para o náufrago lutando pela vida. No filme, os tubarões não chegam a ser uma ameaça real à integridade física do homem, mas a visão de um cardume desses peixes sob o bote salva vidas me remeteu imediatamente ao livro, lançado em 1970. Talvez o diretor e roteirista do filme, J.C.Chandor tenha se inspirado livremente no relato do marinheiro colombiano, editado por García-Márquez.

Talvez os relatos de náufragos sejam simplesmente muito parecidos. O acidente do filme acontece no Oceano Índico. O do livro, no Mar do Caribe. No filme, um homem velho. No livro, um jovem marinheiro. Mar, sol inclemente, o breu da noite, alucinações, sede, fome, solidão, tudo está lá, no Índico e no Caribe. Nos dois casos, a centelha de vida pulsando inexorável, como se fosse irresistível lutar por ela, mesmo quando tudo pareça perdido. O final do livro de García-Márquez torna-se desconcertante, pelo rumo absurdo que a história toma, em função do contexto político da época. O final do filme, mais poético e ambíguo, traduziu-se para mim em renascimento, seja em que dimensão se entenda isso.

1 comment:

Anonymous said...

Anotado. Vou assistir. Também leio as críticas do Pablo Villaça "diariamente", mesmo quando ele demora a escrever (não é uma indireta!).

Imagino que o filme não tenha o ritmo necessário a um adolescente (supondo que seja o caso do seu filho, é o do meu). Sobre a mãe, não sei a sua, mas a minha não teria a paciência necessária para acompanhar a rotina de um barco à deriva. Somos de 70, os problemas podem ser parecidos.

Eduardo Trevisan.