Friday, June 27, 2008

Maria (quase) Gasolina

Em minhas andanças pelos autódromos, lá no Paleolítico, costumava ser muito mais fácil falar com os pilotos, e isso vale também para os de Fórmula 1. As restrições à imprensa eram muito menores naquela época e os pilotos não eram engessados nessas regras de só falar em horários pré-determinados, em ambientes assépticos, com os logotipos dos patrocinadores estrategicamente posicionados para aparecer nas imagens. Era chegar, testar o humor do sujeito e, se rolasse, engatar as perguntas ali mesmo, encostados na mureta do pit lane ou nas portas de ferro do box.

(Nunca me esqueço de que, certa vez, fiquei esperando um tempão para falar com Alain Prost depois do GP do Brasil de 1993, encostada na porta do box. Quando saí, notei que minha calça jeans estava toda suja de graxa. Que ódio!)

Em 1992, o contraste era ver o poderio quase bélico da Williams, com sua suspensão ativa que fazia os carros se mexerem "sozinhos", em testes bem provocativos no intervalo entre um treino e outro, e as condições mequetrefes dos times menores, como Fondmetal ou Larousse. Nada, porém, se comparava à pobreza e ao amadorismo da natimorta Andrea Moda.

A equipe era uma piada a começar pela origem. O dono, Andrea Sasetti, era um empresário do ramo de calçados que achou por bem criar uma equipe de Fórmula 1. As condições eram mais do que precárias. O carro da equipe nunca tinha sido testado. Na semana anterior ao GP do Brasil, os dirigentes do time ficaram prometendo testes em circunstâncias mais que inverossímeis, a ponto de cogitarem colocar o carro para andar no aeroporto do Campo de Marte, na Zona Norte de São Paulo. Não rolou teste nenhum e há quem jure de pé junto ter visto mecânicos da equipe emendando a carenagem do carro com silver tape.

Isso eu não vi mas, meninos, eu vi. Vi Roberto Pupo Moreno, um dos pilotos da equipe, dar uma entrevista sem pé nem cabeça, acreditando não só que o carro andaria como também que ele se classificaria para a largada. Para quem não sabe, naquela época a Fórmula 1 tinha mais carros inscritos que posições no grid, deixando sempre pelo menos quatro carros fora da corrida. Largavam 26 pilotos, imagine...

Pois a Andrea Moda não só ficou na degola de pré-classificação como foi capaz de rodar apenas com um único carro, justamente o de Moreno. O tempo da pole, obtido por Nigel Mansell, foi de 1min15s703. O último colocado no grid, Johnny Herbert com sua Lotus, marcou 1min20s650. A penúltima colocada na pré-classificação, a italiana Giovana Amati, marcou 1min26s645. Achou grande a diferença? Pois então se segure. Moreno, com a paquidérmica Andrea Moda, registrou o inacreditável tempo de 1min38s569! Doze segundos a mais que a penúltima colocada, 23 segundos a mais que a pole!



Junto a Moreno, no box da Andrea Moda, estava um piloto inglês, carequinha e simpático, chamado Perry McCarthy. Na sala de imprensa, tínhamos visto seu nome na lista de inscritos, mas nenhum dos repórteres brasileiros conhecia o indivíduo. Em um tempo no qual só se falava de Ayrton Senna e de seu desalento em perseguir a esquadra da Williams, ninguém deu muita bola para Perry McCarthy. Numa dessas idas e vindas entre sala de imprensa, paddock e pitlane, deparei-me com meu colega de Folha de S. Paulo Edgar Alves, junto a um pequeno grupo, na frente de um box.

Cheguei e vi um loirinho calvo, já entrado na casa dos 30, descrevendo uma manobra como se narrasse um desenho animado. Gesticulava explicando o movimento do carro e a subseqüente batida, usando onomatopéias o tempo todo. "Pum, pow, poff, crash!" E se ria todo, lembrando de alguma corrida, em algum rincão da Europa, que provavelmente ninguém mais viu. Percebi que o figura era Perry McCarthy e fiquei ali, pescoçando a conversa. Como era natural, o então repórter do Jornal da Tarde estava junto comigo.

Em dado momento, inquirindo o piloto sobre mais detalhes de sua vida e carreira, Edgar Alves perguntou se McCarthy era casado. O safadinho virou-se para mim, entre jocoso e galante, arregalando os olhos e dando piscadelas cômicas. "Quem está perguntando?", disse em um inglês bem arretado. Ao que Edgar respondeu: "Ela!", referindo-se naturalmente a mim. E Perry: "No, I am not!"

Com meus 20 e pouquinhos anos, corei. Ao lado do namorado, acrescentei constrangida. "But, I am...". E o repórter do JT arematou: "Yes, with me!".

Perry não perdeu o rebolado. Virou-se para o jovem jornalista, estendeu-lhe a mão e disse: "With you! Oh, congratulations!" A entrevista informal terminou em risadas. A aventura de Perry McCarthy na Fórmula 1 não completou uma volta sequer, e assim acabou minha curtíssima carreira frustrada como Maria Gasolina.

9 comments:

Anonymous said...

Hahahahaha. Que história deliciosa.

Anonymous said...

Hahaha, sensacional! Imagino o quanto de histórias assim vocês dois devem ter!...

Se continuar com posts do tipo, em breve teremos uma espécie de "Boto do Reno", versão Alessandra e Panda! hahhaaha

(ah sim, sou um dos cinco leitores (segundo o Gomes, a quantidade de pessoas que comprou o livro). Tá certo que comprei em um sebo, poucos meses depois do lançamento! hahahah... mas está aqui guardado, excelente o livro!)

http://hugobecker.blogspot.com

Anonymous said...

É...Alessandra naqueles tempos como nos anos 80 o grid era cheio...cheio de marcas de carros, de pneus, de gasolina, de muitos, muitos pilotos talentosos e simples, querendo apenas pilotar. Bons tempos sem querer ser saudosistas. E, muito legal a tua história continue a nos gratificar com as histórias de antes, porque hoje a f-1 tá muuuito chata, chata com a petulância da maioria dos pilotos, dos patrocinadores e principalmente de seu criador-mor, Bernie, que se perdeu no grande negócio que ele próprio ajudou e muito a criar. Um graande abraço e até mais.

Anonymous said...

Devia ser uma época muito gostosa mesmo...
Tenho um amigo que disse - não posso confirmar - que foi assistir um dos primeiros Gp Brasil em Interlagos e disse que era possivel ficar andando pelo padock livremente, sem credencial nem nada. E que parou defronte ao box da Ferrari para ver a montagem do carro. Então saiu um mecânico com macarrão e ofereceu a ele que aceitou e bateu um rango la mesmo, junto com a equipe. Se for verdade é uma historia maravilhosa.
Vou perguntar a ele maiores detalhes que me fugiram agora. Seu nome é Chico Góis do F1GP Brasil...

Anonymous said...

Essas coisas são engraçadas ,a gente sempre acha que era melhor ,procuro evitar isso .....mas que era ,há isso era!

Brincadeira a parte lembro do Emerson falando sobre a F-Indy que era como a F1 nos velhos tempos ,ou seja era melhor, e falou isso mais ou menos em 87 muito antes da nossa heroina levar uma cantada do McCarthy.

Resumindo.

O tempo está passando.

Jonny'O

Anonymous said...

Alessandra, voce conhece a história do Pel (como ele é chamado) de que ele só conseguiu fazer sua estréia no GP da Espanha desse ano, e o carro saiu dos boxes, andou 18 metros, e fundiu o motor?

Dizem as lendas que o carro nem tinha motor, que saiu dos boxes só com o empurrão dos mecânicos, que ficaram lá no fundo fazendo barulhos de ronco de motores.

E o Perry, comentando sua estréia, falou que o carro "saiu um pouco de frente quando saí dos boxes, mas consegui corrigir".

Uma comédia. Ele tem um livro, chamado Flat Out, Flat Broke.

E aqui, uma mega entrevista com o cara, confira:

http://www.f1rejects.com/interviews/mccarthy/index.html

Carlos Bragatto

politicamente_incorreto said...

A irreverente eclética F1 das décadas de 70 e 80 ( digo eclética porque lembro bem nada existia de amadorismo entre as equipes de ponta, o orçamento já era bem gordo eos salários dos pilotos embora longe dos de hoje já eram milionários, foi publicada uma auto esporte se não me engano de 1978 em que aparecia uma foto do Clay Regazzoni na ensign - uma force india de hoje- e o preço de cada espaço no carro e no macacão , qualquer micro espaço já dava pra comprar um carro top de linha 0 km. O que existia era um misto de campeonato de SP com a terceira divisão do Piauí, tudo junto, era uma delícia...)) davam margens para histórias e mais histórias, tais com a do Reutemann tentando menosprezar o Piquet no cmapeonato de 1981 afirmando antes da prova decisiva que " esse garoto já limpou meu capacete" pois dizem que na única prova extra-campeonato de F1 que houve no DF em 1974, ao ser flagrado no box da brabham como penetra o Piquet bem ao seu estilo teria pego uma estopa e passou a limpar o capacete do Argentino, tentando se passar por ajudante. se é verdade ou mentira não sei, só sei que a F1 da época dava margem para essas histórias, nada parecido com o aborrecido e chato "laboratório espacial de nanotecnologia" criado para os chimpanzés amestrados darem entrevistas hoje. Desculpe, entrevistas não, recitarem frases previamente decoradas e politicamente (arghhh) corretas sobre a corrida, um saco!!!!

Blog F1-V8 said...

Que história Alessandra!
Seu dia de Maria gasolina ao lado do namorado ainda!!
Vc deve ter lembranças incríveis dessa época!! Continue contando para nós!!

Rafael Rosa said...

Impagável essa história! Depois conte mais "causos" pra nós!

Um forte abraço!